* José Pacheco Pereira
1 de Abril de 2023,
As mais
poderosas forças do mundo, boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo
sentido e sem controlo.
PBX DR
Este é um
artigo inútil. Nada do que aqui está, seja o que escrevi, seja o que “acontece”
no que escrevi, muda alguma coisa. Se não achasse que é minimizar uma das
figuras mais criativas da literatura, Dom Quixote de la Mancha, o Cavaleiro da
Triste Figura, podia usar a classificação comum de “quixotesco”. Mais: não só
não muda nada, como vai ser cada vez pior. As mais poderosas forças do mundo,
boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo sentido e sem controlo. O
controlo é do domínio da pura ficção. Quem quer usá-las usa e infelizmente há
muita gente a querer usá-las, a começar por aqueles que deviam ter consciência
dos seus riscos. Há pouca coisa realmente mais apocalíptica nos dias de hoje do
que isto. O que é “isto”?
Imaginemos um
“pide” moderno, e há muitos “pides” modernos. Senta-se para o trabalho diante
de um conjunto de ecrãs, ligados a várias bases de dados, usando quer programas
comuns e motores de busca vulgares, quer especializados. Qualquer serviço
pidesco pode hoje comprar, num mercado mais especializado, programas e motores
de busca usados por polícias e ladrões, serviços de informação nacionais e
internacionais, que procuram não só na superfície da Rede mas também na sua
parte “negra”. Eu já os vi a funcionar e garanto-vos que nem imaginam o que
encontram, dados e contexto.
O “pide”
moderno é jovem, como os últimos recrutamentos da PIDE em vésperas do 25 de
Abril, e nem sequer precisa de ser um nerd nem um hacker,
mas apenas de saber usar os seus instrumentos, que tem diante dos olhos. A
maior parte do que recolhe é legal, qualquer um o pode fazer, mas alguma parte
está na fronteira do abuso e outra é mesmo ilegal. Se houvesse uma suspeita
fundamentada de crime, podia ser autorizado, por um juiz, o acesso aos
metadados ou a escutas, mas eu estou a falar da vigilância sobre as pessoas
comuns e não sobre criminosos.
O “pide”
moderno começa a registar os meus dados. Sai de casa – horas. Ele sabe onde
moro e pode contar o tempo entre a saída e o próximo sinal recebido por causa
do pequeno-almoço, a factura. A factura está cheia de informação que o Estado,
através do fisco, se arroga de ter: na factura bastava o valor global, mas está
muita outra coisa. Está o que comi e bebi, está se tomei o pequeno-almoço
sozinho ou acompanhado.
Depois passo
por um multibanco, e levanto dinheiro e faço pagamentos. Durante o dia todo, os
cartões de crédito registam um rasto de acções que, acompanhado pelas facturas,
já permitem saber muitas coisas. Quando Monica Lewinsky comprou uns livros para
dar a Clinton, um deles, Vox, de Nicholson Baker, uma ficção em que há
uma relação de “sexo telefónico”, isso interessou ao procurador que perseguia
Clinton. A livraria recusou-se, e bem, em mais um acto quixotesco, a dizer que
títulos de livros tinham sido comprados. Eu podia, como faço quase todos os
dias, também ir a uma livraria, e mesmo sem comprar o Vox (que já tenho
e li) alguns títulos podem sobressaltar o “pide”, que não é muito de livros, mas
pode ir ver os resumos à Rede – por exemplo, o Agente Secreto, de
Conrad, levantou-lhe as sobrancelhas tratadas, quando foi a um destes barbeiros
tão modernos como o “pide”. Ou uns fanzines anarquistas com títulos bombásticos
ou o Mapa ou a Batalha, já para não falar no Avante!. Ele
aí ganha o dia, para colmatar a falta de material das redes sociais, em si
mesmo uma falta suspeita, de quem não tem Facebook, nem Instagram, nem qualquer
outro fluxo de fotografias de almoços, pequenas e grandes fúrias, boatos e
calúnias, nem sequer frases crípticas como “que farei quando tudo arde”,
suspeita de incendiário que cita um tipo com nome nas ruas Sá de Miranda. Será
que ele pensa incendiar alguma coisa na Rua Sá de Miranda? Embaixada,
escritório, loja? O “pide” procura na Rede o que é que há na Rua Sá de Miranda
de Lisboa, Porto, Coimbra. Que trabalheira, tanta Rua Sá de Miranda. Ou será
uma escola secundária, ou será uma pessoa?
Depois, vêm os
dados do almoço e do jantar, o que comeu, com quantas pessoas comeu. Uma é
suspeito, duas é ainda mais suspeito, três começa a conspiração. A seguir
chegam os dados da farmácia e, mais importante ainda, da Via Verde. Onde entrou
e onde saiu, quanto tempo demorou. Parou numa área de serviço para ter um
encontro, ou para entregar sub-repticiamente um pacote? Acede-se então às
câmaras de vigilância. Saiu no Porto, será que a Rua Sá de Miranda onde “tudo
arde” é no Porto? Bom, há ali umas instalações universitárias, e perto está o
Jardim da Arca de Água e, como ele comprou o Ambientalista Céptico, será
que vai envenenar
os patos? O “pide” toma nota para posterior investigação. E por aí adiante.
A questão é simples:
se houver uma deriva autoritária (e em muitos aspectos estas tecnologias
“empurram” para essas derivas), o “pide” moderno não precisa de qualquer lei
especial, só acesso. O “pide” lastima-se mentalmente pelo facto de os humanos
ainda não terem chips como os cães e passa em revista os mil e um
argumentos de eficácia que justificariam os chips. O problema é que os
cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha
médica e o número fiscal metido no corpo.
Os cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha médica e o número fiscal metido no corpo
Como nos
defendemos? Deixando de lado, ir para uma zona sem rede, não usar multibanco
nem telefone, não ter conta bancária, etc., etc., e mesmo assim tudo
imperfeito, não há defesa possível. Este é o mundo onde nascemos e onde vamos
morrer, e nesta matéria é mau, muito mau, destruiu duzentos anos de luta pela
privacidade, pela individualidade e por direitos dos cidadãos face ao Estado.
Pode tudo ser mitigado, mas de forma pouco eficaz.
O “pide”
anotou: atenção, ele está denunciar os nossos métodos, e vai à ficha
electrónica e classifica-o como “libertário tecnológico”, partidário do general
Ludd, ou um seguidor do Unabomber. Perigoso.
O autor é
colunista do PÚBLICO
https://www.publico.pt/2023/04/01/opiniao/opiniao/pide-moderno-2044611
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