CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
* António Guerreiro
18 de Junho de 2021, 10:13
Antes que o jargão da tripla aliança política, económica e mediática nos submerja com a sua capacidade injuriosa e de cancelamento da crítica, devemos cuidar das palavras, observar a sua vida e perceber o sentido das suas inflexões. Num tempo que nos parece hoje já distante, mas do qual, se nascemos nos últimos quarenta anos, somos ainda contemporâneos, a palavra “progressista” teve uma considerável fortuna e sinalizava o “imaginário” político (“imaginário” é, aliás, outra palavra defunta). Ser “progressista” era acreditar no progresso. Não no progresso tecnológico ou científico (muito embora esse também fizesse parte do processo), mas num progresso que tinha uma escala muito mais ampla: a do curso inelutável da história em direcção à “justiça” social e à “emancipação” política. “Progressista” era o termo condescendente usado pelos comunistas para nomear quem não se comprometia com lutas revolucionárias, mas também não estava do lado das soluções conservadoras ou até reaccionárias. Nesse jargão outrora dominante, ser progressista significava olhar em frente, em direcção a um futuro radioso, em oposição aos reaccionários, que olhavam para trás, para um passado geralmente mitificado. Quando o progresso e o mundo por vir em vez de inspirar confiança e mobilizar a acção começaram a gerar o medo, ser progressista perdeu a condição de título a reivindicar. A herança dos antigos progressistas reside hoje num pensamento que, pelos critérios de antigamente, seria considerado reaccionário (como classificar muitas das lutas identitárias e ecológicas?). Esta inversão de valores constitui um enorme desafio às representações baseadas na topologia que divide o espaço político entre esquerda e direita.
Hoje, que a palavra “revolução” passou por uma zona demoníaca e tornou-se depois uma ruína inerte, um outro “re-” substituto entrou em cena e triunfou. Comecemos por uma aproximação negativa: não é “resistência”. Resistir era a atitude do “antes quebrar que torcer”, era um heroísmo com uma dupla face: ou era épico ou trágico. A atestá-lo, aí estão, por todo o lado, os monumentos e os “lugares de memória” que celebram os “heróis da resistência”, ao serviço do uso que em cada momento se faz da história. Um discurso do presidente francês, Emmanuel Macron, pronunciado no dia 9 de Novembro de 2020, pelo cinquentenário da morte do general de Gaulle, indica-nos qual é o novo “re-” que revogou a “resistência”. Nessa ocasião, Macron, com a eloquência francesa que serviu durante séculos como medida da “civilização”, saudou o “espírito de resiliência” do general. E assim passou de Gaulle a herói da “resiliência” francesa. Foi uma operação “revisionista” sem grandes custos: bastou a substituição de uma palavra por outra, muito mais actual. A República ganhou assim o seu terceiro “re-”, caducado que foi o tempo da revolução e fora de moda em que caiu a resistência.
Os novos tempos são pois os da resiliência. Do Atlântico aos Urais e para além, da costa leste à costa oeste e vice-versa. Temos a nova palavra-maná pronunciada a toda a hora pelos políticos democratas (sim, porque nos regimes ditatoriais os opositores não julgaram ainda adequado substituir a resistência pela resiliência, e os ditadores movem-se noutro campo semântico). Basta ouvir os nossos políticos para perceber que a resiliência se tornou uma ideologia: a ideologia do sofrimento e da infelicidade que salvam e purificam. O resistente estava disposto a quebrar; o resiliente é maleável, adapta-se a tudo, não tenta alterar nenhuma ordem, mas, pura e simplesmente, fazer o jogo da ordem presente para daí retirar ganhos. A táctica da resiliência é o consentimento. Por cada crise, infortúnio ou catástrofe, os arautos da resiliência prometem que “vamos sair daqui ainda mais fortes”. Toda a felicidade é conseguida à custa da infelicidade, e é sempre a destruição que é uma fonte da reconstrução. Aliás, o pressuposto da resiliência, essa terapia inventada nos gabinetes clínicos da aliança económico-política, é que a infelicidade é um mérito e a destruição uma bênção. Uma coisa que tem o nome de “Plano de Recuperação e Resiliência” poderia ser uma prescrição médica seguida numa associação de alcoólicos anónimos. Tudo neste jargão político tresanda de vício e de uma execrável ideologia.
https://www.publico.pt/2021/06/18/culturaipsilon/cronica/santa-resiliencia-196667
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