OPINIÃO
* Carmo Afonso (Público
17 de Julho de
2023?
A situação que
se vive é a de verdadeira selva. Quem aprecia o mercado a funcionar livremente
e sem intervenções de um regulador tem aqui uma excelente oportunidade de
avaliar o resultado dessa lógica
Talvez alguns
de vós tenham visto um vídeo em que uma influenciadora, Joana Mascarenhas,
partilhava as suas experiências como mãe e educadora de uma criança de 3 anos.
Joana Mascarenhas anunciou como eficaz para resolver as birras que a sua filha
fazia uma submersão súbita e inesperada em água fria. Usou esse método quando
estavam na piscina, mas também em casa de madrugada. Molhou a filha em água
fria tendo esta o pijama vestido. Garante que foi remédio santo e que a filha deixou
de fazer birras.
O vídeo é
chocante em vários aspetos. Desde logo, é difícil não ficarmos presos ao
sofrimento daquela filha sem direito a birras e sujeita a um método de
aprendizagem digno de Guantanamo. Uma criança que, na narrativa da mãe, parou
de chorar depois de lhe acontecer o que levaria qualquer criança ao choro. Na
lógica da mãe parou de chorar porque aprendeu uma lição. Difícil não concluir
que foi o terror que a silenciou.
Por outro lado,
vemos uma jovem partir do princípio que a sua atuação como mãe deve ser
partilhada, ou seja, que tem o valor de conhecimento.
Joana
Mascarenhas é uma entre centenas de outras pessoas que usam as suas contas nas
redes sociais – com destaque para o Instagram – para influenciar os seus
seguidores. Esta influência pode ser para comprar determinados produtos ou
contratar determinados serviços ou simplesmente para dar conselhos de vida. A
prudência obrigaria a que desconfiássemos sempre de alguém que acredita ter
conselhos úteis para dar em relação à vida de terceiros. Poderíamos até
estabelecer aqui uma regra: todos aqueles que acreditam ter tanto jeito para
viver que podem dar conselhos de vida aos outros não devem ser ouvidos. Mas
estas pessoas são efetivamente ouvidas e há quem siga os conselhos que dão ao
mundo.
É relativamente
fácil, mesmo em Portugal, que alguém consiga obter rendimentos relevantes
explorando comercialmente a sua conta, os seus seguidores e a sua capacidade
para convencer esses seguidores a realizarem uma compra ou contratação. É,
aliás, possível que essa atividade se transforme em profissão. Não estamos a
falar de algo marginal na economia ou tão pouco de irrelevante no universo do
investimento das marcas em marketing e publicidade.
O problema é
que esta atividade não está regulamentada e não existe legislação específica
que defina regras ou boas práticas. O máximo a que se chegou foi um guia para
influenciadores e anunciantes feito pela Direção Geral do Consumidor. Nesse
documento fazem-se recomendações e tenta-se dar orientações com recurso à
legislação existente.
Mas claramente
não chega. A legislação que já existe não foi pensada para o mundo digital e
para a possibilidade de uma proliferação de utilizadores das redes sociais
terem interesse comercial para as marcas e, a partir daí, serem remunerados
diretamente por elas para divulgarem os seus produtos ou serviços. A situação
que se vive agora é a de verdadeira selva. Quem tanto aprecia o mercado a
funcionar livremente e sem intervenções de um regulador tem aqui uma excelente
oportunidade de avaliar o resultado dessa lógica, política ou filosofia.
E os resultados
estão à vista. Vemos, por exemplo, pais a explorar comercialmente a imagem de
menores até à exaustão. São crianças que praticamente desde o nascimento são
fotografadas para serem associadas a marcas. O interesse público, que neste
caso coincide com o superior interesse de cada criança, não é chamado a
intervir e não tem uma palavra a dizer. Centenas ou milhares de pais estão
livremente a facturar a infância dos filhos como se ela lhes pertencesse e como
se tivessem um direito natural a fazê-lo. Há aqui um grande engano e está a
fazer vítimas.
Os
influenciadores digitais são uma nova face do empreendedorismo. Pessoas que
vendem marcas e que promovem o seu próprio modo de estar na vida como tendo
valor para o coletivo. Podemos olhar para o lado e fazer de conta que estas
pessoas não estão, praticamente sem regras, a trabalhar no mercado e a exercer
a sua influência como querem e como mais beneficia as marcas. Hoje uma dica
sobre como tratar a birra de uma criança, amanhã um anúncio publicitário
disfarçado de partilha de um momento familiar. Até ao dia em que seremos todos
obrigados a reconhecer que faz falta legislação. Se não for a bem, será a mal.
Advogada
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