sexta-feira, 23 de junho de 2023

António Rodrigues - O brilho da civilização ocidental é apenas verniz e está estalado

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O brilho da civilização ocidental é apenas verniz e está estalado
O mundo que se conta a partir do que se diz.

* António Rodrigues
23 de Junho de 2023, 7:00


“Não éramos nada. Éramos apátridas. Estávamos entre dois mundos como o nosso barco, navegando para trás e para a frente entre dois continentes. Um dos mundos tinha-nos rejeitado; o outro não nos quisera quando tanto precisávamos da sua ajuda.” Margot Friedlander, antiga refugiada judia

Holandês voador
A União Europeia não tem uma missão europeia de salvamento no Mediterrâneo. Cada país costeiro ou insular é responsável pelas operações de ajuda na sua área. E a coordenação entre as guardas costeiras dos diferentes países é, no mínimo, deficitária. Além do mais, há suspeitas de que cada um dos países tenta postergar ao máximo a sua intervenção para ver se o problema cai no colo do seu vizinho, livrando-o do trabalho. No caso da traineira que afundou na semana passada ao largo da costa grega, os indícios apontam para isso.

O eurodeputado Pietro Bartolo tentou fazer passar no Parlamento Europeu (PE), no princípio desta legislatura, uma resolução para criar um serviço de busca e salvamento europeu, mas, estranhamente, a proposta acabou chumbada por dois votos. “Tive uma pena que tal tivesse acontecido, mas garantidamente a Europa tem de fazer alguma coisa”, disse Bartolo à Euronews, durante a visita esta semana de uma delegação do PE à ilha italiana de Lampedusa, o território europeu geograficamente mais perto de África.

O segundo pior naufrágio de migrantes na história recente do Mediterrâneo, em que terão morrido mais de 500 pessoas, grande parte delas mulheres e crianças, já foi, entretanto, abafado mediaticamente pela caça ao submarino de turismo para ricos que desapareceu no Atlântico Norte, e é pouco provável que o seu impacto venha a alterar a política europeia em relação aos desesperados que arriscam a vida para chegar a um qualquer bom porto que os receba.

O que Bruxelas parece desejar mesmo é que a questão desapareça por si só ou que as embarcações dos traficantes de seres humanos sejam condenadas, como o filibote do capitão Vanderdecken da lenda do holandês voador, a errar pelos mares sem nunca chegar a terra.


A civilização é cruel
A Austrália tem uma história de colonização faroestiana no far east, que é como quem diz, aplicou a lei do mais forte sem escrúpulos desde o estabelecimento da primeira colónia europeia, a 26 de Janeiro de 1788, em detrimento dos autóctones que tiveram de esperar dois séculos para começarem a ver alguns dos seus direitos reconhecidos.

Mas nem os condenados ao degredo com que no século XVIII se começou a colonização mereciam o tratamento que o actual Estado australiano concede a Hamid, um refugiado iraniano que tentou alcançar a costa da Austrália e foi enviado para o Centro de Processamento Regional de Nauru, inaugurado em 2001 para lidar com os migrantes que procuram asilo no país.

Camberra estabelecera como política que nenhum dos migrantes detidos a tentar chegar à Austrália poria um pé no seu território, mesmo aqueles com direito ao estatuto de refugiado de acordo com o direito internacional. Algumas centenas conseguiram ir para os Estados Unidos e a Nova Zelândia chegou a oferecer-se para receber 150 por ano, oferta recusada pelos australianos.

Hamid passou nove anos em Nauru, detido como outros, por tentar alcançar uma vida melhor. Em 2019, separaram-no dos seus dois filhos adultos; em Fevereiro deste ano, levaram-no para Brisbane, na Austrália. Segundo o Refugee Action Group, enquanto a maioria dos migrantes transferidos de Nauru são libertados ao fim de uma ou duas semanas (desde que o Governo trabalhista assumiu o poder, já só restam 13 detidos no centro de processamento), Hamid foi mantido confinado num hotel durante meses até ser transferido para um centro de detenção a 7 de Junho.

“Não sou um criminoso. Não vim para a Austrália ilegalmente”, disse à emissora neozelandesa RNZ. “Querem matar-me gradualmente com tortura mental”, acrescenta. “Libertam toda a gente à minha frente. O que é isto ao fim de dez anos? Depois de dez anos, puseram-me num centro de detenção com uma data de criminosos. O que é isto? É tortura.”

Há gerações e gerações
Esta quinta-feira passaram 75 anos da chegada do navio HMT Empire Windrush às docas de Tillbury, no Essex. Os 492 migrantes que desembarcaram provenientes de países das Caraíbas marcavam, sem saber, o princípio da história do Reino Unido moderno, marco de um movimento migratório que nos 25 anos seguintes chegava para ajudar à reconstrução do país das ruínas da II Guerra Mundial e que haveria de moldar a nova Albion a partir do seu império desmembrado.

A chamada geração Windrush abarca o movimento migratório que chegou ao país entre 1948 e 1971, incentivada pela necessidade de mão-de-obra do Estado britânico. Muitos deles, conta a BBC, tornaram-se trabalhadores manuais, condutores, empregados de limpeza e enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que dava os primeiros passos.

O primeiro-ministro, Rishi Sunak, sublinha essa ligação na sua mensagem a assinalar a data: “Desde salvar as nossas vidas no nosso magnífico NHS e criando e liderando prósperas empresas até representar o Reino Unido no cenário mundial como atletas profissionais, a Geração Windrush e os seus descendentes têm sido parte integrante do tecido social, cultural e histórico do Reino Unido.”

Palavras de circunstância de um governo britânico liderado por um filho de imigrantes indianos provenientes da África Oriental e que tem na ministra Suella Braverman, cujos pais vieram do Sul da Ásia, a maior defensora do envio de migrantes para o Ruanda enquanto aguardam pela resolução dos seus pedidos de asilo no Reino Unido.

Como escreve o activista e jornalista comunitário Chaka Artwell, filho de imigrantes caribenhos, no único comentário à mensagem de Sunak publicada no The Voice, “historicamente, o primeiro-ministro e os seus militantes e eleitores do Partido Conservador têm feito de tudo para prejudicar, minar e excluir os filhos da Geração Windrush”.


“Não se esqueçam”
Aos 101 anos, Margot Friedlander continua a honrar os mortos do Holocausto dando significado à sua existência. A mãe e o irmão morreram no campo de extermínio de Auschwitz, depois de Estados Unidos, Reino Unido e Xangai (onde aportaram 30 mil refugiados judeus durante a década de 1930) se terem sistematicamente negado a conceder vistos à família para fugir da perseguição nazi.

Sobrevivente do campo de concentração ou gueto de Theresienstadt, esta judia nascida em Berlim, que em 1946 haveria de embarcar para Nova Iorque como refugiada com o marido (voltou aos 88 anos para a sua terra depois da morte dele), continua ainda hoje a honrar o pedido que a mãe lhe deixou quando foi levada para Auschwitz: “Tenta fazer algo da tua vida.”

Apesar de ter construído uma vida na América, nunca sentiu que aquela fosse a sua pátria. Nem ali, nem em nenhum outro lado. A sua pátria “está no passado; num país que já não existe”, contava ao site da Unicef na terça-feira, Dia Mundial do Refugiado.

Nem o facto de ser já centenária a impede de ter uma agenda preenchida. Falando com alunos nas escolas, participando em leituras ou em palestras, Margot Friedlander conta a sua história, a da sua família e a dos outros judeus que morreram no Holocausto, todos os dias para que o esquecimento não nos faça pensar que a barbárie nazi é, como a sua pátria, uma coisa do passado – nem que os nazis foram uma excepção na “banalidade do mal”.

“Não falo por mim. Falo pelos que não podem falar, e não só pelos seis milhões de judeus, mas por todos os que não conseguiram. Não se esqueçam destas pessoas. Eram seres humanos. Somos todos seres humanos, o que nos resta sem a nossa humanidade?”

tp.ocilbup@seugirdor.oinotna 

https://www.publico.pt/2023/06/23/mundo/cronica/brilho-civilizacao-ocidental-apenas-verniz-ja-estalou-2054329?f 

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