SOCIEDADE
A historiadora Maria Isabel João tem investigado a data do
10 de Junho, e é autora do livro “Memória e Império — Comemorações em Portugal
(1880–1960)”
As celebrações do 10 de Junho sobreviveram a três regimes
políticos. Quase que poderemos dizer quatro, já que esta data — muito
acarinhada pelos republicanos — foi evocada pela primeira vez em 1880, no
reinado de D. Luís. Se quiser saber a história até aos nossos dias leia a
entrevista com a investigadora Maria Isabel João
10 JUNHO 2021 10:31
Manuela
Goucha Soares Jornalista
Um ano antes do golpe que instituiu a ditadura militar em
1926, a I República declarou que a “Festa de Portugal se celebrará no dia 10 de
Junho de cada ano”. O Estado Novo manteve a data como Festa de
Portugal, elevando-a à condição de feriado nacional em 1929.
O título de Dia de Portugal só surgiria décadas depois. E,
apesar de ninguém saber se o poeta Luís Vaz de Camões morreu mesmo neste dia, a
democracia continuou a celebrar o 10 de Junho como data da identidade nacional.
Uma originalidade portuguesa que é praticamente “caso único” no mundo, segundo
a professora Maria Isabel João, autora do livro “Memória e Império —
Comemorações em Portugal (1880–1960)”. A historiadora lembra que a “maioria
esmagadora dos países do mundo escolhe uma data que se relaciona com a fundação
do Estado ou do regime político vigente”.
Como é que esta data consegue resistir a três regimes
políticos como símbolo da identidade nacional?
Porque está identificada com a figura de Camões, que é o símbolo da nação desde
o século XIX. É uma figura que emerge no contexto da mitologia nacional criada
pelos românticos e que se transforma num símbolo da nação. O [historiador]
Oliveira Martins diz que Camões é o epónimo de Portugal. E o [republicano]
Teófilo Braga, num dos seus textos, diz que, se dissermos que somos portugueses
no estrangeiro, ninguém nos identifica. Mas, se dissermos que somos da pátria
de Camões, já nos identificam.
A I República acarinha o dia por causa de Camões?
Sim, porque na altura das comemorações do tricentenário da morte de Camões, em
1880, os republicanos, e nomeadamente Teófilo Braga, que tinha importado as
conceções positivistas de Auguste Comte para Portugal, entendia que era
importante substituir os símbolos religiosos por laicos. Camões surge como um
símbolo laico.
Podemos dizer que Teófilo é o ‘pai‘ do Dia de Camões?
Ele é o pai da ideia da comemoração do III centenário da morte de Camões, que
cria as bases para que o 10 de Junho pudesse vir a ser feriado nacional.
Falou-se nisso na época, mas nunca foi feriado no período da monarquia. Teófilo
empenhou-se muito, como estudioso de literatura, a estudar Camões e a obra
dele, e também como mentor das comemorações do III centenário, bem como na
promoção da figura de Camões como símbolo nacional. Este acontecimento adquiriu
uma enorme importância, porque houve uma grande mobilização da imprensa da
época, que contribuiu para que ficasse na memória.
A imprensa foi determinante para a consagração e
interiorização da figura de Camões como símbolo nacional?
Teófilo Braga apareceu na imprensa [com artigos] a defender o centenário. Os
republicanos impuseram um modelo de celebrações importado da França e da
Revolução Francesa, o que fez com que os monárquicos e a própria Corte tivessem
hesitado no modelo das comemorações sem desconfiarem da figura de Camões. A
ideia de que na época iria haver uma procissão cívica no 10 de Junho era uma
apropriação de rituais religiosos que foram [assim] laicizados. As comemorações
mobilizaram Câmaras de todo o país, associações... E houve um grande cortejo,
que partiu da Praça do Comércio e foi depor flores na estátua de Camões, que
contribuiu para a afirmação dos republicanos como força política, embora o
próprio rei tenha presenciado as comemorações.
A partir de 1911, o 10 de Junho passa a ser feriado
municipal de Lisboa...
O regime republicano homenageou a data, tornando o dia feriado na capital. Ao
longo dos anos, as comemorações do dia 10 de junho foram variando consoante as
circunstâncias políticas. Em 1917, a data foi celebrada como Dia dos Aliados,
porque a I Guerra Mundial mobilizava a atenção de todos. E em 1924, quando se
celebrou o IV centenário do nascimento de Camões, o 10 de Junho foi a data
escolhida. A imprensa da época utilizava a expressão Festa da Raça para as
comemorações camonianas, e o sentido do termo ‘raça’ era vago e identificava-se
com o próprio povo português. A celebração durou seis dias e teve repercussão
no estrangeiro, em especial em Espanha.
É o Estado Novo que batiza a data como Dia de Portugal?
Sim, mas só em 1952. Entre 1925 e 1952, o 10 de Junho foi designado como Festa
de Portugal. E só passou a ser celebrado como feriado nacional em 1929.
As pessoas precisam de símbolos. É isso que explica que o
10 de Junho tenha sobrevivido à queda da ditadura como símbolo da identidade
nacional?
Exatamente, a questão simbólica é muito importante, mas isso [também] revela o
quanto o 10 de Junho estava enraizado na consciência nacional. Em 1974,
realizou-se uma manifestação de solidariedade com as Forças Armadas; no fim,
colocaram flores na estátua de Camões [em Lisboa]. E em 1977, depois de Ramalho
Eanes ter sido eleito, a data passou a Dia de Camões e das Comunidades
Portuguesas. No ano seguinte começou a ser celebrado como Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades Portuguesas [designação que mantém].
[esta entrevista foi
inicialmente publicada a 10 de junho de 2017]
https://expresso.pt/sociedade/2021-06-10-O-feriado-do-10-de-junho-faz-hoje-110-anos.-Esta-e-a-sua-historia-421331ec
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