quinta-feira, 20 de julho de 2023

José Pedro Teixeira Fernandes - O complexo militar-industrial, os think tanks e a guerra na Ucrânia.

ANÁLISE

* José Pedro Teixeira Fernandes

19 de Julho de 2023,

Nas democracias liberais, os think tanks são tipicamente expressões da sociedade civil (embora nem sempre) e dependem, naturalmente, de financiadores privados com diversas origens.


1. No seu discurso de despedida de 1961, o Presidente Dwight Eisenhower advertia os norte-americanos sobre os sérios perigos de um poder “mal colocado” ligado à ascensão da influência política do “complexo militar-industrial” dos EUA: “… Temos de nos precaver contra a aquisição de influência injustificada, procurada ou não, pelo complexo militar-industrial. O potencial para a ascensão desastrosa de um poder mal colocado existe e persistirá.”

O aviso de Eisenhower é um clássico. Foi inúmeras vezes citado para criticar a política externa dos EUA e a desnecessidade de intervenções militares, desde a guerra do Vietname nos anos 1960 e 1970 até à invasão do Iraque em 2003. Mais recentemente, o debate à volta das intervenções militares norte-americanas foi marcado por Ben Rhodes, antigo conselheiro adjunto de Segurança Nacional para as comunicações estratégicas do Governo de Barack Obama, que criou a expressão the blob (“a bolha”). Provavelmente, interage com o filme de ficção científica e terror com o mesmo nome (The Blob) dos anos 1950, realizado por Irvin Yeaworth e com Steve McQueen como protagonista. Nele anunciava-se uma bolha assassina como “Indescritível... indestrutível! Nada a pode parar!”.

Inicialmente o termo “blob” referia-se aos que apoiaram a decisão de invasão do Iraque, quer na área do Partido Republicano (como Robert Gates), quer na área do Partido Democrata (como Hillary Clinton). Pela sua boa sonoridade — e ironia cáustica —, rapidamente se tornou popular e amplificou o uso. Passou a designar o establishment da política externa e de segurança e defesa, ou seja, os que trabalham no governo, na indústria militar, nos meios académicos e think tanks da área. Este denegrir do establishment gerou controvérsia e naturais contracríticas. Para Hal Brands, Peter Feaver e William Inboden, “o establishment da política externa americana é a solução, não o problema”.

2. Recentemente, uma outra controvérsia estalou nos EUA, agora ligada ao financiamento de múltiplos think tanks pela indústria militar, tal como foi denunciado no estudo Defense Contractor Funded Think Tanks Dominate Ukraine Debate, assinado por Ben Freeman para o Quincy Institute for Responsible Statecraft. Segundo esse estudo (p. 3), nos EUA os think tanks “são um recurso de eleição para os meios de comunicação social que procuram opiniões de especialistas sobre questões prementes de política pública”. Todavia, “um número crescente de estudos tem demonstrado que os seus financiadores podem influenciar as suas análises e comentários.” Acrescenta-se ainda que “um desses debates diz respeito ao nível adequado de envolvimento militar dos EUA na invasão russa da Ucrânia”.

Desde a decisão ilegal e desastrosa de Vladimir Putin de lançar uma invasão em grande escala da Ucrânia, os EUA aprovaram cerca de 48,7 mil milhões de dólares em despesas militares. Apesar do risco bem real de que a escalada possa levar a um envolvimento militar directo dos EUA na guerra, “poucos think tanks analisaram criticamente este montante recorde de assistência militar”. Por sua vez, é também aí referido que os dez maiores think tanks dos EUA ligados à política externa e de segurança e defesa (p.12) — Brookings Institution, Carnegie Endowment for International Peace, Center for Strategic and International Studies, Wilson Center (Woodrow Wilson International Center for Scholars), RAND Corporation, Atlantic Council, Council on Foreign Relations, Center for American Progress, Center for a New American Security, Hudson Institute — são todos, de alguma forma, financiados por empresas ligadas ao sector militar.

Ainda segundo o mesmo estudo (p. 23), a grande maioria das referências nos media a think tanks em artigos sobre a guerra na Ucrânia provém de instituições “cujos financiadores lucram com as despesas militares dos EUA, com a venda de armas e, em muitos casos, directamente com o envolvimento dos EUA na guerra na Ucrânia”. Estará o debate sobre o fornecimento de armas à Ucrânia a ser manipulado? E que pensar do facto de o think tank que agora publicou este estudo (o referido Quincy Institute for Responsible Statecraft) ser financiado por um milionário liberal (George Soros) e por um milionário conservador (Charles Koch), os quais juntaram esforços para atacar a “ortodoxia em Washington de que o uso da força militar deve continuar a ser o principal instrumento do poder americano no mundo”?

3. Para analisar o problema com sobriedade e razoabilidade importa efectuar algumas considerações prévias. Seja nos EUA ou em qualquer outra parte do mundo, os think tanks são, por natureza, “laboratórios de ideias”, ou seja, são instituições que se dedicam a produzir e a difundir conhecimento, promovendo debates e publicação de estudos e artigos no espaço público, incluindo nos media. Assim, desempenham um papel de difusão de determinadas ideias e políticas públicas apresentadas como as melhores soluções. Um caso clássico é a RAND Corporation. Surgiu em 1948 para ligar o planeamento militar às decisões de investigação e desenvolvimento, impulsionada pela Douglas Aircraft Company, uma empresa aeroespacial que foi um dos principais fabricantes de caças a jacto e veículos espaciais.

A RAND apresenta-se como “uma instituição sem fins lucrativos que ajuda a melhorar a política e a tomada de decisões através de investigação e análise”. Na sua missão afirma também “ser amplamente respeitada por operar independentemente de pressões políticas e comerciais” e que os “valores fundamentais são a qualidade e a objectividade”. Todavia, o seu financiamento é não só privado, como governamental e do Exército dos EUA. Nas democracias liberais, os think tanks são tipicamente expressões da sociedade civil (embora nem sempre) e dependem, naturalmente, de financiadores privados com diversas origens. Pelas características próprias do Estado e sociedade norte-americanas e do seu modelo de democracia liberal — com grande espaço para os interesses privados, sejam empresariais ou de outro tipo —, estes “laboratórios de ideias” têm aí uma grande margem de manobra. Isso ocorre em áreas tão diversas como a defesa, o ambiente, o sector financeiro, a indústria farmacêutica ou outras.

4. Neste debate, como noutros similares, prevalecem duas posições extremadas que captam a opinião pública e se espalham pela Internet e redes sociais. Uma que vê estes “laboratórios de ideias” de uma forma particularmente benigna, ingénua ou não, como produzindo sempre um conhecimento objectivo e especializado de grande valor, próximo do ideal da neutralidade científica e em prol do bem comum. Uma outra coloca-se no extremo oposto, denegrindo, sistematicamente, até de forma absurda, tais instituições como fazendo parte de uma grande conspiração. Vê-as como puros instrumentos de interesses privados e empresariais obscuros e um rosto da “bolha” e do complexo-militar industrial.

Ambas, embora sob formas e em graus diferentes, distorcem o problema, estando mais próximas do pensamento por slogans e de claque do que de um espírito crítico. O cerne do problema é que, paradoxalmente, numa sociedade da informação plural, é muitas vezes difícil formar uma opinião sólida nos argumentos e nos factos que a suportam. No caso da Ucrânia, perceber exactamente o que é o material militar adequado às suas necessidades de defesa — sejam tanques, mísseis, aviões ou outro equipamento militar — e o que é um aproveitamento de uma guerra para vender mais material militar é tarefa árdua.

Entre outras coisas, depende de um elevado conhecimento técnico (e prático) das características do equipamento militar, de uma avaliação factual honesta da situação militar no terreno e da ponderação rigorosa dos riscos de alastramento do conflito a outros Estados. O drama para o cidadão comum (e até para o especialista militar e em questões internacionais) é que toda essa informação necessária raramente está disponível. Mas reconhecer a mais-valia de conhecimento especializado trazida pelo think tanks, a par dos seus interesses e agendas próprias, já é um bom princípio. Apesar dos manifestos excessos que dominam o debate, há uma nota positiva: mostra como a liberdade, o pluralismo e a possibilidade de contraditório funcionam no Ocidente. Nada disto é possível na Rússia ou na China.

 

Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa

https://www.publico.pt/2023/07/19/mundo/analise/complexo-militarindustrial-think-tanks-guerra-ucrania-2057441


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