OPINIÃO -
* José Pacheco Pereira (
Público 17 de Junho de 2023)
Sim, está muita coisa na Internet,
mas não só não está “tudo” como muitas vezes o que está é incorrecto, falso e
enviesado.
As duas coisas. Importa-me a mutação, mas mais me importa a destruição. O deslumbramento com a chamada “transição digital” faz muito mais estragos no saber do que se imagina. Já não me refiro, como faço há mais de 20 anos, à crise e declínio da leitura, que começa agora a ter alguma atenção pelo facto de os suecos estarem a voltar ao papel nas escolas. Mas não chega em Portugal, onde um dos locais mais perigosos para este deslumbramento é o Ministério da Educação, com os estragos de vento em popa.
Vejamos o caso das enciclopédias. Não tratamos aqui da função das grandes enciclopédias como manifestação e fixação do “estado” do saber numa determinada época, mas sim das alterações que se verificam no seu papel e uso. No Arquivo/Biblioteca Ephemera, sabemos sem qualquer dúvida que, quando se deitam livros fora ou se despejam bibliotecas, a primeira vítima são as enciclopédias. Compreende-se que, com a diminuição drástica do espaço para livros nas casas de hoje, as enciclopédias ocupam muito espaço. Igualmente, a maioria foi comprada nas últimas décadas para encher espaços com livros grossos, com capa dura, que servem para as fotografias e vídeos de advogados, CEO, escritórios de patrões, para pano de fundo com as mobílias escuras, tudo cheio de gravitas, ou seja, são elementos de decoração, de prestígio, não livros para serem consultados. As editoras responderam em espécie e produziram enciclopédias e dicionários, tudo em vários volumes cheios de pompa e de lombada. Na verdade, não estamos a falar de livros e, muito menos, de saber. Este é um mundo a acabar, no seu papel de pano de fundo, substituído por um largo monitor de computador, caro e cheio de resolução, ou um qualquer ademane da “transição digital”.Passemos agora a falar das enciclopédias que não são de lombada. Existe a ideia de que “está tudo na Internet”, mais actualizado, mais fácil de encontrar, o que torna as pesadas enciclopédias inúteis. Sim, está muita coisa na Internet, mas não só não está “tudo” como muitas vezes o que está é incorrecto, falso e enviesado. E o que não está é gigantesco, embora admita que este seja um problema de tempo, que pode desaparecer quando o esforço de digitalização avançar e chegar às áreas onde ainda é muito escasso o material disponível. Caso da língua portuguesa, caso, dentro da língua portuguesa, dos autores portugueses, caso do retrospectivo histórico – tudo casos em que ainda são os brasileiros que foram mais longe.
Não faltam exemplos da necessidade
das enciclopédias em papel, como é a Grande Enciclopédia Portuguesa e
Brasileira (GEPB), que começou a ser publicada em 1936 e foi
sucessivamente ampliada com volumes de “actualização”, muito inferiores aos
iniciais. Se tivermos de trabalhar em correspondências literárias da primeira
metade do século XX e quisermos saber quem são os interlocutores de um
determinado correspondente, a Internet é inútil, mas a Grande
Enciclopédia, acrescentada de alguns volumes de Quem é Quem publicados
na mesma altura, é fundamental.
Outro aspecto de que ninguém cuida é
a qualidade literária, científica ou ensaística que falta na Internet. A GEPB
tinha entre os seus colaboradores António Sérgio, o cardeal Cerejeira, Jaime
Cortesão, Rodrigues Lapa, Lopes Graça, Aquilino e, entre os casos célebres de
enciclopedistas, está Kropotkine, que escreveu o artigo sobre o anarquismo para
a Enciclopédia Britânica. Mas este mundo também já acabou. Hoje já
ninguém aparecerá, como Aldous Huxley tinha fama de fazer, a falar, numa
semana, das coisas do volume da Enciclopédia Britânica que estava a
ler – vulcões, Vulcano, vapor – maçando os seus amigos que, como eram
literatos, sabiam muito bem de onde vinha a conversa. Como eu percebo Aldous
Huxley.
Outro aspecto de que ninguém cuida é
a qualidade literária, científica ou ensaística que falta na Internet
Mas há outro aspecto desta questão
que conta, quando as pessoas acham que “na Internet está tudo”, referindo-se,
entre outras coisas, ao grande projecto enciclopédico da Wikipedia.
A Wikipedia parte de uma ideia original e interessante, que
tem o pequeno problema de ser falsa, a de que a colaboração dos “grandes
números” de pessoas corrigindo-se umas às outras acabaria por dar a origem a
entradas tão fiáveis como as entradas na Enciclopédia Britânica. Se
o senhor A cometesse um erro ou publicasse uma variante de fake news na
sua entrada original, milhares de contribuições corrigiriam, acabando por dar
origem a um texto estável e cientificamente seguro. Não é o que acontece.
Embora as comparações entre a Wikipedia e
a Enciclopédia Britânica nem sempre sejam favoráveis a esta
última, e a peer review não garanta outras formas de
enviesamento, principalmente para garantir o cânone conservador em certas áreas
do saber, há artigos na Wikipedia seguros e estáveis,
principalmente nas entradas científicas, na física, matemática, geometria,
química, etc.. O problema são as chamadas “ciências humanas”, ou as questões de
actualidade, onde a própria Wikipedia avisa que “a informação
apresentada pode mudar com frequência”. Por exemplo, nos artigos José
Sócrates, ou Maomé, veja-se a “discussão”, ou na Invasão
da Ucrânia pela Rússia, cujas últimas correcções datam de ontem, a
permanente instabilidade do texto. Por isso mesmo, em muitas universidades,
a Wikipedia não pode ser citada em trabalhos académicos. Como
em muitas procuras e consultas em linha, a Wikipedia pode ser
útil, mas por quem tenha as literacias e a prudência para consultar textos sem
edição ou com escassa edição.
Este é um dos casos em que, com tempo
e com trabalho, com edição e revisão científica, as enciclopédias podem migrar
com vantagem para a Internet, em particular beneficiando das vantagens do
hipertexto e da actualização, sem os custos e o espaço do papel, mas durante
muito tempo vai subsistir o problema da dependência do que se digitaliza do
poder, da moda, do comércio, das audiências.
O autor é colunista do PÚBLICO
Historiador
https://www.publico.pt/2023/06/17/opiniao/opiniao/enciclopedias-mutacao-destruicao-2053617
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