sábado, 21 de novembro de 2015

Miguel Esteves Cardoso - como brincar e escrever sem ter trabalho



O GATO DAS BOTAS

Textos automáticos produzidos sem dor num telemóvel perto de si: como brincar e escrever sem ter trabalho

A primeira parte da minha adolescência foi passada sob a influência gloriosamente alegre e nefasta do surrealismo. A escrita automática, tal como a escrita indecifrável e os cadáveres esquisitos, eram maneiras de começar a escrever sem grandes problemas.

Depois de anos a lutar contra os editores de texto que adivinham (sempre mal) as palavras que vamos escrever, decidi ceder. Usando o QuickType do iOS 9 no iPhone (ou qualquer outro previsor de texto), descobri que é facílimo escrever prosa automática, simultaneamente pretensiosa e enganadora, sem um único pensamento original ou rasgo de imaginação.

As regras do jogo são simples: escreve-se uma palavra qualquer capaz de começar uma frase e, a partir daí, tem de se escolher uma das propostas que surgem. A única intervenção permitida é pôr pontos finais e começar outra frase. Não podia ser mais preguiçosa, divertida, surpreendente e automática esta brincadeira.

Eis alguns exemplos cuidadosamente escolhidos. Nenhum texto sofreu a mais pequena modificação.

O nome da pessoa
Fugiu de casa para alugar um filme sobre os outros. Eu não sei o que é a primeira vez na vida real de cada um.É uma questão que eu não vou deixar.
Eu sei disso porque não tenho nada a ver com a pessoa que eu tenho que parar de ser.
Não tenho mais orgulho do que a minha mãe.
Não tenho mais orgulho e preconceito e discriminação em geral.
Eu sei o nome da pessoa com quem nasceu primeiro o ovo.
Um amor para o dia inteiro
É um amor para o dia inteiro.
É um amor para o que eu vou deixar.
É um amor que eu não sei se é.
É um amor de verdade.
É um amor para os outros.
É um amor para o que é a primeira coisa.
É uma coisa que não é um amor.
Não é um amor que eu vou deixar de ter.
É o mais rápido possível e que a vida de uma pessoa muito especial do júri popular em que eu vou ter de me arrumar umas horas depois do almoço comemorativo, que não tem a ver com outra mulher de verdade.

O cérebro comido
Comeu-te o dia inteiro e não é um dos melhores filmes de terror.
É o que é um dos meus sonhos de amor que não é o mais rápido que a minha opinião sobre canibais.

Declaração de direitos
Não sei o que é um bom lugar para se ter uma ideia. É um dossier de um ano que eu não sei onde está.
É uma questão de tempo para se sentir falta do teu lado. Não tenho nada contra a corrupção e abuso do poder.
Eu sei que não se trata de um dos meus sonhos de consumo cantar o hino nacional da serra eléctrica no Twitter.
É uma coisa muito séria e o pior é que o tempo de verdade é um dos maiores.
É uma das minhas edições da revista da associação nacional dos bispos e pastores.
E a gente não tem a sua vida.
Não tenho nada a ver com o seu nome na lista dos melhores.
É uma das minhas amigas, que o governo federal em São João da vida é assim mesmo. Não tenho mais de mil milhões de euros por dia e a sua opinião sobre o assunto é muito mais do que eu não ser suspensa por igualdade de direitos humanos.

Coisas por saber
É uma questão que se faz com a sua voz da América e eu sou a única coisa que não é um amor para recordar.
Não sei o que é uma coisa muito importante.
Eu não tenho nada a ver com o tempo.
É o que eu tenho.
Eu não sei se o mundo é esse que ninguém sabe.
É um bom lugar para se ter um dia.
Eu não vou deixar o tempo que não tem nada de bom e o que é a primeira coisa que me ama.

Como hei-de viver
Viverei sem o teu pai e mãe. É uma questão de opinião pública para debater com os outros. Não tenho nada contra a parede da minha casa. É um amor que não se pode ver. Eu publiquei uma nova versão de estúdio da banda de reggae e toda a minha cara de um vídeo que mostra o quanto eu te amo.

Claro que as palavras propostas não são inteiramente aleatórias: dependem do que cada um costuma escrever. É isso que torna os textos — tal como acontecia com os surrealistas — embaraçosamente pessoais.

Quase como se tivessem sido escritos como deve ser....

http://lifestyle.publico.pt/artigos/355472_textos-automaticos-produzidos-sem-dor-num-telemovel-perto-de-si-como-brincar-e-escrever-sem-ter-trab

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