* José Pacheco Pereira
Opinião - Derrubar
o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (I), por José
Pacheco Pereira 15 de Abril de 2023
Misturam-se coisas sérias com trivialidades, porque o que conta é criar uma ecologia tóxica, e não a relevância do que se “denuncia”. O que conta é a repetição, o estilo e o DR
1. Este
é um artigo que escrevo por alguma coisa parecida com o dever. Preferia não o
fazer. Exactamente porque vivemos na ecologia tóxica em que vivemos, é fácil
fazê-lo dizer aquilo que ele não diz. Mas vale a pena correr esse risco.
2. Não
se indignem com a palavra estuporar. É sólido português e nem sequer é um
plebeísmo, só caiu em desuso porque hoje falamos com cada vez menos palavras,
ficando com isso cada vez mais pobres. Mas é mesmo o que eu quero dizer com a
exacta palavra. Vivemos hoje um momento em que para obter ganhos políticos
contra o Governo se cria um ambiente tóxico de radicalização em que vale tudo
desde que daí possa vir prejuízo para o actual Governo socialista de António
Costa. O efeito principal não será sobre os governos, que vão e vêm, será sobre
a democracia. É ela que, pelo caminho, está a ser estuporada pelo “vale tudo”
actual e pela incompreensão de que há hoje um efeito de ampliação com
mecanismos de desgaste no interior das democracias que são novos. Fazer o que
está a ser feito é hoje muito mais perigoso do que no passado.
3. É
fácil insinuar que o que me preocupa é a sorte do Governo e que isso é
situacionista. Não é verdade. Não me esqueço de que o Governo é um governo
medíocre, com raras excepções, porque há excepções. Muito do que hoje facilita
a corrosão da democracia deve-se ao Governo e às suas asneiras, que nem sequer
percebe o mal que está a fazer e a permitir que se faça. É este segundo aspecto
que me interessa, o do “permitir que se faça”, porque hoje o situacionismo é
participar e alimentar neste ar tóxico em que estamos envolvidos. O Governo e a
sua sobrevivência são o menor problema.
4. Dito
isto, também não esqueço um aspecto fundamental da democracia que é a forte
legitimação de um governo que tem uma maioria absoluta. Enquanto não houver
eleições que mudem o peso relativo político dos partidos e dêem a outros a
legitimidade do poder, não são as sondagens que são critério, nem sequer a
nuvem de “casos e casinhos”, desde que a justiça funcione para os “casos”, a
liberdade de escrutínio para os “casinhos”, e não haja perturbação no
funcionamento das instituições, como não há. Os apelos à dissolução da
Assembleia e ao derrube do Governo são mais um elemento da radicalização. Não
há comparação possível entre as “trapalhadas” de um governo com escassa
legitimidade política, ainda por cima herdada, e as de um governo com uma
sólida maioria parlamentar, com uma oposição frágil e dividida. Se houvesse
dissolução da Assembleia na actual situação, não teria qualquer precedente
válido. Deste ponto de vista, o Presidente tem actuado correctamente.
5. O
problema é que, com o objectivo de se derrubar o Governo a todo o custo, está a
estragar-se a democracia. É um truísmo perigoso achar que a democracia aguenta
tudo. Não estamos a falar do dever do escrutínio nem de análise, que é sempre
bem-vinda, estamos a falar de campanhas políticas e politizadas usando a
comunicação social. A comunicação social teve uma enorme viragem à direita que
começou durante o Governo Passos-Portas-troika e se radicalizou com a
maioria absoluta do PS. Onde antes a esquerda tinha a hegemonia, hoje o
dinamismo político encontra-se à direita que ocupa a parte de leão, por
exemplo, do comentário político na televisão, na rádio e nos jornais. O efeito
de repetição e a saturação de temas, motivos e, acima de tudo, alvos são hoje
definidos à direita, mas esse é apenas o pano de fundo de um processo que tem
outra dimensão e, acima de tudo, outros métodos. São esses métodos que estão a
estuporar a democracia criando uma elevada toxicidade na acção política.
6. O
pretexto parte muitas vezes de “casos” reais, mas que são inseridos num fluxo
que não é nem informativo, nem comunicacional, mas politicamente instrumental.
O clima é persecutório. Deixou de haver a presunção da inocência, e os
desmentidos, mesmo quando revelam mentiras e manipulações grosseiras, ou quando
significam a conclusão judicial pelo arquivamento por falta de provas ou a
absolvição, raramente são noticiados ou são remetidos para um fundo de página.
Há alvos a abater, que uma vez abatidos passam a mira para outros alvos. Há
técnicas de saturação que misturam coisas sérias com trivialidades, porque o
que conta é criar uma ecologia tóxica, e não a relevância do que se “denuncia”.
Tudo é, aliás, tratado do mesmo modo, porque resulta tratá-lo do mesmo modo. O
que conta é a repetição, o estilo e o tom.
Há críticas
com razão? Certamente que há, mas a duplicidade de critérios, o andar para trás
e para a frente, tem uma única constante: o alvo
7. Toda
uma panóplia de técnicas de manipulação, duplos critérios, sanha persecutória,
sugestões de ilegalidade quando não existem ilegalidades, interpretações ad
terrorem, ataques contra as pessoas e seus familiares, mecanismos em
círculo vicioso – ou falou de mais e não devia ter falado, ou falou de menos e
devia falar mais, ou não falou e devia ter falado, ou falou mas não disse nada,
ou está silencioso porque tem culpa – e o arsenal clássico da sugestão da
falsidade e da omissão da verdade. E não é só o que se diz, é também o que se
cala, omite ou minimiza. E é o tempo da fala – falou hoje mas devia falar
ontem, falou ontem mas devia ser hoje, foi com aquele pretexto mas devia ser
com outro, etc. –, é um labirinto sem saída. No meio disto tudo há críticas com
razão? Certamente que há, mas a duplicidade de critérios, o andar para trás e
para a frente, tem uma única constante: o alvo. E a escolha e o modo de
tratamento do alvo são puramente políticos.
8. A
politização panfletária de quase toda a comunicação social tem efeitos
perversos no próprio funcionamento da democracia, gerando um ambiente de
permanente excitação, em que predomina o pathos e perde o logos.
(Continua...)
O autor é
colunista do PÚBLICO
Opinião - Derrubar
o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (II), por José
Pacheco Pereira 22 de Abril de 2023
Pode dizer-se
que a “canalha” sempre falou assim, mas o altifalante que tem hoje impede que
se ouça qualquer outra coisa, e isto é novo.
(...)
9. A
enorme crise de racionalidade no discurso público não vem de agora, e foi já há
muito teorizada à volta da “sociedade-espectáculo”, mas existe hoje um efeito
potenciador que não existia, quando era a televisão o principal veículo dessa
patologia do espaço público democrático. Esse efeito assenta na ilusão de
participação, que sempre esteve presente mesmo imperfeitamente nos meios de
comunicação tradicional, mas que agora o sistema conhecido como “redes sociais”
não só amplifica como gera uma mutação comportamental. Essa mutação favorece o
populismo com dois efeitos poderosos: um é a ideia de que, escrevendo e
publicando nos múltiplos locais de “conversa” e imprecação, se está a
participar; outro é um igualitarismo agressivo, tribal, radicalizado, que destrói
qualquer ideia de mediação e qualquer discurso democrático. Pode dizer-se que a
“canalha” sempre falou assim, mas o altifalante que tem hoje impede que se ouça
qualquer outra coisa, e isto é novo.
10. O
resultado deste processo é transformar toda a comunicação numa extensão das
cloacas das redes sociais, num ciclo alimentar quotidiano que se presta às mil
maravilhas à politização radical. É o que acontece hoje em Portugal,
estuporando a democracia, para tentar derrubar um governo ao mesmo tempo
medíocre e legítimo. É verdade que o Governo é medíocre, mas está longe de ser
o primeiro a sê-lo, e, em democracia, não havendo crise no funcionamento das
instituições, que não há, os governos derrubam-se em eleições.
11.
Capas, títulos, temas na chamada “comunicação social de referência”, que não
tem resistido à pressão de uma ofensiva que é politizada de uma ponta à outra e
que nada tem que ver com o jornalismo. É um processo suicidário para uma
comunicação social séria. Um exemplo são os vários programas estão a ser
criados dentro dos noticiários, partindo dos modelos de verificação de dados,
para, pela escolha dos assuntos muitas vezes assentes em denúncias, dar uma
imagem de disfuncionalidade do Estado, logo da responsabilidade do Governo.
Portugal é o país onde tudo funciona mal, o que não é verdade, mas o efeito
casuístico, sem cobertura estatística ou noutros dados, quase sempre sem uma
verificação exigida pelas regras da deontologia, cria uma indústria de
“denúncias”. Como o sector privado não entra nas avaliações, a não ser uns
lares de idosos miseráveis, gera-se o efeito ideológico sem qualquer
sustentação nos factos de que tudo no Estado funciona mal, e tudo no privado
funciona bem.
12. Há
alvos que são mais alvos do que outros. Aparentemente os alvos estão à
esquerda, principalmente no PS, no BE, mas na verdade os ataques são para os
sectores moderados no PS, porque são a espinha dorsal do partido no poder.
Pedro Nuno Santos foi um alvo acidental, porque os alvos principais são Medina
e Costa, como no passado foi Rio no PSD. É o centro-esquerda e o
centro-direita, o empecilho para a radicalização, por isso, por tortuoso que
seja o caminho, é lá que ele vai dar. Outros que fizeram o mesmo ou pior são
poupados ao massacre quotidiano, em particular todos os que estão do lado
“certo”. É por isso que não se queria que a comissão de inquérito da TAP
chegasse à privatização, mesmo quando vários “casos” que não são “casinhos”
atingiam a privatização e a gestão privada.
Há alvos que
são mais alvos do que outros. Pedro Nuno Santos foi um alvo acidental, porque
os alvos principais, são Medina e Costa, como no passado foi Rio no PSD. É o
centro-esquerda e o centro-direita, o empecilho para a radicalização
13. É um
erro pensar que esta ofensiva vem do Chega. O Chega é um instrumento, é um
parceiro menor que é necrófago. Está no fundo do mar alimentando-se dos
cadáveres que se afundam. Vem de uma conjunção de pessoas, grupos e lobbies
privados que tem vindo a financiar de forma muito significativa um aparelho
ideológico e de propaganda com peso significativo em certas universidades e num
sistema comunicacional, muito profissionalizado e muito capaz, e que impregna
toda a comunicação social. A ele se associam vários “intelectuais orgânicos”
conhecidos pelas suas relações com a direita radical. Vários jornais
deficitários, sem vendas nem viabilidade, juntam-se a projectos mais
consistentes, onde políticos transvestidos de jornalistas fazem agit-prop,
e que num mesmo dia fazem o ciclo da manhã na rádio, na tarde na RTP, à noite
na SIC, TVI, na RTP. Um dos aspectos mais eficazes é a “conversa” na rádio nos
horários nobres da manhã, usando com muita eficácia e profissionalismo o
carácter intimista da rádio. Nos EUA, a rádio é um dos maiores investimentos do
sector mais radical de apoio a Trump.
14. Esta ofensiva agrupa vários interesses, muitas vezes definidos por aquilo que são contra, muito parecidos com os financiadores do Partido Republicano de Trump, que pretendem aumentar a sua influência e manter intocável o seu direito virtual de veto em tudo o que mexa nos seus interesses, no plano empresarial, no plano laboral, nos impostos, nas obrigações e nos mecanismos de regulação. Por que razão Montenegro chama “comunista” a Costa? Porque esta é a linguagem de interesses feridos na habitação, na distribuição, nos portos, nos transportes, no turismo, na agricultura intensiva, sempre que há polémicas envolvendo vários empresários ou empresas destes sectores, como acontece com a especulação com os preços, com a desregulação dos arrendamentos, com as condições de trabalho dos imigrantes nas estufas do Alentejo, com a atitude do sector privado da saúde face à covid, com a especulação mobiliária, com as situações de assédio nas fábricas, com a actuação da ASAE, todo este sistema comunicacional grita “comunista” de uma forma mais sofisticada do que Montenegro, mas com o mesmo conteúdo.
15. Quando
falo dos interesses, não implica homogeneidade da resposta do “capital” e do
seu envolvimento nesta radicalização política. Esta não vem de cima, não vem
dos émulos das grandes empresas, vem da versão nacional do empresário do
MyPillow, apoiante de Trump. Os grupos económicos mais importantes, bancos e
empresas do PSI20 podem ocasionalmente financiar algumas iniciativas deste
sector mais radical, principalmente nas universidades, mas sabem de mais para
se comprometerem, entre outras coisas porque sempre se deram bem com o PS,
precisam de estabilidade política e não a trocam por um curso das coisas
demasiado imprevisível.
16. A
democracia pode suportar tudo isto? Em abstracto sim, no concreto não. Há hoje
uma crise interior da própria democracia, com fenómenos novos, que dão uma
dimensão muito perigosa ao que se está a fazer. Esta toxicidade tornará mais
“inorgânica” a nossa democracia, ou seja, pior, mais estuporada. Parte desses
estragos vão tirar poder ao voto, aos procedimentos da democracia, aos tempos
da representação, aos partidos políticos e dá-lo a poderes fácticos que usam o
populismo, para defenderem interesses.
O autor é
colunista do PÚBLICO
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