quinta-feira, 22 de junho de 2023

Daniel Oliveira - O mercado é o maior censor,

OPINIÃO  - 

*  Daniel Oliveira (Expresso 2023 06 22)

A pressão para adaptar livros para crianças à moral dominante nem vem apenas de um lado, nem é nova. Mas desapareceu o aparente consenso sobre essa moral e a clivagem esconde-se atrás de um debate sobre a censura. Com os livros para adultos o debate é diferente. As editoras não contratam “leitores sensíveis” porque estão preocupadas com as minorias. Só querem prever as reações do mercado

Foram reescritas passagens dos livros de Roald Dahl para fazer desaparecer termos considerados ofensivos. “Gordo” foi substituído por “enorme” (é menos ofensivo?), “homens-nuvem” passaram a ser “pessoas-nuvem” e o resto conseguem imaginar. Como escreveu Rogério Casanova, num texto a que regressarei, “o que torna este caso hilariante é quão inadequados são os livros de Dahl, em qualquer versão, como veículos de instrução moral.” Este movimento de edição de obras literárias foi criticado por muitos autores, alguns com a autoridade moral de Salman Rushdie, que arriscou a vida para resistir a outros moralistas.

Segundo o Telegraph, as alterações à obra de Roald Dahl foram feitas por uma organização com o sugestivo nome de “Mentes Inclusivas”, que oferece serviços editoriais. Clara Não terá escrito, para justificar a associação da causa feminista a uma campanha da L’Oréal, que capitalizava o bem (apanhei isto no programa de Joana Marques). É disso mesmo que estamos a falar: capitalizar o bem. A editora deseja que os livros “possam continuar a ser apreciados por todos”. O capitalismo vive da permanente expansão do mercado. Para isso, derruba barreiras e faz publicidade disso.

Espanta-me que alguém se atreva a defender a reescrita de livros de autores que cá não estão para o autorizar. Espanta-me não apenas pela grosseira violação dos direitos de autoria, mas pela tentativa de transformar a arte em folhetos, retirando-lhe as impurezas das circunstâncias do autor. Uma revisão que garante revisão futura, porque os vindouros lá terão de reescrever a nossa reescrita, cheia das incorreções deste momento.

Espanta-me, sobretudo, pela proposta de amnésia coletiva. Os livros são marcas do tempo. São, na realidade, boa parte das vezes, a única que temos. Através deles sabemos como a sociedade se via a si mesma e só isso nos permite ter uma ideia de como evoluímos. Claro que o passado nos é mostrado pelos que tinham o privilégio de ser narradores do seu tempo. Mas ao reescrevermos o seu olhar não lhe acrescentamos os olhares de quem não teve direito à sua própria narrativa. Só acrescentamos o nosso olhar anacrónico. Porque da mesma forma que um branco não pode ser um negro, um negro do século XXI não pode ser um negro do século XIX, mesmo que se julgue com essa autoridade ancestral.

LER É INCÓMODO

Os livros têm, ainda por cima, uma vantagem sobre as estátuas: não se impõem a quem não os quer ler. São rastos de poder, é verdade, mas se queremos reescrever as relações de poder escrevemos os nossos próprios livros, que se acrescentam às camadas que vão contando a história.

Ao “E tudo o Vento Levou”, um sucesso nas estantes e nas bilheteiras, que foi criticado por ignorados protestos de ativistas negros, acrescentamos "Um Tambor Diferente", de William Melvin Kelley (o que terá criado o termo "woke"), e aprendemos a ler, no seu tempo, "Não Matem a Cotovia" ou “A Cabana do Pai Tomás”. A leitura faz-se em camadas. E não se deve adaptar a leitores demasiado sensíveis para pensar ou demasiado preguiçosos para acumular leituras que permitam viajar para outros tempos.

Se a obra é para crianças, as coisas são mais complicadas. Em princípio, são os pais a moldar a história ao que querem dizer aos seus filhos ou a aproveitá-la para a pôr em causa, alimentando o sentido critico, em vez do vício da ofensa. Esta é o maior dos equívocos: não devemos ter complacência com quem substitui a critica informada e emancipada pela exigência do silenciamento do que incomoda. O incómodo faz parte da experiência da leitura. Da vida, aliás. E uma das funções didáticas da literatura é pôr as crianças em contacto com esse desconforto da vida.

Pensarão que estou a fazer uma critica ao politicamente correto da esquerda. Em parte, será também isso, apesar de não ser precisa grande coragem para exercício que está na moda. Mas, para pôr este debate em perspetiva, a pressão para adaptar ou censurar livros infantis à posição moral dominante nem vem apenas de um lado, nem é nova.

NÃO É DE UM LADO

Não me vou desviar para temas domésticos, como a censura que Santa Casa da Misericórdia impôs ao trabalho de Dori Nigro e Paulo Pinto sobre o passado escravocrata de Conde Ferreira, exposto no hospital com o nome do benemérito. Talvez deixe isso para outro texto sobre a forma como importamos polémicas ao mesmo tempo que que se vai silenciando qualquer abordagem não celebratória sobre o nosso passado. Voo de novo para longe daqui e aos livros, para não baralhar temas.

Com uma agenda política conservadora, o governador Ron DeSantis tem-se empenhado em limpar livros didáticos da “doutrinação" esquerdista. As autoridades da Flórida recusaram 85 livros de 101 e, depois trabalharem com os editores para fazerem alterações, rejeitaram 35. O termo “socialismo” saiu de um texto sobre diferentes tipos de economias e as referências ao Black Lives Matter foram censuradas de um livro para ensino médio. O Estado tem trabalhado com as editoras para aumentar o número de aprovações. Um eufemismo para dizer que as tem ajudado a fazer a devida censura política. Como a lei proíbe que a instrução leve os alunos a sentirem responsabilidade, culpa ou angústia pelo que outros membros de sua raça fizeram no passado, a editora Studies Weekly, talvez por excesso de zelo, recuou no tratamento dado à história de Rosa Parks. As restrições da Florida, que vão da escravidão ao Holocausto, não têm apenas impacto na Florida. Menos da metade dos estados aprova livros didáticos, mas entre eles estão a Flórida, o Texas e a Califórnia, o que leva as editoras a adaptarem a oferta às suas exigências.

A maior pressão para censurar materiais dirigidos a menores, sobretudo materiais escolares, não vem do movimento “woke”. Nos EUA, onde estas coisas estão ao rubro, vem dos conservadores. O argumento é quase sempre a “adequação à idade”, que assim se tenta fazer passar por neutro. E é com ele que a Florida mandou um editor retirar referências aos atletas que se ajoelham durante o hino nacional por causa da violência policial – uma violência que pode ser perturbadora para crianças –, mas mantém referências aos soldados que morrem na guerra em nome da Pátria. Tem mais a ver com adequação a uma narrativa política do que adequação à idade.

Poderão dizer que, ao contrário das pressões vindas da esquerda, o que está em causa são livros usados nas escolas, não escolhas dos pais. A isso pode responder-se que quem censura não são as editoras, por pressão do mercado, mas o próprio Estado, o que me parece ser mais grave.

NÃO É NOVO

Este movimento censório também não é novo. Voltando ao texto de Rogério Casanova, que merece ser lido, recorda-se que as várias edições de “Charlie e a Fábrica de Chocolate” já não reproduzem o texto original desde 1973. Nesse, os oompa-loompas eram “pigmeus negros” vindos “dos recantos mais escuros de África”. Da mesma forma, “Matilda” foi sendo profundamente editado.

O racismo de Enid Blyton foi duramente criticado nos anos 60, quando as três personagens de “The Three Golliwogs” eram Golly, Woggie e Nigger – mais tarde passaram a ser Wiggy, Waggy e Woggy. São bonecas de trapos, com pele negra, lábios vermelhos exagerados e cabelo frisado, associadas ao crime e aos perigos que assolavam a pequena aldeia. “The Little Black Doll” é sobre uma boneca negra odiada pela sua dona e as outras bonecas. Foge de casa e a chuva lava seu rosto, deixando-o cor-de-rosa. Depois disso, é bem recebida em casa. A editora didática Macmillan rejeitou, em 1960, “O Mistério Que Nunca Existiu”, de Blyton, porque havia “um toque nada atraente de xenofobia antiquada na atitude para com os ladrões; eles são 'estrangeiros'... isso parece ser considerado suficiente para explicar sua criminalidade”. A verdade é que Enid Blyton chegou ao nosso tempo limpa de parte dessas impurezas racistas. Muito antes de qualquer moda politicamente correta.

A atualização moral das obras infantis é tão antiga como as obras infantis. O objetivo é oferecer às crianças um conjunto de regras morais de convivência. E, se assim é, têm de se adaptar. Aconteceram, entretanto, duas coisas. A primeira é a destruição de um aparente consenso do que é a moral dominante nos países ocidentais, o que cria uma clivagem que se esconde atrás de um debate sobre a “censura”. A segunda é o nascimento de um novo ator político a que, estranhamente, a esquerda aderiu de alma e coração: o consumidor.

A principal origem da castração moralista da literatura não resulta de qualquer tipo de radicalização esquerdista. Até diria que ela é sintomática de uma rendição da esquerda.

A DESADEQUAÇÃO DE AFONSO

Voltemos aos livros para adultos, onde este debate muda de figura. Recentemente, o jovem escritor Afonso Reis Cabral, que venceu o prémio Saramago, partilhou nas redes sociais uma resposta de uma editora norte-americana, em 2019. Não pretendia fazer uma denúncia e muito menos acusar alguém de censura. Queria dar testemunho dos critérios que hoje dominam as editoras anglo-saxónicas.

“Pão de Açúcar”, que trata da morte de Gisberta, uma mulher trans brasileira assassinada por um grupo de adolescentes, em 2006, no Porto, e “O Meu Irmão”, onde uma das personagens tem síndrome de Down, foram recusados porque poderiam ferir a sensibilidade do público norte-americano: “O escritor é claramente muito talentoso. Acho, no entanto, que a franqueza em ‘O Meu Irmão’ pode ser problemática para o mercado dos Estados Unidos, onde esses assuntos são levados muito a sério pelos media. A crítica do ‘Pão de Açucar’ foi boa, mas um colega expressou preocupação sobre uma pessoa cis escrever sobre uma pessoa trans – outro assunto de alta sensibilidade aqui. Tentei encontrar uma pessoa LGBTQ que falasse português para escrever um relatório de sensibilidade, mas não consegui encontrar ninguém."

Não diria que ativismo não pode ser literatura, porque dizer que "A Mãe", de Gorki, ou "As Vinhas da Ira”, de Steinbeck, dois livros de denúncia politicamente empenhada, não são literatura seria, no mínimo, ousado. Mas reduzir a literatura ao ativismo é, como bem diz Afonso Reis Cabral, empobrecê-la. Mas nem é bem isto que está em causa. Até porque os argumentos para não publicar os dois livros são tão contraditórios como a sensibilidade do mercado: um é demasiado sincero e vivido, o outro é escrito por quem não preenche as características para ser o seu autor. Esta é, aliás, uma das tragédias culturais que vivemos: na avaliação da obra, o autor sobrepôs-se à obra.

Li que há uma nova função, a do “leitor sensível”. Como o conselheiro histórico, ele procura retirar ao autor as suas circunstâncias, preconceitos, medos, ódios. Procura descarná-lo, higienizá-lo, desautorá-lo. Não chega a ser uma forma de censura, porque é aparentemente consentida. É um processo autorizado de castração (continuarei a usar metáforas, se não me levam a mal), que transforma o ato criativo num ato de cobardia. É aceitável para a indústria, que pretende agradar ao mercado. É prostituição intelectual, porque a função do escritor não é agradar. Se há coisas de que ele não sabe e mesmo assim escreve, se faz mau trabalho de pesquisa, será fraco escritor. Mas o critério não é a sensibilidade do leitor, é a verdade da obra.

O escritor convida o leitor a mergulhar nas suas contradições, luta com ele, prende-o, solta-o, seduz, repele. Não trabalha para agradar o cliente. A não ser, claro, que se dedique ao entretenimento literário. Mas, nesse caso, talvez seja abusivo dizer que é um escritor. É um publicador de livros. Esses não se sentirão limitados. Mas quem vive da sua liberdade criativa sente-se mais constrangido do que há dez ou vinte anos. Porque há um ambiente censório? Porque há novas vozes no espaço público? Porque as redes sociais tornaram a pressão mais fácil? Porque tudo, absolutamente tudo, passou a ser motivo para a guerra de trincheiras? Talvez seja um pouco disto tudo. Mas a verdade é que um escritor maldito não seria hoje mais do que um escritor “polémico”, esse carimbo promocional que vive do mesmo negócio que a capitalização do bem.

TODOS CEDEM AO MERCADO

Tive contacto com a história de Afonso Reis Cabral através da partilha, noutra rede social, de perfis de pessoas de direita, sobretudo “liberais”. Eram, em geral, contra a histeria da esquerda politicamente correta. As reações, quase todas irónicas, respondiam com a liberdade empresarial. A ironia só é desajustada porque é, de facto, essa a questão. Não há compressor censório mais eficaz do que o mercado e é por isso que os “liberais”, chegados aqui, entram num beco sem saída.

A mercantilização absoluta da cultura implica, como em qualquer negócio, adaptar o produto às necessidades e gostos dos clientes. E isso inclui a sua sensibilidade e incómodo. É por isso que uma arte exclusivamente dependente do mercado é conservadora, medrosa e, no limite, autocensurada. Também é por isso que sociedades livres, mas sem um mercado suficientemente vasto para que pequenos nichos sustentem contraculturas, encontram outras formas de garantir o pluralismo cultural para além do mercado.

Quem acha que é o mercado que legitima uma obra como bem cultural alimenta uma falsa ideia liberdade que esmaga qualquer forma de dissensão. Os “leitores sensíveis” não são mais do que conselheiros de mercado. As editoras não os contratam porque estão preocupadas com os direitos das minorias. Contratam-nos porque querem prever más reações do mercado a algo que o incomode ou perturbe. Hoje é o facto de um autor cis escrever sobre uma trans, ontem foram cenas sexuais mais escandalosas. Os editores querem navegar, mas sem ondas.

O problema de movimentos que deveriam ser emancipatórios, mas baseiam a sua intervenção na indignação viral, procurando espalhar pelo mercado uma reação negativa perante qualquer produto incómodo, não é serem movimentos censórios. Na maioria dos casos, faltam-lhes instrumentos para tanto. É a sua eficácia depender de uma reação do mercado. E esta é a cedência “liberal” da esquerda, que se pode replicar, aliás, a todos os movimentos de boicote ao consumo, que subsituem o cidadão ou o trabalhador pelo consumidor, transferindo a desigualdade da capacidade aquisitiva para a desigualdade de poder político. Eu sou tão mais eficaz na minha luta quanto mais poder tiver como consumidor. Querem coisa menos à esquerda do que isto?

https://expresso.pt/opiniao/2023-06-22-O-mercado-e-o-maior-censor-616d7165 


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