* Daniel Oliveira
A meteorologia
foi das primeiras a usar inteligência artificial (IA) para modelos de previsão.
E, no entanto, como explica João Gabriel Ribeiro, diretor da “Shifter”, mesmo sendo uma ferramenta indicada para o
fazer, a IA “não seria capaz de perceber se está a chover ou o significado da
chuva de um modo geral” além do que pode ser traduzido em dados, através de um
modelo prévio. Como a IA “nunca se molhou” nunca saberá mais do que a
“descrição do que é estar molhado”. Por isso, conclui: “Aquilo que conhecemos
por IA é cada vez menos similar à nossa inteligência.” Há, no temor de a nossa
inteligência ser substituída por máquinas, algum desrespeito por ela. Se
perguntarmos ao ChatGPT como resolver os problemas da habitação ou da inflação
ele vai dar as respostas que mais encontra no espaço público, por serem as mais
prováveis. Só parecem neutras porque são plausíveis. Não as vai pôr em causa ou
verificar se as soluções resultaram. Num processo opaco, até para quem o
concebeu, pode oferecer-nos o erro sem se socorrer do mecanismo mais humano da
inteligência: a dúvida. O que a IA faz é replicar a nossa mediania com a
arrogância do acesso quase ilimitado a bases de dados.
Quem acha que o
jornalismo pode ser substituído por isto é porque assumiu que ele dispensa a
incerteza para oferecer a resposta provável, mesmo que seja falsa. Pode ser
assustador fotografias geradas por IA vencerem concursos, mas, para se falar de
arte, o fundamental continua a ser o mesmo de sempre, dependente da
inteligência humana e muito para lá da técnica: ter alguma coisa improvável
para dizer. Os professores não receiam que a IA simule a capacidade de pensar
diferente, de pôr em causa, de inovar. Receiam que chegue para replicar a
formatação que a escola impõe a adolescentes desmotivados da sua criatividade
para se alinharem com a mediania. Claro que temos de treinar capacidades
básicas. As que nem as calculadoras deveriam substituir. Mas se a máquina pode
tomar o lugar do aluno, a escola obstinada com a memorização não andará a ser
pouco exigente com os jovens cérebros? Se a escola treina para repetir,
qualquer computador a substituirá. Se a inteligência humana pode ser vencida
pela inteligência artificial, quando esta dá os primeiros passos, é porque lhe
andamos a dar pobre uso.
A tecnologia
oprime em vez de libertar porque a sociedade assim está organizada. Para vencer
os perigos da máquina não se destrói a máquina, mas as relações de poder que a
põem ao serviço da opressão. Seremos dominados pela IA porque, neste
capitalismo, estamos reduzidos a ser produto e produtores. O problema não é
tecnológico, é político
Não quero
parecer otimista. Não podia estar mais longe do deslumbramento tecnológico que
mais não é do que o deslumbramento pela desumanização da vida. Não tenho
qualquer ilusão sobre a nossa capacidade de dominar o monstro de Frankenstein
porque não tenho qualquer ilusão quanto à capacidade deste capitalismo nos
libertar da condição de produtos e produtores. Seremos dominados porque já o
somos. Não deixámos que os algoritmos das redes sociais controlados por
ditadores da estupidificação geral determinassem o rumo das democracias? Não
permitimos a complexificação desregulada de um sistema financeiro que nos atira
para crises sucessivas? Não estamos a entregar o monopólio estatal da criação
de dinheiro ao submundo das criptomoedas? Não foi por desistência dos Estados
que o desenvolvimento da IA tenha acontecido, ao contrário do que era habitual,
sem financiado e enquadramento público?
Recordo-me da
clonagem da ovelha “Dolly” ter levado a um debate transversal e à imposição de
limites. Nada a ver com um abaixo-assinado a pedir seis meses de espera para
avaliar os riscos da IA, que conta com o nome de Elon Musk, envolvido no
financiamento inicial da OpenIA e que está a preparar uma startup rival. Quem tem recusado a transparência e a
regulação do Twitter está preocupado com a distopia de uma tecnologia sem freio
ou com o seu lugar nessa distopia?
Não sou nem
tecnoentusiasta, nem ludita. Sei que a tecnologia tende a reforçar as relações
de poder que existem. Para vencer os perigos da máquina não se destrói a
máquina, destroem-se as relações de poder que a põem ao serviço da opressão.
Não foram as plataformas de distribuição e serviços que transformaram a
proposta de uma economia colaborativa em instrumento de promoção do
empreendedorismo escravo. Foi a castração do papel regulatório dos Estados e a
perda de poder de sindicatos e trabalhadores. A tecnologia serve para oprimir
em vez de libertar porque a sociedade assim está organizada.
Li, num texto de Francisco Mendes da Silva, que, segundo um estudo da Universidade de Oxford e do Future of Life Institute, os investigadores da IA acham que o seu trabalho tem, em média, 10% de probabilidades de conduzir a Humanidade à extinção. O que quer dizer que há muita gente convencida que está a trabalhar para o fim do mundo. E, na realidade, são otimistas. As alterações climáticas estão a correr mais depressa para a nossa extinção e chamamos histéricos aos jovens que as tratam como uma questão de vida ou de morte. E nada fazemos para controlar a ganância de banqueiros ou regular o faroeste das redes sociais com as regas que tínhamos como óbvias em sociedades democráticas. Se caminhamos para a extinção, o problema não é tecnológico, é político.
Sem comentários:
Enviar um comentário