sexta-feira, 21 de abril de 2023

António Guerreiro - O algoritmo diabólico,

Crónica Acção Paralela  -  

* António Guerreiro  

21 de Abril de 2023

A ideia de que se começa pela junk fiction e se evolui na exigência até que um dia se chega ao Joyce é uma piedosa invenção que até os “agentes culturais” difundem com alegria.

Através de artigos e reportagens que, nos últimos tempos, surgiram na imprensa (inclusivamente neste jornal), ficámos a saber que os jovens, por meio do TikTok, contribuíram de maneira significativa para o aumento das vendas de livros, provocando algum entusiasmo na indústria editorial. Este fenómeno não tem fronteiras e há já algum tempo que foi identificado em vários países. A sua história vem de trás, mas acelerou e ganhou mais força com o lançamento, em 2017, do TikTok, uma rede social que está a meio caminho da plataforma de conteúdos do tipo Netflix.

Esta rede vinda da China instaura uma mistura complexa que se situa entre o privado e o público e revelou-se muito apta para a produção de tendências e de códigos tribais, na medida em que oferece um uso mais passivo do que as outras redes sociais e potencializa a lógica da “viralidade”. Tornou-se assim um instrumento poderoso na relação dos jovens – os seus utilizadores preferenciais – com o mundo. O algoritmo do TikTok tem a fineza de identificar com sofisticação analítica os interesses de cada um, os medos e obsessões, categorizando assim uma personalidade nos seus aspectos mais privados, fornecendo-lhe o que se adapta a ela, quase entrando na intimidade dos utilizadores. É um algoritmo capaz de encadear uma série ultrapersonalizada de vídeos (TikTok é uma rede que incita a criar vídeos e a fazer deles o motor da máquina) e recomenda-os “para ti”, de maneira ininterrupta. Tem, por isso, um forte poder adictivo.

De um modo geral, as reportagem e artigos sobre o TikTok enquanto factor adjuvante da indústria do livro têm um tom optimista e de entusiasmo: porque se vendem mais livros e porque os jovens são incitados à leitura. É certo que em nenhum momento alguém diz que os influencers do TikTok e outras redes promovem a leitura de grande ou mesmo da pequena literatura. Mas a ideia, por mais que ela já tenha sido desmentida em muitos estudos, de que se começa pela junk fiction e se evolui na exigência até que um dia se chega ao Joyce, é uma piedosa invenção que até os “agentes culturais” difundem com alegria. Até parece que não há pelo menos uma pequena questão a atravessar-se no caminho: o livro, que desde a invenção da imprensa foi visto como um medium glorioso que alimenta o nosso poder reflexivo e, por isso, é um factor de liberdade e emancipação, encontra-se assim projectado num mundo organizado pelos algoritmos.

É verdade que seria muito ingénuo manter hoje uma concepção do livro que herdámos do Iluminismo. Essa concepção pertence ao passado. Mas a cegueira em relação às consequências da algoritmização é ainda mais escandalosa quando se trata do medium-livro e deve fazer reflectir sobre os efeitos que isso tem sobre as espécies bibliográficas e o património literário que – em princípio não há quem não concorde – é preciso divulgar e preservar para termos um “espaço público” que não seja conformado a uma paradoxal e totalitária algoritmização da liberdade que vira o liberalismo contra si mesmo.

À primeira vista, o TikTok parece uma coisa simples, uma rede que cumpre com a eficácia que nenhuma outra jamais alcançou as exigências de uma economia da atenção – o bem mais precioso e mais disputado do nosso tempo. Mas, como observou um ensaísta francês, Chistian Salmon, num texto publicado na revista Slate (online), a coisa é muito complexa e dela se pode dizer o que Marx dizia de uma simples mesa quando se transforma em mercadoria: um objecto “cheio de subtilezas metafísicas e argúcias teológicas”.

O escritor, cineasta e ensaísta Alexander Kluge (cuja monumental Crónica dos Sentimentos podemos ler na tradução portuguesa que saiu em dois volumes, na BCF Editores) tem-se empenhado em alertar contra as “novas sereias”, essas “criaturas míticas que ocupam os perigosos recifes de Silicon Valley” (os seus alertas estavam virados para esse centro industrial da alta tecnologia, do capitalismo algorítmico, muito antes do aparecimento do TikTok).

As sereias de hoje, que têm o enorme poder de adivinhar os nossos desejos, são, diz Kluge, um “novo alfabeto” – um alfabeto binário. Recordemos que Alphabet é o nome da holding proprietária da Google. E onde há um algoritmo (que nós, os leigos, não sabemos como trabalha) é preciso que exista sempre um contra-algoritmo. E o contra-algoritmo que Kluge reclama é um poder poético, que vem também da teoria. É combinando tudo o que as artes podem produzir que se podem criar contra-algoritmos: “A arte é o advogado dos contra-algoritmos”, afirmou Kluge, certamente a pensar na sua formação de advogado.

Livro de recitações

 “A mulher de João Galamba”
Nome de uma figura assim referida, nos últimos dias, pela generalidade dos media.

À “mulher de César”, que atravessa os tempos e sobrevive como um espectro até ao nosso tempo, junta-se agora a “mulher do João Galamba”. A bem dizer, nem quis saber o que se passava com esta mulher e porque é que teve direito a uma efémera celebridade por via de uma afinidade conjugal. Mas no nosso tempo só quem é completamente impermeável a um certo arejamento é que não sente alguma estranheza e incomodidade na utilização deste genitivo objectivo. Não interessa se há razões para ele ser utilizado. Novos hábitos linguísticos tornam já exótica esta fórmula repetida: “A mulher de João Galamba”. Ah, a gramática dos novos tempos!

https://www.publico.pt/2023/04/21/culturaipsilon/cronica/algoritmo-diabolico-2046556



Sem comentários: