sábado, 29 de julho de 2023

Daniel Oliveira - Colaboradores de todo o mundo, uni-vos!

SEMANÁRIO#2648 - 28/7/23

* Daniel Oliveira


Contando a história de um jovem chefe de sucesso que, no meio de uma tragédia pessoal, troca a sofisticada cozinha de um restaurante de três estrelas pela recuperação de uma decadente casa de sandes da família, “The Bear” foi o grande sucesso das séries lançadas no último verão. O êxito estrondoso, ampliado na segunda temporada, esconde as condições miseráveis em que vivem alguns dos fazedores deste sucesso. Sem dinheiro para manter o aquecimento do seu minúsculo apartamento em Brooklyn, Alex O’Keefe, o redator da equipa de argumentistas que deu cor à trama, teve de escrever a sua parte do episódio final da temporada numa biblioteca pública. Quando foi receber o prestigiado prémio da Writers Guild of America, tinha saldo negativo na conta. Familiares e amigos arranjaram-lhe o smoking, mas o laço teve de ser comprado a crédito.


O glamour da televisão tem como motor uma mão de obra precária que dificilmente consegue pagar as contas ao fim do mês. Quanto mais o seu trabalho é reconhecido e culturalmente influente, pior são as suas condições de vida. O modelo de negócio dos estúdios de streaming teve um efeito disruptivo na forma de fazer televisão. Onde uma série típica nos canais tradicionais tinha 20 a 22 episódios, o streaming aposta em temporadas de oito a dez. O resultado para o espectador são níveis de produção idênticos ao dos melhores filmes, com uma atenção ao detalhe e direção artística impensáveis até ao aparecimento da HBO. O resultado para quem os faz foi uma redução de 40 para 20 semanas de tempo médio de trabalho em casa série, num meio onde se é pago à peça. E se dantes recebiam por cada reposição nas televisões, agora, com o streaming, recebem apenas uma vez. Foi para reverter a degradação das condições contratuais e salariais que os argumentistas entraram numa greve a que se juntaram os atores e que vai durar meses.

Metade dos argumentistas, do mais novo ao mais premiado, recebem o valor mínimo acordado com o sindicato. Há uma década, eram apenas um terço. O vencimento caiu em 23% no mesmo período. Quase 90% dos atores recebem menos de 26 mil dólares por ano, o mínimo para ter direito a seguro de saúde. Não há dinheiro para mais? Como em todo o lado, dinheiro não falta. Há é quem, aproveitando este momento disruptivos, fique com grande parte do bolo. Só contando os últimos cinco anos, o CEO da Warner Bros recebeu 498 milhões de dólares em salário e ações, o da Netflix 209 milhões e o seu número dois 192 milhões. Na Walt Disney, que anunciou um programa de cortes e despedimentos, Bob Iger acumulou 195 milhões. Quantos argumentistas sem cheta são precisos para fazer um CEO milionário?

Não são a tecnologia e o modelo de negócio que determinam as perdas ou ganhos. É a capacidade de mover a balança do poder. Até em Hollywood, onde se inventou o “sonho americano”, o percebem

A intenção de reduzir os direitos e o rendimento distribuído aos criadores intelectuais, agora com o recurso à inteligência artificial, não podia ser mais clara. Apesar de não ser a razão mais relevante para esta greve, também contou a pretensão, anunciada pelos estúdios, de que os atores cedam os direitos para a utilização ilimitada no futuro da sua voz e imagem. É uma medida que não afeta os principais nomes, que continuarão a ganhar bem e a ser chave em qualquer produção, mas arrisca-se a encher de réplicas de IA as dezenas de pequenos papéis que dão vivacidade a qualquer série ou filme. Vitais para o ganha-pão e possível ascensão na carreira a milhares de atores. Os mesmos estúdios que movem montanhas para proteger os seus direitos sobre propriedade intelectual querem retirar direito de identidade e imagem a quem está na origem da propriedade intelectual que tão zelosamente defendem.

Hollywood transformou-se numa parte da gig economy, em que todos são tratados como estafetas da Uber. Acontecerá o mesmo até aos que se julgam protegidos por profissões até hoje privilegiadas. Se nada fizermos, avanços tecnológicos como a inteligência artificial não servirão, como podem servir, para nos libertar de atividades pouco interessantes ou melhorar o nosso desempenho, mas para concentrar ainda mais a riqueza. Hoje, como no início do século XIX, não vale a pena destruir as máquinas. Não é a tecnologia que nos escraviza, é a relação de poder que lhe é prévia. A greve em Hollywood é, como em qualquer fábrica, sobre essa relação de poder.

Com o teletrabalho, meses em casa e pleno emprego, a pandemia mudou a noção de trabalho. Não é por acaso que a ressaca coincide com uma onda de sindicalização nos EUA. A imprensa fala no verão de todas as greves. Para lá dos piquetes que se tornaram comuns nas lojas da Starbucks ou da McDonald’s, mais de 650 mil trabalhadores estão em greve ou em processo de discussão nesse sentido, incluindo sectores como a indústria automóvel, camionistas, assistentes de bordo da American Airlines ou trabalhadores dos hotéis em Los Angeles. Seja com operários e mineiros ou estafetas e motoristas da Uber, investigadores precários ou argumentistas e atores, chamem-lhes “trabalhadores” ou “colaboradores”, não são a tecnologia e a mudança de modelo de negócio que determinam as perdas ou ganhos de quem vive do seu trabalho. É a capacidade de resistir e mover a balança do poder. Até em Hollywood, onde se inventou a fantasia do sonho americano, o percebem.

https://expresso.pt/opiniao/2023-07-27-Colaboradores-de-todo-o-mundo-uni-vos-

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