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sábado, 29 de julho de 2023
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Carlos Matos Gomes - Curiosidade pessoal — vale a pena?
quinta-feira, 20 de julho de 2023
José Pedro Teixeira Fernandes - O complexo militar-industrial, os think tanks e a guerra na Ucrânia.
ANÁLISE
* José Pedro Teixeira Fernandes
19 de Julho de 2023,
Nas democracias
liberais, os think tanks são tipicamente expressões da
sociedade civil (embora nem sempre) e dependem, naturalmente, de financiadores
privados com diversas origens.
1. No
seu discurso de despedida de 1961, o Presidente Dwight Eisenhower advertia os norte-americanos sobre os
sérios perigos de um poder “mal colocado” ligado à ascensão da influência
política do “complexo militar-industrial” dos EUA: “… Temos de nos precaver
contra a aquisição de influência injustificada, procurada ou não, pelo complexo
militar-industrial. O potencial para a ascensão desastrosa de um poder mal
colocado existe e persistirá.”
O aviso de
Eisenhower é um clássico. Foi inúmeras vezes citado para criticar a política
externa dos EUA e a desnecessidade de intervenções militares, desde a guerra do
Vietname nos anos 1960 e 1970 até à invasão do Iraque em 2003. Mais recentemente,
o debate à volta das intervenções militares norte-americanas foi marcado
por Ben Rhodes, antigo conselheiro adjunto de Segurança
Nacional para as comunicações estratégicas do Governo de Barack Obama, que
criou a expressão the blob (“a bolha”). Provavelmente,
interage com o filme de ficção científica e terror com o mesmo nome (The Blob)
dos anos 1950, realizado por Irvin Yeaworth e com Steve McQueen como
protagonista. Nele anunciava-se uma bolha assassina como “Indescritível... indestrutível!
Nada a pode parar!”.
Inicialmente o
termo “blob” referia-se aos que apoiaram a decisão de invasão do
Iraque, quer na área do Partido Republicano (como Robert Gates), quer na área
do Partido Democrata (como Hillary Clinton). Pela sua boa sonoridade — e ironia
cáustica —, rapidamente se tornou popular e amplificou o uso. Passou a designar
o establishment da política externa e de segurança e defesa,
ou seja, os que trabalham no governo, na indústria militar, nos meios
académicos e think tanks da área. Este denegrir do establishment gerou
controvérsia e naturais contracríticas. Para Hal Brands, Peter Feaver e William
Inboden, “o establishment da política externa americana é
a solução, não o problema”.
2. Recentemente,
uma outra controvérsia estalou nos EUA, agora ligada ao financiamento de
múltiplos think tanks pela indústria militar, tal como foi
denunciado no estudo Defense Contractor Funded Think Tanks
Dominate Ukraine Debate, assinado por Ben Freeman para o Quincy Institute
for Responsible Statecraft. Segundo esse estudo (p. 3), nos EUA os think
tanks “são um recurso de eleição para os meios de comunicação social
que procuram opiniões de especialistas sobre questões prementes de política
pública”. Todavia, “um número crescente de estudos tem demonstrado que os seus
financiadores podem influenciar as suas análises e comentários.” Acrescenta-se
ainda que “um desses debates diz respeito ao nível adequado de envolvimento
militar dos EUA na invasão russa da Ucrânia”.
Desde a decisão
ilegal e desastrosa de Vladimir Putin de lançar uma invasão em grande escala da
Ucrânia, os EUA aprovaram cerca de 48,7 mil milhões de dólares em despesas
militares. Apesar do risco bem real de que a escalada possa levar a um
envolvimento militar directo dos EUA na guerra, “poucos think tanks analisaram
criticamente este montante recorde de assistência militar”. Por sua vez, é
também aí referido que os dez maiores think tanks dos EUA
ligados à política externa e de segurança e defesa (p.12) — Brookings
Institution, Carnegie Endowment for International Peace, Center for Strategic
and International Studies, Wilson Center (Woodrow Wilson International Center
for Scholars), RAND Corporation, Atlantic Council, Council on Foreign
Relations, Center for American Progress, Center for a New American Security,
Hudson Institute — são todos, de alguma forma, financiados por empresas ligadas
ao sector militar.
Ainda segundo o
mesmo estudo (p. 23), a grande maioria das referências nos media a think
tanks em artigos sobre a guerra na Ucrânia provém de instituições
“cujos financiadores lucram com as despesas militares dos EUA, com a venda de
armas e, em muitos casos, directamente com o envolvimento dos EUA na guerra na
Ucrânia”. Estará o debate sobre o fornecimento de armas à Ucrânia a ser
manipulado? E que pensar do facto de o think tank que agora
publicou este estudo (o referido Quincy Institute for Responsible Statecraft)
ser financiado por um milionário liberal (George Soros) e
por um milionário conservador (Charles Koch), os quais juntaram esforços para
atacar a “ortodoxia em Washington de que o uso da força militar deve continuar
a ser o principal instrumento do poder americano no mundo”?
3. Para
analisar o problema com sobriedade e razoabilidade importa efectuar algumas
considerações prévias. Seja nos EUA ou em qualquer outra parte do mundo,
os think tanks são, por natureza, “laboratórios de ideias”, ou
seja, são instituições que se dedicam a produzir e a difundir conhecimento,
promovendo debates e publicação de estudos e artigos no espaço público,
incluindo nos media. Assim, desempenham um papel de difusão de
determinadas ideias e políticas públicas apresentadas como as melhores
soluções. Um caso clássico é a RAND Corporation. Surgiu em 1948 para ligar o planeamento
militar às decisões de investigação e desenvolvimento, impulsionada pela
Douglas Aircraft Company, uma empresa aeroespacial que foi um dos principais
fabricantes de caças a jacto e veículos espaciais.
A RAND
apresenta-se como “uma instituição sem fins lucrativos que ajuda a melhorar a
política e a tomada de decisões através de investigação e análise”. Na sua
missão afirma também “ser amplamente respeitada por operar independentemente de
pressões políticas e comerciais” e que os “valores fundamentais são a qualidade
e a objectividade”. Todavia, o seu financiamento é não só privado, como
governamental e do Exército dos EUA. Nas democracias liberais, os think
tanks são tipicamente expressões da sociedade civil (embora nem
sempre) e dependem, naturalmente, de financiadores privados com diversas
origens. Pelas características próprias do Estado e sociedade norte-americanas
e do seu modelo de democracia liberal — com grande espaço para os interesses
privados, sejam empresariais ou de outro tipo —, estes “laboratórios de ideias”
têm aí uma grande margem de manobra. Isso ocorre em áreas tão diversas como a
defesa, o ambiente, o sector financeiro, a indústria farmacêutica ou outras.
4. Neste
debate, como noutros similares, prevalecem duas posições extremadas que captam
a opinião pública e se espalham pela Internet e redes sociais. Uma que vê estes
“laboratórios de ideias” de uma forma particularmente benigna, ingénua ou não,
como produzindo sempre um conhecimento objectivo e especializado de grande
valor, próximo do ideal da neutralidade científica e em prol do bem comum. Uma
outra coloca-se no extremo oposto, denegrindo, sistematicamente, até de forma
absurda, tais instituições como fazendo parte de uma grande conspiração. Vê-as
como puros instrumentos de interesses privados e empresariais obscuros e um
rosto da “bolha” e do complexo-militar industrial.
Ambas, embora
sob formas e em graus diferentes, distorcem o problema, estando mais próximas
do pensamento por slogans e de claque do que de um espírito
crítico. O cerne do problema é que, paradoxalmente, numa sociedade da
informação plural, é muitas vezes difícil formar uma opinião sólida nos
argumentos e nos factos que a suportam. No caso da Ucrânia, perceber
exactamente o que é o material militar adequado às suas necessidades de defesa
— sejam tanques, mísseis, aviões ou outro equipamento militar — e o que é um
aproveitamento de uma guerra para vender mais material militar é tarefa árdua.
Entre outras
coisas, depende de um elevado conhecimento técnico (e prático) das
características do equipamento militar, de uma avaliação factual honesta da
situação militar no terreno e da ponderação rigorosa dos riscos de alastramento
do conflito a outros Estados. O drama para o cidadão comum (e até para o
especialista militar e em questões internacionais) é que toda essa informação
necessária raramente está disponível. Mas reconhecer a mais-valia de
conhecimento especializado trazida pelo think tanks, a par dos seus
interesses e agendas próprias, já é um bom princípio. Apesar dos manifestos
excessos que dominam o debate, há uma nota positiva: mostra como a liberdade, o
pluralismo e a possibilidade de contraditório funcionam no Ocidente. Nada disto
é possível na Rússia ou na China.
Investigador do
IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa
quarta-feira, 19 de julho de 2023
João L. Maio - O estranho fenómeno da twitterização da vida e do desfasamento das novas gerações
segunda-feira, 17 de julho de 2023
Carmo Afonso - A propósito de uma influenciadora digital
OPINIÃO
* Carmo Afonso (Público
17 de Julho de
2023?
A situação que
se vive é a de verdadeira selva. Quem aprecia o mercado a funcionar livremente
e sem intervenções de um regulador tem aqui uma excelente oportunidade de
avaliar o resultado dessa lógica
Talvez alguns
de vós tenham visto um vídeo em que uma influenciadora, Joana Mascarenhas,
partilhava as suas experiências como mãe e educadora de uma criança de 3 anos.
Joana Mascarenhas anunciou como eficaz para resolver as birras que a sua filha
fazia uma submersão súbita e inesperada em água fria. Usou esse método quando
estavam na piscina, mas também em casa de madrugada. Molhou a filha em água
fria tendo esta o pijama vestido. Garante que foi remédio santo e que a filha deixou
de fazer birras.
O vídeo é
chocante em vários aspetos. Desde logo, é difícil não ficarmos presos ao
sofrimento daquela filha sem direito a birras e sujeita a um método de
aprendizagem digno de Guantanamo. Uma criança que, na narrativa da mãe, parou
de chorar depois de lhe acontecer o que levaria qualquer criança ao choro. Na
lógica da mãe parou de chorar porque aprendeu uma lição. Difícil não concluir
que foi o terror que a silenciou.
Por outro lado,
vemos uma jovem partir do princípio que a sua atuação como mãe deve ser
partilhada, ou seja, que tem o valor de conhecimento.
Joana
Mascarenhas é uma entre centenas de outras pessoas que usam as suas contas nas
redes sociais – com destaque para o Instagram – para influenciar os seus
seguidores. Esta influência pode ser para comprar determinados produtos ou
contratar determinados serviços ou simplesmente para dar conselhos de vida. A
prudência obrigaria a que desconfiássemos sempre de alguém que acredita ter
conselhos úteis para dar em relação à vida de terceiros. Poderíamos até
estabelecer aqui uma regra: todos aqueles que acreditam ter tanto jeito para
viver que podem dar conselhos de vida aos outros não devem ser ouvidos. Mas
estas pessoas são efetivamente ouvidas e há quem siga os conselhos que dão ao
mundo.
É relativamente
fácil, mesmo em Portugal, que alguém consiga obter rendimentos relevantes
explorando comercialmente a sua conta, os seus seguidores e a sua capacidade
para convencer esses seguidores a realizarem uma compra ou contratação. É,
aliás, possível que essa atividade se transforme em profissão. Não estamos a
falar de algo marginal na economia ou tão pouco de irrelevante no universo do
investimento das marcas em marketing e publicidade.
O problema é
que esta atividade não está regulamentada e não existe legislação específica
que defina regras ou boas práticas. O máximo a que se chegou foi um guia para
influenciadores e anunciantes feito pela Direção Geral do Consumidor. Nesse
documento fazem-se recomendações e tenta-se dar orientações com recurso à
legislação existente.
Mas claramente
não chega. A legislação que já existe não foi pensada para o mundo digital e
para a possibilidade de uma proliferação de utilizadores das redes sociais
terem interesse comercial para as marcas e, a partir daí, serem remunerados
diretamente por elas para divulgarem os seus produtos ou serviços. A situação
que se vive agora é a de verdadeira selva. Quem tanto aprecia o mercado a
funcionar livremente e sem intervenções de um regulador tem aqui uma excelente
oportunidade de avaliar o resultado dessa lógica, política ou filosofia.
E os resultados
estão à vista. Vemos, por exemplo, pais a explorar comercialmente a imagem de
menores até à exaustão. São crianças que praticamente desde o nascimento são
fotografadas para serem associadas a marcas. O interesse público, que neste
caso coincide com o superior interesse de cada criança, não é chamado a
intervir e não tem uma palavra a dizer. Centenas ou milhares de pais estão
livremente a facturar a infância dos filhos como se ela lhes pertencesse e como
se tivessem um direito natural a fazê-lo. Há aqui um grande engano e está a
fazer vítimas.
Os
influenciadores digitais são uma nova face do empreendedorismo. Pessoas que
vendem marcas e que promovem o seu próprio modo de estar na vida como tendo
valor para o coletivo. Podemos olhar para o lado e fazer de conta que estas
pessoas não estão, praticamente sem regras, a trabalhar no mercado e a exercer
a sua influência como querem e como mais beneficia as marcas. Hoje uma dica
sobre como tratar a birra de uma criança, amanhã um anúncio publicitário
disfarçado de partilha de um momento familiar. Até ao dia em que seremos todos
obrigados a reconhecer que faz falta legislação. Se não for a bem, será a mal.
Advogada