OPINIÃO O QUE SIGNIFICA SER HUMANO?
Gustavo Carona
27 de Junho de 2023
A comparação dos cinco milionários que morreram cedo demais com a tragédia humana da crise dos refugiados é pertinente porque nos confronta com a perversão da nossa empatia.
“Ficou chocado?”, foi esta a primeira pergunta feita por Júlio Magalhães em directo para a CNN, como ponto de partida para reflexão sobre este assunto. Confesso que a pergunta até me surpreendeu porque já tantas vezes pensei, reflecti e escrevi sobre isto, que para mim este fenómeno é óbvio, infelizmente, mas também é óbvio que a sua resolução passa pela tomada de consciência e desconstrução do funcionamento das nossas sinapses cerebrais, neste mundo estranho que é a inteligência das emoções.
Há quem se revolte com o possível facto de que esta estória se tornou no assunto dominante nos media, por serem cinco milionários excêntricos . E como os que são pobres, tornamo-nos indiferentes. Há uma pitada de verdade nestas premissas, mas eu diria que o cerne da questão não é esse.mÉ a espectacularidade da estória que molda a nossa empatia. É o facto de ser inusitado e também de ter um fim, bom ou mau, à vista. A nossa empatia só entra quando nos relacionamos com os intervenientes, e de alguma forma sentimos que nos podia ter acontecido a nós. E ninguém se projecta ou sabe o que é, por exemplo, ser afegão ou afegã, fugir dos taliban por medo de morrer, arriscar a vida com os criminosos traficantes de humanos na Líbia, e mesmo sabendo que todos os anos morrem na ordem das 2000 pessoas afogadas no Mediterrâneo, tomam a decisão de se meterem nos barcos, com crianças, grávidas e idosos doentes. Como não nos imaginamos nesta estória, não a sentimos.
Mohammad, um sobrevivente sírio do naufrágio ao largo da Grécia, chora ao encontrar-se com o irmão REUTERS/STELIOS MISINAS
Eu já vivi no Afeganistão numa zona muito complicada da guerra, conheci dezenas de afegãos com quem fiz boas amizades, mas eu também não sei o que é estar na pele deles, porque eu tenho um passaporte e um contrato com uma grande organização médica que me permite “carregar no botão vermelho” e regressar à segurança e ao conforto do meu país, quando eu quiser. Eles não têm essa opção. Mesmo estando lado a lado e de coração aberto, não sei o que é estar na pele deles. O melhor que eu posso fazer é ouvi-los, humanizar as suas estórias, e nunca esquecer a minha melhor interpretação de humanismo e humanitarismo: proporcionalidade. A nossa atenção e a nossa acção têm que ser proporcionais à dimensão dos desafios humanos.
A estória de Ryan, o menino que caiu num poço em Marrocos, e os 12 rapazes provam o meu ponto. São pessoas humildes e anónimas que fizeram parar o mundo, e conseguiram unir todos os esforços do planeta para que se salvassem as suas vidas. Sim, porque temos empatia, mas, acima de tudo, porque as estórias são espectaculares e concorrem com a Netflix.pTodos temos empatia, e a empatia é um sentimento poderosíssimo, mas como qualquer superpoder, por vezes é usada de uma forma perversa, mesmo sem nós nos darmos conta desse fenómeno.
A comparação dos cinco milionários que infelizmente morreram cedo demais com a tragédia humana da crise dos refugiados, tipificada num caso bem recente em que morreram cerca de 500 refugiados e migrantes, que ganha força a reboque da estória do mini-submarino, é pertinente porque nos confronta com a perversão da nossa empatia, e as assimetrias com que valorizamos as vidas humanas.
E eu ainda acrescento um ponto. Há muita gente a lutar, e muito bem, pela humanização do acolhimento aos refugiados, mas muito pouca gente a tentar alertar e a combater a questão de base: a resolução do motivo que os leva a fugir da sua amada pátria, em luta pela sobrevivência.
Proporcionalidade. As boas causas não se anulam, adicionam-se. Se não lutarmos pela solução in loco; dos conflitos armados, da fome, das alterações climáticas (esta, global, claro está), da falta de educação escolar… no fundo, a luta contra a desigualdade, vamos ter sempre tensões e migrações cruéis. Ajudar os refugiados, repito, é extremamente importante, mas, por si só, é como tentar esvaziar o oceano com uma colher de chá. Se não formos ao foco dos problemas com humanismo, empatia, proporcionalidade e consistência, nunca teremos uma humanidade digna do seu nome. Não há soluções simples para problemas complexos, mas há caminhos que têm que ser percorridos. Sentirmo-nos cidadãos do mundo é um deles.
Muitos gritam: “A culpa é dos media que não nos mostram, e dos políticos que não querem saber!”, e eu digo que não me parece que assim seja. Em democracia, os media e os políticos não são líderes, são seguidores das nossas vontades e das nossas escolhas. Cabe-nos a nós “explicar-lhes” o que queremos saber, e para onde queremos olhar com o nosso pensamento humano e político. Somos nós que escolhemos, e eles seguem-nos.
Reconhecer o poder, mas também a perversão da nossa empatia, é o primeiro passo na luta por um mundo melhor. O mundo enquanto uma bolinha azul onde nós vivemos, e também o nosso mundo interior, que precisa do outro, para ser feliz
Alguns números para reflexão:
5 pessoas morreram no mini-submarino.
500 pessoas morreram recentemente no Mediterrâneo (100 eram crianças) em circunstâncias em que se estima terem morrido 25.000 pessoas desde 2014.
2977 pessoas morreram no ataque às Torres Gémeas. Cerca de 1.000.000 a 2.000.000 morreram nas guerras de retaliação no Afeganistão e Iraque.
5.000.000 de crianças morrem antes dos cinco anos, todos os anos, de causas na sua maioria facilmente tratáveis ou evitáveis.
68.000.000 de crianças não têm a vacinação básica da infância que salva milhões de vidas, são 20% das crianças do mundo.
800.000.000 de pessoas estão em risco de morrer à fome neste momento.
4.000.000.000 de pessoas não têm acesso a cuidados de saúde de uma forma continuada, é metade da população mundial.
Desculpem tantos zeros, em vez da palavra milhões, mas ajuda-me a perceber que ali dentro de cada número está uma pessoa igual a mim.
São tudo números, e são tudo pessoas que têm os mesmos direitos a viver do que nós, se não formos xenófobos ou racistas. Para mim, ser português é uma questão administrativa. Ser, humano, tem que estar acima de qualquer outro rótulo identitário. Eu não sei se isto é ser de esquerda ou direita, porque considero a ciência e os direitos humanos inegociáveis, e coloco-os acima de tudo o resto como verdades universais e transversais a qualquer ponto do planeta.
A continuidade de qualquer tragédia humana faz com que nós nos afastemos, e faz com que deixe de ser notícia porque a nossa empatia aborrece-se com o assunto. Mas as emoções também se trabalham, também se treinam e também se ensinam.
Reconhecer o poder, mas também a perversão da nossa empatia, é o primeiro passo na luta por um mundo melhor. O mundo enquanto uma bolinha azul onde nós vivemos, e também o nosso mundo interior, que precisa do outro, para ser feliz.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras
Médico intensivista
https://www.publico.pt/2023/06/27/opiniao/opiniao/naufragios-milionarios-perversao-empatia-2054730
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