terça-feira, 27 de junho de 2023

Gustavo Carona - Naufrágios, milionários e a perversão da empatia,

 OPINIÃO O QUE SIGNIFICA SER HUMANO?

Gustavo Carona 


27 de Junho de 2023

A comparação dos cinco milionários que morreram cedo demais com a tragédia humana da crise dos refugiados é pertinente porque nos confronta com a perversão da nossa empatia.

“Ficou chocado?”, foi esta a primeira pergunta feita por Júlio Magalhães em directo para a CNN, como ponto de partida para reflexão sobre este assunto. Confesso que a pergunta até me surpreendeu porque já tantas vezes pensei, reflecti e escrevi sobre isto, que para mim este fenómeno é óbvio, infelizmente, mas também é óbvio que a sua resolução passa pela tomada de consciência e desconstrução do funcionamento das nossas sinapses cerebrais, neste mundo estranho que é a inteligência das emoções.

Há quem se revolte com o possível facto de que esta estória se tornou no assunto dominante nos media, por serem cinco milionários excêntricos . E como os que  são pobres, tornamo-nos indiferentes. Há uma pitada de verdade nestas premissas, mas eu diria que o cerne da questão não é esse.mÉ a espectacularidade da estória que molda a nossa empatia. É o facto de ser inusitado e também de ter um fim, bom ou mau, à vista. A nossa empatia só entra quando nos relacionamos com os intervenientes, e de alguma forma sentimos que nos podia ter acontecido a nós. E ninguém se projecta ou sabe o que é, por exemplo, ser afegão ou afegã, fugir dos taliban por medo de morrer, arriscar a vida com os criminosos traficantes de humanos na Líbia, e mesmo sabendo que todos os anos morrem na ordem das 2000 pessoas afogadas no Mediterrâneo, tomam a decisão de se meterem nos barcos, com crianças, grávidas e idosos doentes. Como não nos imaginamos nesta estória, não a sentimos. 

Mohammad, um sobrevivente sírio do naufrágio ao largo da Grécia, chora ao encontrar-se com o irmão REUTERS/STELIOS MISINAS

Eu já vivi no Afeganistão numa zona muito complicada da guerra, conheci dezenas de afegãos com quem fiz boas amizades, mas eu também não sei o que é estar na pele deles, porque eu tenho um passaporte e um contrato com uma grande organização médica que me permite “carregar no botão vermelho” e regressar à segurança e ao conforto do meu país, quando eu quiser. Eles não têm essa opção. Mesmo estando lado a lado e de coração aberto, não sei o que é estar na pele deles. O melhor que eu posso fazer é ouvi-los, humanizar as suas estórias, e nunca esquecer a minha melhor interpretação de humanismo e humanitarismo: proporcionalidade. A nossa atenção e a nossa acção têm que ser proporcionais à dimensão dos desafios humanos.

A estória de Ryan, o menino que caiu num poço em Marrocos, e os 12 rapazes  provam o meu ponto. São pessoas humildes e anónimas que fizeram parar o mundo, e conseguiram unir todos os esforços do planeta para que se salvassem as suas vidas. Sim, porque temos empatia, mas, acima de tudo, porque as estórias são espectaculares e concorrem com a Netflix.pTodos temos empatia, e a empatia é um sentimento poderosíssimo, mas como qualquer superpoder, por vezes é usada de uma forma perversa, mesmo sem nós nos darmos conta desse fenómeno.

A comparação dos cinco milionários que infelizmente morreram cedo demais com a tragédia humana da crise dos refugiados, tipificada num caso bem recente em que morreram cerca de 500 refugiados e migrantes, que ganha força a reboque da estória do mini-submarino, é pertinente porque nos confronta com a perversão da nossa empatia, e as assimetrias com que valorizamos as vidas humanas.

E eu ainda acrescento um ponto. Há muita gente a lutar, e muito bem, pela humanização do acolhimento aos refugiados, mas muito pouca gente a tentar alertar e a combater a questão de base: a resolução do motivo que os leva a fugir da sua amada pátria, em luta pela sobrevivência.

Proporcionalidade. As boas causas não se anulam, adicionam-se. Se não lutarmos pela solução in loco; dos conflitos armados, da fome, das alterações climáticas (esta, global, claro está), da falta de educação escolar… no fundo, a luta contra a desigualdade, vamos ter sempre tensões e migrações cruéis. Ajudar os refugiados, repito, é extremamente importante, mas, por si só, é como tentar esvaziar o oceano com uma colher de chá. Se não formos ao foco dos problemas com humanismo, empatia, proporcionalidade e consistência, nunca teremos uma humanidade digna do seu nome. Não há soluções simples para problemas complexos, mas há caminhos que têm que ser percorridos. Sentirmo-nos cidadãos do mundo é um deles.

Muitos gritam: “A culpa é dos media que não nos mostram, e dos políticos que não querem saber!”, e eu digo que não me parece que assim seja. Em democracia, os media e os políticos não são líderes, são seguidores das nossas vontades e das nossas escolhas. Cabe-nos a nós “explicar-lhes” o que queremos saber, e para onde queremos olhar com o nosso pensamento humano e político. Somos nós que escolhemos, e eles seguem-nos.

Reconhecer o poder, mas também a perversão da nossa empatia, é o primeiro passo na luta por um mundo melhor. O mundo enquanto uma bolinha azul onde nós vivemos, e também o nosso mundo interior, que precisa do outro, para ser feliz

Alguns números para reflexão:

5 pessoas morreram no mini-submarino.

500 pessoas morreram recentemente no Mediterrâneo (100 eram crianças) em circunstâncias em que se estima terem morrido 25.000 pessoas desde 2014.

2977 pessoas morreram no ataque às Torres Gémeas. Cerca de 1.000.000 a 2.000.000 morreram nas guerras de retaliação no Afeganistão e Iraque.

5.000.000 de crianças morrem antes dos cinco anos, todos os anos, de causas na sua maioria facilmente tratáveis ou evitáveis.

68.000.000 de crianças não têm a vacinação básica da infância que salva milhões de vidas, são 20% das crianças do mundo.

800.000.000 de pessoas estão em risco de morrer à fome neste momento.

4.000.000.000 de pessoas não têm acesso a cuidados de saúde de uma forma continuada, é metade da população mundial.

Desculpem tantos zeros, em vez da palavra milhões, mas ajuda-me a perceber que ali dentro de cada número está uma pessoa igual a mim.

São tudo números, e são tudo pessoas que têm os mesmos direitos a viver do que nós, se não formos xenófobos ou racistas. Para mim, ser português é uma questão administrativa. Ser, humano, tem que estar acima de qualquer outro rótulo identitário. Eu não sei se isto é ser de esquerda ou direita, porque considero a ciência e os direitos humanos inegociáveis, e coloco-os acima de tudo o resto como verdades universais e transversais a qualquer ponto do planeta.

A continuidade de qualquer tragédia humana faz com que nós nos afastemos, e faz com que deixe de ser notícia porque a nossa empatia aborrece-se com o assunto. Mas as emoções também se trabalham, também se treinam e também se ensinam.

Reconhecer o poder, mas também a perversão da nossa empatia, é o primeiro passo na luta por um mundo melhor. O mundo enquanto uma bolinha azul onde nós vivemos, e também o nosso mundo interior, que precisa do outro, para ser feliz.

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

Médico intensivista

https://www.publico.pt/2023/06/27/opiniao/opiniao/naufragios-milionarios-perversao-empatia-2054730  


sexta-feira, 23 de junho de 2023

António Rodrigues - O brilho da civilização ocidental é apenas verniz e está estalado

4 ESQUINAS
O brilho da civilização ocidental é apenas verniz e está estalado
O mundo que se conta a partir do que se diz.

* António Rodrigues
23 de Junho de 2023, 7:00


“Não éramos nada. Éramos apátridas. Estávamos entre dois mundos como o nosso barco, navegando para trás e para a frente entre dois continentes. Um dos mundos tinha-nos rejeitado; o outro não nos quisera quando tanto precisávamos da sua ajuda.” Margot Friedlander, antiga refugiada judia

Holandês voador
A União Europeia não tem uma missão europeia de salvamento no Mediterrâneo. Cada país costeiro ou insular é responsável pelas operações de ajuda na sua área. E a coordenação entre as guardas costeiras dos diferentes países é, no mínimo, deficitária. Além do mais, há suspeitas de que cada um dos países tenta postergar ao máximo a sua intervenção para ver se o problema cai no colo do seu vizinho, livrando-o do trabalho. No caso da traineira que afundou na semana passada ao largo da costa grega, os indícios apontam para isso.

O eurodeputado Pietro Bartolo tentou fazer passar no Parlamento Europeu (PE), no princípio desta legislatura, uma resolução para criar um serviço de busca e salvamento europeu, mas, estranhamente, a proposta acabou chumbada por dois votos. “Tive uma pena que tal tivesse acontecido, mas garantidamente a Europa tem de fazer alguma coisa”, disse Bartolo à Euronews, durante a visita esta semana de uma delegação do PE à ilha italiana de Lampedusa, o território europeu geograficamente mais perto de África.

O segundo pior naufrágio de migrantes na história recente do Mediterrâneo, em que terão morrido mais de 500 pessoas, grande parte delas mulheres e crianças, já foi, entretanto, abafado mediaticamente pela caça ao submarino de turismo para ricos que desapareceu no Atlântico Norte, e é pouco provável que o seu impacto venha a alterar a política europeia em relação aos desesperados que arriscam a vida para chegar a um qualquer bom porto que os receba.

O que Bruxelas parece desejar mesmo é que a questão desapareça por si só ou que as embarcações dos traficantes de seres humanos sejam condenadas, como o filibote do capitão Vanderdecken da lenda do holandês voador, a errar pelos mares sem nunca chegar a terra.


A civilização é cruel
A Austrália tem uma história de colonização faroestiana no far east, que é como quem diz, aplicou a lei do mais forte sem escrúpulos desde o estabelecimento da primeira colónia europeia, a 26 de Janeiro de 1788, em detrimento dos autóctones que tiveram de esperar dois séculos para começarem a ver alguns dos seus direitos reconhecidos.

Mas nem os condenados ao degredo com que no século XVIII se começou a colonização mereciam o tratamento que o actual Estado australiano concede a Hamid, um refugiado iraniano que tentou alcançar a costa da Austrália e foi enviado para o Centro de Processamento Regional de Nauru, inaugurado em 2001 para lidar com os migrantes que procuram asilo no país.

Camberra estabelecera como política que nenhum dos migrantes detidos a tentar chegar à Austrália poria um pé no seu território, mesmo aqueles com direito ao estatuto de refugiado de acordo com o direito internacional. Algumas centenas conseguiram ir para os Estados Unidos e a Nova Zelândia chegou a oferecer-se para receber 150 por ano, oferta recusada pelos australianos.

Hamid passou nove anos em Nauru, detido como outros, por tentar alcançar uma vida melhor. Em 2019, separaram-no dos seus dois filhos adultos; em Fevereiro deste ano, levaram-no para Brisbane, na Austrália. Segundo o Refugee Action Group, enquanto a maioria dos migrantes transferidos de Nauru são libertados ao fim de uma ou duas semanas (desde que o Governo trabalhista assumiu o poder, já só restam 13 detidos no centro de processamento), Hamid foi mantido confinado num hotel durante meses até ser transferido para um centro de detenção a 7 de Junho.

“Não sou um criminoso. Não vim para a Austrália ilegalmente”, disse à emissora neozelandesa RNZ. “Querem matar-me gradualmente com tortura mental”, acrescenta. “Libertam toda a gente à minha frente. O que é isto ao fim de dez anos? Depois de dez anos, puseram-me num centro de detenção com uma data de criminosos. O que é isto? É tortura.”

Há gerações e gerações
Esta quinta-feira passaram 75 anos da chegada do navio HMT Empire Windrush às docas de Tillbury, no Essex. Os 492 migrantes que desembarcaram provenientes de países das Caraíbas marcavam, sem saber, o princípio da história do Reino Unido moderno, marco de um movimento migratório que nos 25 anos seguintes chegava para ajudar à reconstrução do país das ruínas da II Guerra Mundial e que haveria de moldar a nova Albion a partir do seu império desmembrado.

A chamada geração Windrush abarca o movimento migratório que chegou ao país entre 1948 e 1971, incentivada pela necessidade de mão-de-obra do Estado britânico. Muitos deles, conta a BBC, tornaram-se trabalhadores manuais, condutores, empregados de limpeza e enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que dava os primeiros passos.

O primeiro-ministro, Rishi Sunak, sublinha essa ligação na sua mensagem a assinalar a data: “Desde salvar as nossas vidas no nosso magnífico NHS e criando e liderando prósperas empresas até representar o Reino Unido no cenário mundial como atletas profissionais, a Geração Windrush e os seus descendentes têm sido parte integrante do tecido social, cultural e histórico do Reino Unido.”

Palavras de circunstância de um governo britânico liderado por um filho de imigrantes indianos provenientes da África Oriental e que tem na ministra Suella Braverman, cujos pais vieram do Sul da Ásia, a maior defensora do envio de migrantes para o Ruanda enquanto aguardam pela resolução dos seus pedidos de asilo no Reino Unido.

Como escreve o activista e jornalista comunitário Chaka Artwell, filho de imigrantes caribenhos, no único comentário à mensagem de Sunak publicada no The Voice, “historicamente, o primeiro-ministro e os seus militantes e eleitores do Partido Conservador têm feito de tudo para prejudicar, minar e excluir os filhos da Geração Windrush”.


“Não se esqueçam”
Aos 101 anos, Margot Friedlander continua a honrar os mortos do Holocausto dando significado à sua existência. A mãe e o irmão morreram no campo de extermínio de Auschwitz, depois de Estados Unidos, Reino Unido e Xangai (onde aportaram 30 mil refugiados judeus durante a década de 1930) se terem sistematicamente negado a conceder vistos à família para fugir da perseguição nazi.

Sobrevivente do campo de concentração ou gueto de Theresienstadt, esta judia nascida em Berlim, que em 1946 haveria de embarcar para Nova Iorque como refugiada com o marido (voltou aos 88 anos para a sua terra depois da morte dele), continua ainda hoje a honrar o pedido que a mãe lhe deixou quando foi levada para Auschwitz: “Tenta fazer algo da tua vida.”

Apesar de ter construído uma vida na América, nunca sentiu que aquela fosse a sua pátria. Nem ali, nem em nenhum outro lado. A sua pátria “está no passado; num país que já não existe”, contava ao site da Unicef na terça-feira, Dia Mundial do Refugiado.

Nem o facto de ser já centenária a impede de ter uma agenda preenchida. Falando com alunos nas escolas, participando em leituras ou em palestras, Margot Friedlander conta a sua história, a da sua família e a dos outros judeus que morreram no Holocausto, todos os dias para que o esquecimento não nos faça pensar que a barbárie nazi é, como a sua pátria, uma coisa do passado – nem que os nazis foram uma excepção na “banalidade do mal”.

“Não falo por mim. Falo pelos que não podem falar, e não só pelos seis milhões de judeus, mas por todos os que não conseguiram. Não se esqueçam destas pessoas. Eram seres humanos. Somos todos seres humanos, o que nos resta sem a nossa humanidade?”

tp.ocilbup@seugirdor.oinotna 

https://www.publico.pt/2023/06/23/mundo/cronica/brilho-civilizacao-ocidental-apenas-verniz-ja-estalou-2054329?f 

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Daniel Oliveira - O mercado é o maior censor,

OPINIÃO  - 

*  Daniel Oliveira (Expresso 2023 06 22)

A pressão para adaptar livros para crianças à moral dominante nem vem apenas de um lado, nem é nova. Mas desapareceu o aparente consenso sobre essa moral e a clivagem esconde-se atrás de um debate sobre a censura. Com os livros para adultos o debate é diferente. As editoras não contratam “leitores sensíveis” porque estão preocupadas com as minorias. Só querem prever as reações do mercado

Foram reescritas passagens dos livros de Roald Dahl para fazer desaparecer termos considerados ofensivos. “Gordo” foi substituído por “enorme” (é menos ofensivo?), “homens-nuvem” passaram a ser “pessoas-nuvem” e o resto conseguem imaginar. Como escreveu Rogério Casanova, num texto a que regressarei, “o que torna este caso hilariante é quão inadequados são os livros de Dahl, em qualquer versão, como veículos de instrução moral.” Este movimento de edição de obras literárias foi criticado por muitos autores, alguns com a autoridade moral de Salman Rushdie, que arriscou a vida para resistir a outros moralistas.

Segundo o Telegraph, as alterações à obra de Roald Dahl foram feitas por uma organização com o sugestivo nome de “Mentes Inclusivas”, que oferece serviços editoriais. Clara Não terá escrito, para justificar a associação da causa feminista a uma campanha da L’Oréal, que capitalizava o bem (apanhei isto no programa de Joana Marques). É disso mesmo que estamos a falar: capitalizar o bem. A editora deseja que os livros “possam continuar a ser apreciados por todos”. O capitalismo vive da permanente expansão do mercado. Para isso, derruba barreiras e faz publicidade disso.

Espanta-me que alguém se atreva a defender a reescrita de livros de autores que cá não estão para o autorizar. Espanta-me não apenas pela grosseira violação dos direitos de autoria, mas pela tentativa de transformar a arte em folhetos, retirando-lhe as impurezas das circunstâncias do autor. Uma revisão que garante revisão futura, porque os vindouros lá terão de reescrever a nossa reescrita, cheia das incorreções deste momento.

Espanta-me, sobretudo, pela proposta de amnésia coletiva. Os livros são marcas do tempo. São, na realidade, boa parte das vezes, a única que temos. Através deles sabemos como a sociedade se via a si mesma e só isso nos permite ter uma ideia de como evoluímos. Claro que o passado nos é mostrado pelos que tinham o privilégio de ser narradores do seu tempo. Mas ao reescrevermos o seu olhar não lhe acrescentamos os olhares de quem não teve direito à sua própria narrativa. Só acrescentamos o nosso olhar anacrónico. Porque da mesma forma que um branco não pode ser um negro, um negro do século XXI não pode ser um negro do século XIX, mesmo que se julgue com essa autoridade ancestral.

LER É INCÓMODO

Os livros têm, ainda por cima, uma vantagem sobre as estátuas: não se impõem a quem não os quer ler. São rastos de poder, é verdade, mas se queremos reescrever as relações de poder escrevemos os nossos próprios livros, que se acrescentam às camadas que vão contando a história.

Ao “E tudo o Vento Levou”, um sucesso nas estantes e nas bilheteiras, que foi criticado por ignorados protestos de ativistas negros, acrescentamos "Um Tambor Diferente", de William Melvin Kelley (o que terá criado o termo "woke"), e aprendemos a ler, no seu tempo, "Não Matem a Cotovia" ou “A Cabana do Pai Tomás”. A leitura faz-se em camadas. E não se deve adaptar a leitores demasiado sensíveis para pensar ou demasiado preguiçosos para acumular leituras que permitam viajar para outros tempos.

Se a obra é para crianças, as coisas são mais complicadas. Em princípio, são os pais a moldar a história ao que querem dizer aos seus filhos ou a aproveitá-la para a pôr em causa, alimentando o sentido critico, em vez do vício da ofensa. Esta é o maior dos equívocos: não devemos ter complacência com quem substitui a critica informada e emancipada pela exigência do silenciamento do que incomoda. O incómodo faz parte da experiência da leitura. Da vida, aliás. E uma das funções didáticas da literatura é pôr as crianças em contacto com esse desconforto da vida.

Pensarão que estou a fazer uma critica ao politicamente correto da esquerda. Em parte, será também isso, apesar de não ser precisa grande coragem para exercício que está na moda. Mas, para pôr este debate em perspetiva, a pressão para adaptar ou censurar livros infantis à posição moral dominante nem vem apenas de um lado, nem é nova.

NÃO É DE UM LADO

Não me vou desviar para temas domésticos, como a censura que Santa Casa da Misericórdia impôs ao trabalho de Dori Nigro e Paulo Pinto sobre o passado escravocrata de Conde Ferreira, exposto no hospital com o nome do benemérito. Talvez deixe isso para outro texto sobre a forma como importamos polémicas ao mesmo tempo que que se vai silenciando qualquer abordagem não celebratória sobre o nosso passado. Voo de novo para longe daqui e aos livros, para não baralhar temas.

Com uma agenda política conservadora, o governador Ron DeSantis tem-se empenhado em limpar livros didáticos da “doutrinação" esquerdista. As autoridades da Flórida recusaram 85 livros de 101 e, depois trabalharem com os editores para fazerem alterações, rejeitaram 35. O termo “socialismo” saiu de um texto sobre diferentes tipos de economias e as referências ao Black Lives Matter foram censuradas de um livro para ensino médio. O Estado tem trabalhado com as editoras para aumentar o número de aprovações. Um eufemismo para dizer que as tem ajudado a fazer a devida censura política. Como a lei proíbe que a instrução leve os alunos a sentirem responsabilidade, culpa ou angústia pelo que outros membros de sua raça fizeram no passado, a editora Studies Weekly, talvez por excesso de zelo, recuou no tratamento dado à história de Rosa Parks. As restrições da Florida, que vão da escravidão ao Holocausto, não têm apenas impacto na Florida. Menos da metade dos estados aprova livros didáticos, mas entre eles estão a Flórida, o Texas e a Califórnia, o que leva as editoras a adaptarem a oferta às suas exigências.

A maior pressão para censurar materiais dirigidos a menores, sobretudo materiais escolares, não vem do movimento “woke”. Nos EUA, onde estas coisas estão ao rubro, vem dos conservadores. O argumento é quase sempre a “adequação à idade”, que assim se tenta fazer passar por neutro. E é com ele que a Florida mandou um editor retirar referências aos atletas que se ajoelham durante o hino nacional por causa da violência policial – uma violência que pode ser perturbadora para crianças –, mas mantém referências aos soldados que morrem na guerra em nome da Pátria. Tem mais a ver com adequação a uma narrativa política do que adequação à idade.

Poderão dizer que, ao contrário das pressões vindas da esquerda, o que está em causa são livros usados nas escolas, não escolhas dos pais. A isso pode responder-se que quem censura não são as editoras, por pressão do mercado, mas o próprio Estado, o que me parece ser mais grave.

NÃO É NOVO

Este movimento censório também não é novo. Voltando ao texto de Rogério Casanova, que merece ser lido, recorda-se que as várias edições de “Charlie e a Fábrica de Chocolate” já não reproduzem o texto original desde 1973. Nesse, os oompa-loompas eram “pigmeus negros” vindos “dos recantos mais escuros de África”. Da mesma forma, “Matilda” foi sendo profundamente editado.

O racismo de Enid Blyton foi duramente criticado nos anos 60, quando as três personagens de “The Three Golliwogs” eram Golly, Woggie e Nigger – mais tarde passaram a ser Wiggy, Waggy e Woggy. São bonecas de trapos, com pele negra, lábios vermelhos exagerados e cabelo frisado, associadas ao crime e aos perigos que assolavam a pequena aldeia. “The Little Black Doll” é sobre uma boneca negra odiada pela sua dona e as outras bonecas. Foge de casa e a chuva lava seu rosto, deixando-o cor-de-rosa. Depois disso, é bem recebida em casa. A editora didática Macmillan rejeitou, em 1960, “O Mistério Que Nunca Existiu”, de Blyton, porque havia “um toque nada atraente de xenofobia antiquada na atitude para com os ladrões; eles são 'estrangeiros'... isso parece ser considerado suficiente para explicar sua criminalidade”. A verdade é que Enid Blyton chegou ao nosso tempo limpa de parte dessas impurezas racistas. Muito antes de qualquer moda politicamente correta.

A atualização moral das obras infantis é tão antiga como as obras infantis. O objetivo é oferecer às crianças um conjunto de regras morais de convivência. E, se assim é, têm de se adaptar. Aconteceram, entretanto, duas coisas. A primeira é a destruição de um aparente consenso do que é a moral dominante nos países ocidentais, o que cria uma clivagem que se esconde atrás de um debate sobre a “censura”. A segunda é o nascimento de um novo ator político a que, estranhamente, a esquerda aderiu de alma e coração: o consumidor.

A principal origem da castração moralista da literatura não resulta de qualquer tipo de radicalização esquerdista. Até diria que ela é sintomática de uma rendição da esquerda.

A DESADEQUAÇÃO DE AFONSO

Voltemos aos livros para adultos, onde este debate muda de figura. Recentemente, o jovem escritor Afonso Reis Cabral, que venceu o prémio Saramago, partilhou nas redes sociais uma resposta de uma editora norte-americana, em 2019. Não pretendia fazer uma denúncia e muito menos acusar alguém de censura. Queria dar testemunho dos critérios que hoje dominam as editoras anglo-saxónicas.

“Pão de Açúcar”, que trata da morte de Gisberta, uma mulher trans brasileira assassinada por um grupo de adolescentes, em 2006, no Porto, e “O Meu Irmão”, onde uma das personagens tem síndrome de Down, foram recusados porque poderiam ferir a sensibilidade do público norte-americano: “O escritor é claramente muito talentoso. Acho, no entanto, que a franqueza em ‘O Meu Irmão’ pode ser problemática para o mercado dos Estados Unidos, onde esses assuntos são levados muito a sério pelos media. A crítica do ‘Pão de Açucar’ foi boa, mas um colega expressou preocupação sobre uma pessoa cis escrever sobre uma pessoa trans – outro assunto de alta sensibilidade aqui. Tentei encontrar uma pessoa LGBTQ que falasse português para escrever um relatório de sensibilidade, mas não consegui encontrar ninguém."

Não diria que ativismo não pode ser literatura, porque dizer que "A Mãe", de Gorki, ou "As Vinhas da Ira”, de Steinbeck, dois livros de denúncia politicamente empenhada, não são literatura seria, no mínimo, ousado. Mas reduzir a literatura ao ativismo é, como bem diz Afonso Reis Cabral, empobrecê-la. Mas nem é bem isto que está em causa. Até porque os argumentos para não publicar os dois livros são tão contraditórios como a sensibilidade do mercado: um é demasiado sincero e vivido, o outro é escrito por quem não preenche as características para ser o seu autor. Esta é, aliás, uma das tragédias culturais que vivemos: na avaliação da obra, o autor sobrepôs-se à obra.

Li que há uma nova função, a do “leitor sensível”. Como o conselheiro histórico, ele procura retirar ao autor as suas circunstâncias, preconceitos, medos, ódios. Procura descarná-lo, higienizá-lo, desautorá-lo. Não chega a ser uma forma de censura, porque é aparentemente consentida. É um processo autorizado de castração (continuarei a usar metáforas, se não me levam a mal), que transforma o ato criativo num ato de cobardia. É aceitável para a indústria, que pretende agradar ao mercado. É prostituição intelectual, porque a função do escritor não é agradar. Se há coisas de que ele não sabe e mesmo assim escreve, se faz mau trabalho de pesquisa, será fraco escritor. Mas o critério não é a sensibilidade do leitor, é a verdade da obra.

O escritor convida o leitor a mergulhar nas suas contradições, luta com ele, prende-o, solta-o, seduz, repele. Não trabalha para agradar o cliente. A não ser, claro, que se dedique ao entretenimento literário. Mas, nesse caso, talvez seja abusivo dizer que é um escritor. É um publicador de livros. Esses não se sentirão limitados. Mas quem vive da sua liberdade criativa sente-se mais constrangido do que há dez ou vinte anos. Porque há um ambiente censório? Porque há novas vozes no espaço público? Porque as redes sociais tornaram a pressão mais fácil? Porque tudo, absolutamente tudo, passou a ser motivo para a guerra de trincheiras? Talvez seja um pouco disto tudo. Mas a verdade é que um escritor maldito não seria hoje mais do que um escritor “polémico”, esse carimbo promocional que vive do mesmo negócio que a capitalização do bem.

TODOS CEDEM AO MERCADO

Tive contacto com a história de Afonso Reis Cabral através da partilha, noutra rede social, de perfis de pessoas de direita, sobretudo “liberais”. Eram, em geral, contra a histeria da esquerda politicamente correta. As reações, quase todas irónicas, respondiam com a liberdade empresarial. A ironia só é desajustada porque é, de facto, essa a questão. Não há compressor censório mais eficaz do que o mercado e é por isso que os “liberais”, chegados aqui, entram num beco sem saída.

A mercantilização absoluta da cultura implica, como em qualquer negócio, adaptar o produto às necessidades e gostos dos clientes. E isso inclui a sua sensibilidade e incómodo. É por isso que uma arte exclusivamente dependente do mercado é conservadora, medrosa e, no limite, autocensurada. Também é por isso que sociedades livres, mas sem um mercado suficientemente vasto para que pequenos nichos sustentem contraculturas, encontram outras formas de garantir o pluralismo cultural para além do mercado.

Quem acha que é o mercado que legitima uma obra como bem cultural alimenta uma falsa ideia liberdade que esmaga qualquer forma de dissensão. Os “leitores sensíveis” não são mais do que conselheiros de mercado. As editoras não os contratam porque estão preocupadas com os direitos das minorias. Contratam-nos porque querem prever más reações do mercado a algo que o incomode ou perturbe. Hoje é o facto de um autor cis escrever sobre uma trans, ontem foram cenas sexuais mais escandalosas. Os editores querem navegar, mas sem ondas.

O problema de movimentos que deveriam ser emancipatórios, mas baseiam a sua intervenção na indignação viral, procurando espalhar pelo mercado uma reação negativa perante qualquer produto incómodo, não é serem movimentos censórios. Na maioria dos casos, faltam-lhes instrumentos para tanto. É a sua eficácia depender de uma reação do mercado. E esta é a cedência “liberal” da esquerda, que se pode replicar, aliás, a todos os movimentos de boicote ao consumo, que subsituem o cidadão ou o trabalhador pelo consumidor, transferindo a desigualdade da capacidade aquisitiva para a desigualdade de poder político. Eu sou tão mais eficaz na minha luta quanto mais poder tiver como consumidor. Querem coisa menos à esquerda do que isto?

https://expresso.pt/opiniao/2023-06-22-O-mercado-e-o-maior-censor-616d7165 


sábado, 17 de junho de 2023

José Pacheco Pereira - Enciclopédias: mutação ou destruição?

OPINIÃO  -   

* José Pacheco Pereira (

Público 17 de Junho de 2023)

Sim, está muita coisa na Internet, mas não só não está “tudo” como muitas vezes o que está é incorrecto, falso e enviesado.

 As duas coisas. Importa-me a mutação, mas mais me importa a destruição. O deslumbramento com a chamada “transição digital” faz muito mais estragos no saber do que se imagina. Já não me refiro, como faço há mais de 20 anos, à crise e declínio da leitura, que começa agora a ter alguma atenção pelo facto de os suecos estarem a voltar ao papel nas escolas. Mas não chega em Portugal, onde um dos locais mais perigosos para este deslumbramento é o Ministério da Educação, com os estragos de vento em popa.

Vejamos o caso das enciclopédias. Não tratamos aqui da função das grandes enciclopédias como manifestação e fixação do “estado” do saber numa determinada época, mas sim das alterações que se verificam no seu papel e uso. No Arquivo/Biblioteca Ephemera, sabemos sem qualquer dúvida que, quando se deitam livros fora ou se despejam bibliotecas, a primeira vítima são as enciclopédias. Compreende-se que, com a diminuição drástica do espaço para livros nas casas de hoje, as enciclopédias ocupam muito espaço. Igualmente, a maioria foi comprada nas últimas décadas para encher espaços com livros grossos, com capa dura, que servem para as fotografias e vídeos de advogados, CEO, escritórios de patrões, para pano de fundo com as mobílias escuras, tudo cheio de gravitas, ou seja, são elementos de decoração, de prestígio, não livros para serem consultados. As editoras responderam em espécie e produziram enciclopédias e dicionários, tudo em vários volumes cheios de pompa e de lombada. Na verdade, não estamos a falar de livros e, muito menos, de saber. Este é um mundo a acabar, no seu papel de pano de fundo, substituído por um largo monitor de computador, caro e cheio de resolução, ou um qualquer ademane da “transição digital”.Passemos agora a falar das enciclopédias que não são de lombada. Existe a ideia de que “está tudo na Internet”, mais actualizado, mais fácil de encontrar, o que torna as pesadas enciclopédias inúteis. Sim, está muita coisa na Internet, mas não só não está “tudo” como muitas vezes o que está é incorrecto, falso e enviesado. E o que não está é gigantesco, embora admita que este seja um problema de tempo, que pode desaparecer quando o esforço de digitalização avançar e chegar às áreas onde ainda é muito escasso o material disponível. Caso da língua portuguesa, caso, dentro da língua portuguesa, dos autores portugueses, caso do retrospectivo histórico – tudo casos em que ainda são os brasileiros que foram mais longe.

Não faltam exemplos da necessidade das enciclopédias em papel, como é a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (GEPB), que começou a ser publicada em 1936 e foi sucessivamente ampliada com volumes de “actualização”, muito inferiores aos iniciais. Se tivermos de trabalhar em correspondências literárias da primeira metade do século XX e quisermos saber quem são os interlocutores de um determinado correspondente, a Internet é inútil, mas a Grande Enciclopédia, acrescentada de alguns volumes de Quem é Quem publicados na mesma altura, é fundamental.

Outro aspecto de que ninguém cuida é a qualidade literária, científica ou ensaística que falta na Internet. A GEPB tinha entre os seus colaboradores António Sérgio, o cardeal Cerejeira, Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa, Lopes Graça, Aquilino e, entre os casos célebres de enciclopedistas, está Kropotkine, que escreveu o artigo sobre o anarquismo para a Enciclopédia Britânica. Mas este mundo também já acabou. Hoje já ninguém aparecerá, como Aldous Huxley tinha fama de fazer, a falar, numa semana, das coisas do volume da Enciclopédia Britânica que estava a ler – vulcões, Vulcano, vapor – maçando os seus amigos que, como eram literatos, sabiam muito bem de onde vinha a conversa. Como eu percebo Aldous Huxley.

Outro aspecto de que ninguém cuida é a qualidade literária, científica ou ensaística que falta na Internet

Mas há outro aspecto desta questão que conta, quando as pessoas acham que “na Internet está tudo”, referindo-se, entre outras coisas, ao grande projecto enciclopédico da Wikipedia. A Wikipedia parte de uma ideia original e interessante, que tem o pequeno problema de ser falsa, a de que a colaboração dos “grandes números” de pessoas corrigindo-se umas às outras acabaria por dar a origem a entradas tão fiáveis como as entradas na Enciclopédia Britânica. Se o senhor A cometesse um erro ou publicasse uma variante de fake news na sua entrada original, milhares de contribuições corrigiriam, acabando por dar origem a um texto estável e cientificamente seguro. Não é o que acontece.

Embora as comparações entre a Wikipedia e a Enciclopédia Britânica nem sempre sejam favoráveis a esta última, e a peer review não garanta outras formas de enviesamento, principalmente para garantir o cânone conservador em certas áreas do saber, há artigos na Wikipedia seguros e estáveis, principalmente nas entradas científicas, na física, matemática, geometria, química, etc.. O problema são as chamadas “ciências humanas”, ou as questões de actualidade, onde a própria Wikipedia avisa que “a informação apresentada pode mudar com frequência”. Por exemplo, nos artigos José Sócrates, ou Maomé, veja-se a “discussão”, ou na Invasão da Ucrânia pela Rússia, cujas últimas correcções datam de ontem, a permanente instabilidade do texto. Por isso mesmo, em muitas universidades, a Wikipedia não pode ser citada em trabalhos académicos. Como em muitas procuras e consultas em linha, a Wikipedia pode ser útil, mas por quem tenha as literacias e a prudência para consultar textos sem edição ou com escassa edição.

Este é um dos casos em que, com tempo e com trabalho, com edição e revisão científica, as enciclopédias podem migrar com vantagem para a Internet, em particular beneficiando das vantagens do hipertexto e da actualização, sem os custos e o espaço do papel, mas durante muito tempo vai subsistir o problema da dependência do que se digitaliza do poder, da moda, do comércio, das audiências.

O autor é colunista do PÚBLICO

Historiador

https://www.publico.pt/2023/06/17/opiniao/opiniao/enciclopedias-mutacao-destruicao-2053617


sábado, 10 de junho de 2023

Jaime Nogueira Pinto - Os dias de Camões

Jaime Nogueira Pinto
 Colunista do Observador

Se há censura capaz de cancelar o nosso maior poeta – cujas comemorações sobreviveram a quatro regimes – é a que por aí se anuncia e prenuncia.

10 jun. 2023

século XVI é um século decisivo na História da Europa e, consequentemente, na História do mundo, já que, até à Segunda Guerra Mundial e à descolonização, isto é, até há meio século, o mundo foi eurocêntrico.

Há quinhentos anos, dava-se a proclamação da secessão luterana em Wittenberg, em 1517, e redigiam-se dois tratados políticos antagónicos e fundacionais – O Príncipe de Maquiavel (1513) e a Utopia de Thomas Morus (1516). Poucos anos depois, batalhavam, de Marignan a Pavia, pelas terras de Itália, Francisco I, Valois, pela França, e Carlos V, Habsburgo, pelo Império. E o século que assim abria e que foi também o século de Camões, ia fechar com as mortes, no mesmo ano de 1616, de dois génios das letras, Miguel de Cervantes e William Shakespeare.

Neste tempo e neste país, mergulhados na douta e menos douta ignorância tolerada e até encorajada, é difícil pensar e problematizar outros tempos históricos e outras realidades, particularmente tempos e realidades em que Portugal foi maior do que é hoje. Até porque a pequenez reinante se dá mal com alguma grandeza passada, e procura, com aplicação, ensombrá-la.

Que, consciente ou inconscientemente, não escapemos a estender ao passado a nossa história pessoal e o nosso tempo e a sua teia de valores e princípios éticos e políticos, pode ser inevitável; mas fazê-lo para cumprir uma agenda ideológica simplista, sem qualquer pejo, conhecimento de causa ou preocupação de verdade, compreensão e rigor, é já outra coisa, e totalmente diferente. Assim, numa época em que a moda da vitimização do oprimido e da acusação e contrição do opressor cai num pântano de alienação acrítica, também aqui se tenta pintar a época das descobertas e das conquistas ultramarinas como um tempo de mera exploração, tirania, colonização, imperialismo, racismo e escravatura. E, consequentemente, os heróis desse tempo como meros exploradores, tiranos, colonialistas, imperialistas, racistas e escravocratas, a milhas de distância da tolerância, da inclusividade, da paridade, da clarividência e da superioridade moral de quem assim os pinta. Do infante D. Henrique a Vasco da Gama, de Afonso de Albuquerque a D. João de Castro, ninguém escapa.

Em tempo de pré-celebrações, estando as forças vivas do regime, os meninos do Tuttifrutti e os fura-pneus verdes já perfilados para salvar o planeta e a democracia das energias fósseis do “iliberalismo”, há que estar particularmente atento nesta matéria. Porque uma coisa é certa: perante a novela a que vimos a assistir e a crise político-social – que as melhorias da macroeconomia podem atenuar, mas não apagam –, denegrir o passado, todo o passado, para dourar o presente é e vai ser o caminho a seguir. Às vezes exagerando, como na campanha do “Não Podias”, que teve de ser abafada, mas não pondo nunca em causa a estratégia de fundo.

Voltando ao século XVI e à sua riqueza pensante e estratégica: os humanistas críticos, como o realista Maquiavel e o idealista Morus, tiveram bem a consciência do tempo que viviam e, exaltando a liberdade dos Antigos, traçaram nos seus escritos os dilemas que se lhes apresentavam – entre autoridade e liberdade, entre monarquia e tirania, entre bem comum e maioria –, pesando os perigos do desgoverno e a tentação do despotismo.

Foi este Humanismo Crítico que dominou os primeiros anos do século XVI europeu, com Maquiavel, com Guicciardini, com Morus, com Erasmo. Um humanismo que continuou depois com Montaigne, com Cervantes, com Shakespeare. Entre os portugueses, salientou-se Damião de Goes, “estrangeirado” e viajante nos seus percursos europeus e no convívio com protestantes e outros “livres-pensadores”, o que lhe valeria alguns problemas com o Santo Ofício, instalado por cá desde 1536. Não seria o único.

Luís de Camões foi, em pleno sentido, um humanista crítico. Diz-se agora que o Estado Novo manipulou os valores camonianos para os pôr ao serviço dos seus princípios ideológicos – Deus, Pátria e Família –, e que o cristianismo e o patriotismo do poeta terão sido sobrevalorizados. Ora a realidade é que o culto de Camões e do patriotismo de Camões, incentivado por liberais como Almeida Garrett e Herculano, vinha já da monarquia constitucional e iria até ser uma das pedras de toque da campanha republicana. Em 1880, no terceiro centenário da morte de Camões, Teófilo Braga, figura importante da intelectualidade e do movimento republicano, usaria a memória do “poeta da pátria” para acusar a dinastia de Bragança de falta de patriotismo; e a República faria do 10 de Junho feriado municipal em Lisboa. Depois, a Ditadura Militar, em 1929, consagraria o dia de Camões como feriado nacional.

Apesar dos eventuais usos propagandísticos dos vários regimes, o Portugal pós-revolucionário acabaria por manter o 10 de Junho como Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas.

Jorge Borges de Macedo, nos seus vários escritos sobre os valores e as ideias políticas de Camões, diz-nos que o Poeta se integrava plenamente num Humanismo Crítico europeu que incluía um pessimista antropológico céptico, como Maquiavel, um mártir católico utópico, como Thomas Morus, e um moderado autónomo, como Erasmo de Roterdão.

Camões considerava a comunidade histórica portuguesa independente como o valor maior; o poder real como legítimo, desde que ao serviço de Deus e da Pátria; a História como o espaço temporal onde a comunidade era posta à prova; e o povo, o “povo pertinaz”, como um colectivo capaz de pedir o sacrifício da “linda Inês”, mas também de seguir Nuno Álvares Pereira, nos Atoleiros e em Aljubarrota. Para ele, a História dessa comunidade, como toda a História, não vivia sem controvérsias e resistências externas e internas: Baco é, nos Lusíadas, o inimigo jurado dos portugueses no caminho marítimo para a Índia, onde há perigos míticos e perigos reais – como a Tempestade ou o Adamastor. E os que se opõem à decisão da expansão, salientando os seus riscos (não esqueçamos que o infante D. Pedro, cujo damnatio memoriae foi consagrado por Zurara, era crítico da expansão e, mais depressa, um europeísta) estão na argumentação complexa do “velho do Restelo”, que dá voz à problemática ideológica e geopolítica da Europa e da Cristandade de então e é tudo menos um velho céptico e choramingas.

Movido por paixões, audacioso, guerreiro, marginal, soldado de Marrocos e marinheiro de dois oceanos, Camões alerta-nos para os malefícios do ouro e da corrupção apontados por Morus na Utopia; e para o dilema, tão caro aos humanistas críticos, entre o poder do Rei, essencial garante da ordem, e os perigos da tirania. E se exalta a “Santa Fé”, denuncia os sacerdotes que a traem e não a pregam; se exalta a epopeia e os seus heróis, denuncia os nobres decadentes e aconselha os novos-ricos usurários a porem “na cobiça um freio duro”. Conhece bem a cultura clássica, de Homero a Virgílio, e as várias frentes do Império da “ditosa pátria sua amada”. É um homem do seu tempo e das contradições e conflitos desse tempo, que tantas vezes a Fortuna decide.

Compreende-se que tudo isto seja areia a mais para o maniqueísmo infantil dos novos censores e para as melindrosas sensibilidades ensimesmadas dos modernos “sensitivity readers” (vigilantes leitores, num tempo em que escasseiam leitores). Talvez a dificuldade de navegar por entre o engenho e arte do Poeta para reeditar Os Lusíadas em edição expurgada salve Camões – ou então, o candidate à facilidade do cancelamento.

Porque se há censura capaz de cancelar o nosso maior poeta – humanista crítico, cristão e patriota, cujas comemorações sobreviveram a quatro regimes – é a que por aí se anuncia e prenuncia.

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