sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Domingos Lobo - Cró­nicas e Dis­cursos, de An­tónio Borges Co­elho


* Domingos Lobo

Cró­nicas e Dis­cursos são pro­duto de uma sagaz, viva e ac­tu­ante de­núncia cí­vica do autor

No novo Museu Na­ci­onal da Re­sis­tência e Li­ber­dade, no Forte de Pe­niche, en­con­tramos o Mo­nu­mento de Ho­me­nagem aos Presos Po­lí­ticos. É um for­tís­simo e sim­bó­lico ele­mento es­cul­tó­rico, da au­toria de José Au­rélio. Na base dessa ins­ta­lação mag­ní­fica temos di­reito a uma frase feliz, com en­de­reço, da au­toria de An­tónio Borges Co­elho: Dis­seram Não, para que a água da vida cor­resse limpa!

Este Cró­nicas e Dis­cursos, de An­tónio Borges Co­elho, trans­porta-nos, em vá­rias dessas cró­nicas, pro­duto de uma sagaz, viva e ac­tu­ante de­núncia cí­vica, para os dias em que o autor es­teve preso no Forte de Pe­niche com ou­tros ca­ma­radas, acu­sado do crime de pensar di­fe­rente, de ter, como muitos ou­tros, uma po­sição crí­tica contra a di­ta­dura e de, na­tu­ral­mente, lutar para o seu der­rube. Nas três cró­nicas que têm o Forte-Prisão como ce­nário, o autor evoca Álvaro Cu­nhal, líamos co­pi­o­gra­fadas as suas pa­la­vras no Tri­bunal Ple­nário, e os tempos em que ambos ali es­ti­veram em re­clusão. As três cró­nicas traçam o perfil de Cu­nhal, o in­te­lec­tual que es­creveu na For­ta­leza o en­saio A Arte, o Ar­tista e a So­ci­e­dade; a no­vela Cinco Dias e Cinco Noites A Mu­lher do Lenço Preto, que re­ce­beria o tí­tulo final de Até Amanhã, Ca­ma­radas, e o com­ba­tente. Fala-nos da fuga épica de 3 de Ja­neiro de 1960, dia em que Sa­lazar tremeu.

A cró­nica é o gé­nero jor­na­lís­tico mais nobre e di­fícil, diz quem por essas an­danças pre­en­cheu longos lin­guados e lhe sentiu os es­co­lhos da in­ves­tida. Borges Co­elho, con­segue tornar o gé­nero sim­ples, o seu apo­dí­tico modo dis­cur­sivo traça a es­sência, sem em­barcar em re­dun­dân­cias, mesmo quando o tema é de âm­bito li­te­rário, como nas cró­nicas em que nos fala de An­tónio Nobre, num texto que é um no­tável en­saio sobre a obra do autor de , esse poeta que en­cheu a po­esia de cor; ou de José Sa­ra­mago, um re­trato sen­si­tivo, José! Fazem-nos muita falta a tua ami­zade e as tuas con­versas, do autor de O Ano da Morte de Ri­cardo Reis Le­van­tado do Chão, com­pa­nheiros que foram no Su­ple­mento Cul­tural do Jornal A Ca­pital.

Sa­li­en­tamos ainda do ca­pí­tulo Ca­derno do Re­pórter, a cró­nica Da­maia 1968, a des­crição dos su­búr­bios para os quais co­me­çavam a ser em­pur­rados os tra­ba­lha­dores que não con­se­guiam pagar as rendas, já usu­rá­rias nessa data, pra­ti­cadas, como hoje, numa Lisboa a saque: Da­maia. Gigas de ca­rapau re­fulgem ao sol es­cal­dante en­quanto, contra a mu­ralha do Aque­duto, ene­gre­cida pelo tempo, se en­costam portas sem pa­rede, cai­bros, latas, pernas de ca­deiras de­sir­ma­nadas.

A cró­nica Um Rio Sub­ter­râneo trata de um tema caro ao autor, através de um es­crito do cristão-novo, Ri­beiro San­ches, Di­fi­cul­dades Que Tem Um Reino Velho em Emendar-se, livro em que San­ches ad­voga, entre ou­tras «he­re­sias», que se re­tirem ao clero os ren­di­mentos em dí­zimas e terras e re­cebam apenas sa­lário «e pouco». San­ches é um autor a que Borges Co­elho também re­correu, em­bora noutra pers­pec­tiva, no livro Reino Velho Com Emenda.

Um texto so­bre­leva pela sua ac­tu­a­li­dade, con­tun­dência e bri­lhan­tismo nar­ra­tivo: O Médio Ori­ente na Sala dos Ca­pelos, pu­bli­cado ori­gi­nal­mente em o diário. Nessa sala ilustre e so­lene da Uni­ver­si­dade de Coimbra, um guer­ri­lheiro pa­les­ti­niano, que pa­recia saído do nosso pró­prio povo, falou do seu ter­ri­tório na­ci­onal ocu­pado. O pú­blico aplaudiu de pé e os re­tratos dos reis não caíram abaixo. Numa outra pas­sagem deste texto, o his­to­ri­ador faz jus ao di­a­le­tismo como vem cons­truindo a sua ho­mé­rica His­tória de Por­tugal: Res­peitar os mortos só por fora é usar a His­tória para parar a His­tória, é pre­tender obrigar os povos a man­terem eter­na­mente as ca­deias da de­pen­dência e da sub­missão.

É ainda o olhar do his­to­ri­ador que des­creve o terror da In­vasão do Iraque, re­fe­rindo que o pavor e a morte caem sobre a ci­dade das Mil e Uma Noites; das bombas da NATO que, em Abril de 1999, de noite, caíram sobre a Ju­gos­lávia, per­gun­tando-se, em outra cró­nica, como o an­gus­tiado Er­nest He­mingway, Por Quem os Sinos Do­bram?, ou Kant, de­sig­nando as duas con­di­ções que con­duzem o homem ao êx­tase per­pétuo: «O céu es­tre­lado por cima das nossas ca­beças e a lei moral no fundo do nosso co­ração.»

Cró­nicas e Dis­cursos, de An­tónio Borges Co­elho, pro­fessor ju­bi­lado da Fa­cul­dade de Le­tras de Lisboa, in­ves­ti­gador, his­to­ri­ador, poeta, cro­nista, dra­ma­turgo e fic­ci­o­nista, uma das per­so­na­li­dades ci­meiras da nossa cul­tura, dá-nos nestas ex­ce­lentes cró­nicas, uma visão pro­funda, re­flec­tida e culta da agreste re­a­li­dade po­lí­tica e so­cial dos nossos dias, afir­mando que A es­pe­rança de que falo de­sem­boca em mul­ti­dões na rua larga em de­fesa da dig­ni­dade e das li­ber­dades con­quis­tadas em sé­culos de in­venção, de luta e de sangue.

https://www.avante.pt/pt/2648/argumentos/176762/Cr%C3%B3nicas-e-Discursos-de-Ant%C3%B3nio-Borges-Coelho.htm

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Jorge Feliciano - Mãe Coragem?

 


* Jorge Feliciano 

A en­gre­nagem da guerra todos con­some, nin­guém con­segue agir sem ser em con­so­nância com ela
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«É tempo de per­ceber que não ha­verá man­teiga nas nossas mesas sem ca­nhões que a ga­rantam», disse o Chefe do Es­tado Maior da Ar­mada, Gou­veia e Melo, em Abril deste ano. Esta chan­tagem bem po­deria ser feita pelo En­ga­jador ou pelo Sar­gento, per­so­na­gens da peça de te­atro Mãe Co­ragem e os seus fi­lhos, de Ber­tolt Brecht, que andam de terra em terra a an­ga­riar ho­mens para com­bater na guerra.
Tal como Gou­veia e Melo, que pediu uma re­acção da so­ci­e­dade por­tu­guesa para que esta saísse «do es­tado de co­mo­dismo e in­di­fe­rença», também o En­ga­jador da peça de Brecht se mostra in­dig­nado com a di­fi­cul­dade em en­con­trar ho­mens para a guerra: «Não sabem o que é pa­lavra de homem, não têm sen­tido de honra, não têm le­al­dade nem fé.»
As frases ditas por estes per­so­na­gens são in­tem­po­rais da pro­pa­ganda de guerra, que a apre­sentam como um fa­ta­lismo, ideia que atinge o seu cul­minar em pro­cla­ma­ções como esta outra de Gou­veia e Melo: «Se a Eu­ropa for ata­cada e a NATO assim exigir temos de morrer onde ti­vermos de morrer para a de­fender.»
Se queres man­teiga na mesa, dá em troca os teus fi­lhos
Ber­tolt Brecht es­creve a pri­meira versão de Mãe Co­ragem e os seus fi­lhos em 1939, em pouco mais de um mês. A peça ha­veria de es­trear em 1941, já em plena guerra, em Zu­rique, com He­lene Weigel no papel de Mãe Co­ragem. Em Por­tugal, a peça foi re­cen­te­mente le­vada a cena pelo Te­atro do Bairro, com a ac­triz Maria João Luís no papel de Mãe Co­ragem, numa re­pre­sen­tação por­ten­tosa das con­tra­di­ções da per­so­nagem, jun­tando-se assim a Eu­nice Muñoz e Te­resa Ga­feira, as Mães Co­ragem, res­pec­ti­va­mente, do Novo Grupo de Te­atro (1986) e da Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada (2000).
Mãe Co­ragem e seus fi­lhos é uma peça que expõe a en­gre­nagem so­cial que per­mite a guerra acon­tecer e con­ti­nuar. Mas uma en­gre­nagem que Brecht mostra como pos­sível de ser trans­for­mada. Trata-se de um de­safio ao pú­blico. Como foi pos­sível isto acon­tecer? O que seria pos­sível fazer para que as coisas fossem de outra ma­neira?
Os acon­te­ci­mentos a que a peça re­porta de­correm em 1624, du­rante a Guerra dos Trinta anos. Mas o que Brecht mostra são os me­ca­nismos da as­censão do nazi-fas­cismo que le­varam à Se­gunda Guerra Mun­dial. Uma ne­go­ci­ante vai de terra em terra com a sua car­roça ven­dendo mer­ca­do­rias di­versas. Para ela a guerra traz-lhe ga­nhos su­fi­ci­entes para so­bre­viver e a paz é algo que não quer porque, con­si­dera, a pode levar à mi­séria. Como não ver aqui uma das prin­ci­pais li­nhas da ma­ni­pu­lação feita pelos nazi-fas­cistas de que a guerra e a con­quista re­pre­sen­tavam a saída do povo alemão da po­breza e da mi­séria?
Da sua al­cunha, a pró­pria diz: «Chamo-me Co­ragem, sar­gento, porque tinha medo de ficar ar­rui­nada e atra­vessei o fogo de ar­ti­lharia de Riga, com cin­quenta pães na car­roça. Já es­tavam cheios de bolor, e por isso não havia tempo a perder.» Será isto co­ragem ou de­ses­pero?
No en­tanto, a guerra, que é «o seu pa­trão», con­tradiz a mãe que também é. Ela não quer que os seus fi­lhos morram a com­bater. Tem amor por eles. Mas como lhe faz ver o Sar­gento, «queres en­gordar as tuas crias com a guerra e não dar nada em troca?» Ela bate-se pelo não alis­ta­mento na guerra dos seus fi­lhos, mas é dis­traída pelos mi­li­tares com a chance de um bom ne­gócio e já está, os fi­lhos são le­vados.
A muda que faz do tambor a voz da co­ragem
Nesta peça a en­gre­nagem da guerra todos con­some, nin­guém con­segue agir sem ser em con­so­nância com ela. A ex­cepção é a muda, a filha que resta. Um dos exér­citos pre­tende atacar du­rante a noite uma al­deia que dorme. Os cam­po­neses dos ar­ra­baldes são ame­a­çados pelos mi­li­tares de forma a fi­carem qui­etos e nada fa­zerem. En­quanto as tropas avançam e os cam­po­neses rezam, é a muda que sobe a um te­lhado, de tambor na mão, e bate nele com todas as forças que tem. É aba­tida, mas o povo da al­deia acorda

https://www.avante.pt/pt/2648/argumentos/176763/M%C3%A3e-Coragem.htm

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Carlos Matos Gomes - Os atletas são os soldados de um regimento…

Carlos Matos Gomes

Recolhido em casa das animosidades do clima porque o corpo já tem inimigos com que se entreter, entretenho-me a ver o grande circo de Verão - que este ano calhou ser o das Olimpíadas. Tenho-me  lembrado do meu neto na primeira vez que o levei ao circo, a perguntar.me o que faziam os palhaços quando não estavam na pista a realizar habilidades para ele se rir. Também me pergunto o que fazem estas pessoas, os atletas - do grego athletes, com origem no termo aethos, que significa esforço, sendo o atleta aquele que compete com esforço por um prêmio, quando não estão em atuação. Treinam, claro. E além do treino, porque se esforçam os atletas e porque tem de ser premiado o seu esforço? Eu entendo o negócio que utiliza os atletas e de que os atletas se aproveitam, fazendo-se pagar pelo seu esforço. Mas o que leva centenas de milhares de pessoas, os mais altos dirigentes das nações, os maiores cientistas, as melhores capacidades tecnológicas a dedicarem o melhor das suas capacidades para fazer uma pirueta, um remate com a mão ou o pé numa bola e para a transmitir a todo o mundo em câmara lenta, ou em pormenor e a receberem a bandeira do seu país, ou daquele que lhe paga e os aplausos do hierarca que vem das lonjuras da pátria a Paris para saudar o seu atleta? 

Ontem, ao assistir à prova de mergulho com trampolim, confesso que esperei que um dos ditos atletas se atirasse de chapão para a água. Inimaginável, porque aquilo é um assunto sério! Os jovens estavam seriíssimos como robôs. Todos têm de ser muito bem comportados, domesticados. Apenas um cavalo teve a ousadia de cagar a meio da prova! Vivam os animais. Livres! 

Os atletas são os soldados de um regimento que marcha disciplinadamente para um pódio. No intervalo, treinam ordem unida. Também soube que uma atleta foi expulsa dos jogos porque saiu da aldeia e foi ver a Disneylandia - justo castigo, não se pode sair de um jardim zoológico para ir à concorrência.  

Aguardo com expetativa a cerimónia de encerramento dos Jogos. Imagino que seja com o esvaziamento do Sena a e venda da água em garrafinhas com forma da Torre Eiffel.

2024 08 09 
https://www.facebook.com/carlos.matosgomes

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Fausto Neves - A Música e a Paz



*  Fausto Neves

Ainda de olhos hú­midos pelo horror da 2.ª Grande Guerra e na an­gústia do mundo não ter apren­dido ainda com o con­flito, os eu­ro­peus as­sis­tiram à es­treia em 1962 do “War Re­quiem” do in­glês Ben­jamin Britten: uma missa de de­funtos de­di­cada à morte da guerra.

Mis­tu­rando o tra­di­ci­onal texto li­túr­gico com po­esia pa­ci­fista de Wil­fred Owen que co­teja as pa­la­vras bí­blicas, Britten, ob­jector de cons­ci­ência in­glês, co­ra­jo­sa­mente as­su­mido em plena guerra, e Owen, obri­gado a com­bater e morto na 1.ª guerra mun­dial, vi­eram mu­ni­ciar a obra com os seus exem­plos. Ainda a re­levar a sim­bo­logia da co­e­xis­tência de duas or­ques­tras (sin­fó­nica e de câ­mara) com um coro gi­gan­tesco e três so­listas (ori­gi­nal­mente so­prano russo, tenor in­glês e baixo alemão), e a es­treia na re­cons­truída ca­te­dral de Con­ventry (ar­ra­sada pelas bombas alemãs).

É a Mú­sica um veí­culo po­de­roso para a Paz e para a luta que esta nos me­rece?

Sim e… não, como toda a Arte no con­texto so­cial en­vol­vente, no âm­bito de classe pos­si­dente do mo­mento his­tó­rico.

A poucos dias da Festa, sa­bemos da força da en­to­ação co­lec­tiva de um Avante, ca­ma­rada! ou de uma In­ter­na­ci­onal. “Eles” também o sabem e desde há muito: pen­semos no uso que Hi­tler fez da Mú­sica para ali­enar mul­ti­dões…

Só que o fu­turo é só um: o do pro­gresso. E pro­gresso é paz, não guerra; é a eman­ci­pação do Homem e não o obs­cu­ran­tismo, com as opo­nentes “carnes para ca­nhão”, lan­çadas em lutas sempre fra­tri­cidas.

E a Arte, com a Mú­sica in­cluída, não re­siste a longo apri­si­o­na­mento, ao travar da His­tória ou mesmo re­tardar-lhe o passo: ha­verá sempre quem lembre “aos amigos para mu­darem de tom, de som”, como fez Be­ethoven na inu­si­tada en­trada de uma voz so­lista na sua 9.ª sin­fonia.

E se a prá­tica coral pode ser ex­ce­lente exemplo da co­o­pe­ração entre vozes e idi­os­sin­cra­sias na cons­trução de um som co­lec­tivo; se o fa­moso “El Sis­tema” bo­li­va­riano de or­ques­tras, aces­sí­veis a todos os alunos de mú­sica sem qual­quer obs­tá­culo de acesso, é ex­por­tado – às es­con­didas… para tantos países com su­cesso, num exemplo de eman­ci­pação so­cial pela prá­tica mu­sical de qua­li­dade; se a Or­questra West-Eas­tern Divan, criada por Da­niel Ba­rem­boim, pôs jo­vens ju­deus, pa­les­ti­ni­anos e árabes em geral a dar con­certos ines­que­cí­veis por todo o mundo, ar­ra­sando exem­plar­mente os ac­tuais gro­tescos tam­bores do horror, temos entre nós um fe­nó­meno que me­rece al­gumas li­nhas, ainda no ca­pí­tulo de in­ter­venção pela mú­sica: uma vez mais a nossa “Car­va­lhesa”!

As “car­va­lhesas” são ir­re­sis­tí­veis danças, to­cadas por gai­teiros (con­junto de gaita-de-foles, caixa e bombo), sem letra as­so­ciada. A “Car­va­lhesa” que co­nhe­cemos, se­gundo re­colha de Kurt Schin­dler, ofe­re­cida ao PCP pelo seu mi­li­tante Mi­chel Gi­a­co­metti e mais tarde ar­ran­jada por Fausto Bor­dalo Dias na sua versão mais po­pular, não sendo can­tada, “não possui qual­quer sig­ni­fi­cado in­ter­ven­tivo”, como é de­fen­dido por mu­si­có­logos para quem a mú­sica só ganha um sen­tido com letra.

Quem vai à Festa per­cebe fa­cil­mente que, pelo menos, esta te­oria terá ex­cep­ções (!): se­guindo a sua vo­cação ini­cial, a “Car­va­lhesa”, às pri­meiras notas, é mola im­pul­si­o­na­dora de mul­ti­dões para a dança!

Além disso a “Car­va­lhesa”, pela sua po­pu­la­ri­dade e cunho etno-mu­sical ge­nuíno, re­siste na sua jo­vial fun­ci­o­na­li­dade ao afo­ga­mento cri­mi­noso en­ce­tado em força pela mú­sica co­mer­cial de má qua­li­dade, que tenta se­parar o ci­dadão, quer da sua mú­sica tra­di­ci­onal, quer do pa­tri­mónio mu­sical de todos os tempos a que tem di­reito e ne­ces­si­dade. Na Festa re­cria de certa ma­neira a his­tória e a evo­lução da Mú­sica com o po­si­ci­o­na­mento do Homem pe­rante ela: solta em todos a te­lú­rica pulsão pri­mária da Dança, nos pri­mór­dios li­gada in­ti­ma­mente à Mú­sica, e que, por ne­ces­si­dade de es­pe­ci­a­li­zação ins­tru­mental e cres­cente abs­tracção hu­mana, se foi sa­cri­fi­cando; deixa de­mo­cra­ti­ca­mente o seu usu­fruto à es­colha livre do pú­blico – a) ex­pri­mindo fi­si­ca­mente as suas pul­sões; b) fa­zendo-o pru­den­te­mente, abrindo os olhos em si­mul­tâneo para o es­pec­tá­culo co­lec­tivo; c) pro­cu­rando em ex­clu­sivo um local ele­vado com visão pri­vi­le­giada sobre o es­pec­tá­culo inol­vi­dável.

Numa pe­nada, temos a origem da Mú­sica um­bi­li­cal­mente li­gada à Dança, a pos­si­bi­li­dade morna de po­dermos usu­fruir em si­mul­tâneo do mo­vi­mento e do es­pec­tá­culo e, por úl­timo, a po­sição de pú­blico so­li­dário e vi­brante com o quadro es­pec­ta­cular ob­ser­vado.

No meio de tudo isto, é claro, a Paz e a ale­gria de viver: o fu­turo será sempre nosso.

2024 08 09

https://www.avante.pt/pt/2645/argumentos/176540/A-M%C3%BAsica-e-a-Paz.htm

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Entrevista a João Paulo Guerra



Cultura

24 de julho 2016 - 16:15

O segundo romance do jornalista e escritor João Paulo Guerra conta uma história ficcional baseada numa doença real, a Perturbação Pós-Stresse Traumático. É uma doença crónica e contagiosa, que só foi reconhecida em Portugal em 1995, vinte anos depois do fim da guerra colonial. Entrevista de Joana Louçã.

porJoana Louçã

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"Era uma vez uma mulher que viu um filho partir para a guerra. E quando o filho regressou, a mãe não era a mesma mulher e o próprio filho era outro, embora não o soubesse." Assim começa o segundo livro de João Paulo Guerra, que serviu de mote a esta entrevista, que pode ser vista, parcialmente, em vídeo aqui e lida na íntegra em baixo.

Quando a Perturbação Pós-Stresse Traumático foi diagnosticada, chamaram-lhe “corações irritáveis”, nome que deu origem ao título do seu romance. De onde surgiu a ideia deste livro?

A ideia de escrever este livro surgiu a partir de trabalho que fiz como jornalista. Fiz, nos anos 90, uma série de entrevistas em que consegui entrevistar stressados de guerra que tinham muita relutância em falar, eu também não queria violentar a sua privacidade, queria respeitar a sua privacidade. Mas através de contactos com os médicos que os tratavam, escolhemos alguns stressados que podiam falar e aos quais até faria bem da sua doença.

Tive longas conversas com eles, para perceber bem os mecanismos, como é que funcionava, como é que tinham adquirido aqueles sintomas, porque de alguma forma tinha assistido a manifestações primárias daquela doença no tempo em que fiz o serviço militar, em Moçambique. Assisti a cenas que me mostraram que as pessoas se transformam, se transtornam, fica perturbadíssimas. Cenas de pancadaria por coisa nenhuma. Num café em Vila Cabral [atualmente chamada Lichinga] assisti a uma cena de extrema violência com soldados a agredirem-se, a atingirem-se uns aos outros com latas de cerveja que rebentavam e explodiam, uma coisa de uma violência extrema depois saíam todos amigos dali, era só deitar cá para fora qualquer coisa que tinham muito reprimida dentro deles. 

Num café em Vila Cabral assisti a uma cena de extrema violência com soldados a agredirem-se e depois saíam todos amigos dali, era só deitar cá para fora qualquer coisa que tinham muito reprimida dentro deles. 

Tinha esses vislumbres do tempo em que estive em Moçambique, no tempo da guerra colonial, e interessei-me mais ainda por aqueles casos e fiz uma série de entrevistas e de reportagens, algumas das quais dolorosas para os entrevistados e para mim, e provavelmente mais perturbadoras mais para mim do que para eles. Na altura, trabalhava na TSF e fiz uma grande emissão num dia 25 de abril, a TSF tinha adotado o lema para aquele dia de comemorações do 25 de abril o facto de fazer 20 anos de ter acabado aquela guerra e eu perturbava aquela paz, dizendo que a guerra ainda não acabou.

Começava a minha parte naquele programa com uma conversa, e uma montagem, com stressados de guerra, clínicos, terapeutas, pessoas que conviviam com eles, os seus pesadelos. Foi aí que me interessou. E com esta bagagem que tinha, os conhecimentos que tinha, até de pessoas, de escritos, assisti a muitas palestras dos psiquiatras que se dedicaram à doença e de associações que se formaram, como a Apoiar, uma associação de apoio aos stressados de guerra. Assisti a muitas conferências e debates promovidos por eles e tinha muito conhecimento disto. Achei que o conhecimento que eu tinha merecia que eu dedicasse alguma coisa a esta causa, que é falar deste problema, é uma sobrevivência de uma guerra que todas a gente pensa que acabou, mas para estes homens não acabou, continua e entretanto se transmite às mulheres e aos filhos.

A primeira vez que o stress de guerra foi identificado foi no século XIX. Em que circunstâncias se deu o primeiro diagnóstico médico da doença em Portugal?

Em Portugal a doença foi identificada muito tardiamente. Durante a guerra evitou-se sempre classificar estes homens, identificar que doença tinham, eram simplesmente internados no hospital militar. Em Luanda, no hospital, os casos mais graves, que se manifestavam de forma mais exuberante, eram “tratados” com choques elétricos. Foi sempre tentado não levantar ondas com esta doença.

A lei que reconhece a doença do stress de guerra só foi publicada em Portugal em 1995 e tem tantos alçapões, que, um homem que sofra do stress de guerra, desde que se queixa até ao momento em que começa a ser tratado, terão passados 15 anos.

Foi através dos próprios doentes que o Estado foi obrigado a reconhecer a doença. Levou muito tempo, a lei que reconhece a doença do stress de guerra, que já era reconhecida pela Organização Mundial de Saúde e que já era reconhecida nos Estados Unidos desde o século XIX, só foi publicada em Portugal em 1995. E foi publicada com tantos alçapões, com tantas dificuldades que, aplicando aquela lei, um homem que sofra do stress de guerra, desde que se queixa até ao momento em que começa a ser tratado, terão passados 15 anos.

É preciso que ele vá buscar uma certidão de onde esteve e que tipo de serviço militar prestou, depois que vá ao médico de família, depois que vá ao médico militar, depois que vá a uma Junta que nunca mais o chama e com isto passam-se 14, 15 anos. Foi a revelação deste prazo enorme e desumano que tive conhecimento numa sessão de divulgação desta doença e sobre a situação destes doentes, foi uma das coisas que me motivou para ajudar, de alguma forma. E a forma que tenho de ajudar os outros é escrevendo.

A experiência de viver uma guerra, no caso do seu livro a guerra colonial, é algo definidor da vida das pessoas que o experienciam. À pergunta se o marido “fez” a guerra (e note-se a utilização do verbo fazer e não “estar”), a mulher do personagem responde “não, a guerra é que o fez a ele”. A guerra passa a ser “a guerra infinita”, “a guerra dele não acabou” como refere no livro.

Uma personagem diz “esta doença é uma bomba ao retardador. Por vezes manifesta-se ou degenera alguns anos após os acontecimentos traumatizantes. Também acontece que os traumas ficam adormecidos e, por esta ou por aquela razão, despertam.” O que pode levar a este despertar e, uma vez despertos os traumas, as pessoas conseguem levar uma vida independente, quotidiana?

Em primeiro lugar, quero falar sobre a questão se ele fez a guerra ou se a guerra é que o fez a ele. Quando comecei a escrever este livro, achei que já se tinham escrito muitos romances sobre a guerra colonial. O Lobo Antunes, o João Aguiar, muita gente escreveu, as pessoas que passaram por lá deixaram os seus testemunhos, etc. E eu pensei que um dos meus objetivos era não escrever sobre os homens que fizeram a guerra, o sofrimento, o que eles passam. Não, pensei, não vou escrever um livro sobre os homens que fizeram a guerra, vou escrever sobre o que a guerra fez aos homens, que é o que é este livro, o que é que a guerra fez a estes homens, a estes, e a outros. 

E eu pensei que um dos meus objetivos era não escrever sobre os homens que fizeram a guerra, o sofrimento, o que eles passam. Não, pensei, vou escrever sobre o que a guerra fez aos homens, que é o que é este livro, o que é que a guerra fez a estes homens. 

Porque uma das características desta doença é que há um número estimado de doentes, que é grande, são dezenas de milhares de doentes portugueses em resultado da sua participação na guerra colonial. Entretanto, muitos já morreram, mas o número ainda é muito alto. Mas a maior parte deles nem tem consciência que tem a doença. São pessoas de quem a família diz, “ah, ele quando voltou da guerra veio diferente, passou a ser outra pessoa, tornou-se mais irascível, tem menos paciência para mim, bebe mais, dorme menos”. As pessoas começam a referir os sintomas como uma coisa que lhe aconteceu e não como uma doença que ele tem e que se pode tratar ou, pelo menos, que se pode acompanhar e que se pode minimizar. É isso que a medicina faz, porque isto é uma doença e nesse caso deve ser a medicina que trata dela, nesse caso, a medicina mental, a saúde mental que deve tratar estes doentes.

Muitas destas pessoas começaram a dar por isso, porque tinham reações despropositadas a alguns acontecimentos, bate uma porta e atiram-se para o chão, vão na rua e ao estrondo de um escape de um automóvel atiram-se para o chão, aterrorizam-se. Começaram a perceber que isto não era um susto que apanharam uma vez ou outra, é uma coisa sistemática, que está com eles, que reside neles, na cabeça deles. Alguns destes homens começaram a procurar auxílio médico.

Em Portugal, os primeiros foram os primeiros a ser encaminhados para o serviço de psicoterapia temperamental do Hospital Júlio de Matos, com o Dr. Afonso de Albuquerque e a Dra. Fanny Lopes e muitos outros, mas foram estes os primeiros. Ele diagnosticou rapidamente o que tinham porque quando o médico tenta fazer o diagnóstico, não vai só perguntar “de que é que se queixa?”, “queixo-me que quando bate uma porta, eu atiro-me para o chão”. E o médico pergunta “ah, sim, e por onde é que você andou ao longo da sua vida?”. E vai encontrar que esteve na guerra, e que esteve debaixo de fogo, por exemplo, e que ouviu explosões de minas, ou de obuses, ou de outra coisa qualquer. E o médico vai identificar a causa e o que são os efeitos que estão a acontecer.

Foi isto que foi acontecendo em Portugal e depois uns combatentes diziam a outros, há muitas associações de combatentes e muita proximidade. Aquilo foi uma experiência tão violenta na vida das pessoas que elas procuram-se muito umas às outras, é umas com as outras que desabafam, então estas que têm marcas na sua vida, como é este caso. E começaram a falar uns aos outros, houve uma altura em que havia já 200 doentes a receber tratamento médico no Hospital Júlio de Matos em Lisboa.

Muitas destas pessoas começaram notar que tinham reações despropositadas a alguns acontecimentos, bate uma porta e atiram-se para o chão, começaram a perceber que isto é uma coisa sistemática, que está com eles, que reside neles, na cabeça deles. Alguns destes homens começaram a procurar auxílio médico.

Um dos grandes problemas que se deparou é que isto não saía de Lisboa, do Hospital Júlio de Matos, até que esta lei de 1995 criou apoios para os doentes, ligados aos Centros de Saúde, mas há um número ínfimo de serviços a funcionar e, se alguém experimentar ir a um Centro de Saúde e queixar-se, o mais certo é que não havia nenhum serviço organizado para o acolher e o tratar. 

“Na guerra que estes homens travam, os inimigos são agora eles próprios”, afirma uma personagem no livro. “Eles sofrem porque são humanos. A sua humanidade não suporta os horrores que viram”, esclarece outra. O que é que alguém com esta doença pode fazer, que tipo de acompanhamento há?

O tratamento, tal como com outras doenças mentais, é um tratamento de grande persistência, entrar no mais íntimo que as pessoas têm, as suas memórias e recordações, más ou boas, o seu temperamento, a sua maneira de reagir às coisas, de estar com os outros, tudo isto, e tentar corrigir o que está mal por motivo da doença que o doente tem. Claro, também é tratado com meios químicos e com sessões de tratamento de psicoterapia de grupo. Há casos em que é útil que eles falem, há outros em que falar os perturba, portanto, o médico diagnostica o que é melhor para ele e segue esse tratamento.

Ela “não soube, mas a partir daquele dia começou a interiorizar, sem o ter vivido, o estrondo das explosões e o silêncio das esperas, o fogo das armas e o terror de matar, tudo isso e mais todos os delírios e alucinações de uma mente perturbada e de um coração irritável, tudo isso ela veio a assumi-lo com efeitos devastadores”. Os investigadores concluíram que o stress de guerra não só é crónico, como contagioso. Como se dá esse contágio?

Ligando estas duas informações, que o tratamento existe na lei, mas que é muito demorado e que entretanto as mulheres e os filhos vão ficando também contagiados, isto torna esta doença quase uma epidemia.

Isso foi uma das coisas que aprendi frequentando sessões de divulgação sobre a doença e os doentes, concretamente esse foi uma sessão da associação Apoiar, em que uma psicóloga deu esses dados, que na altura eram uma novidade, que é que a doença é crónica e é contagiosa. No caso, inicialmente só havia doentes homens, porque esta guerra foi feita por homens. Naquele tempo a incorporação militar era de homens, as mulheres que participavam na guerra eram voluntárias e participavam como enfermeiras, como enfermeiras paraquedistas, etc. Tinham funções subsidiárias, não propriamente em combate. Portanto, os stressados de guerra conhecidos são homens. Stressados dessa guerra, porque agora já há stressados portugueses das guerras do Afeganistão, e do Kosovo, estamos sempre metidos em todas essas coisas.

Ligando estas duas informações, que o tratamento existe na lei, mas que nunca mais acontece, é muito demorado, que é uma questão de sorte ser tratado, dar com o médico certo e com o tratamento certo. Sendo que isto demora este tempo todo e que entretanto as mulheres e os filhos vão ficando também contagiados, isto torna esta doença quase uma epidemia. Porque não são só uma alguns dos antigos combatentes que apresentam sintomas desta doenças, mas são já as famílias que começam a manifestar os sintomas e a receber tratamento e a viverem com isto.

“O país estava em guerra, uma guerra civil não declarada. Uma guerra quase desconhecida e que o país institucional, o país comodamente sentado, acomodado, amodorrado, conhecia mas ignorava.” Em Portugal, há alguma estimativa da dimensão da doença? 

Os números variam muito, porque não há, verdadeiramente, estatísticas, há estimativas. A primeira que houve foi porque havia estatísticas nos EUA sobre a guerra do Vietname e fez-se uma comparação. Quantos homens estiveram mobilizados para a guerra do Vietname, quantos soldados militares estiveram mobilizados para a guerra do Vietname e quantos estiveram mobilizados para a guerra de Portugal em Angola, Guiné e Moçambique. Em função do numero de estressados que existiam nos EUA, estimou-se um numero que poderia haver para os stressados que haveria em Portugal. E estamos só a falar de Portugal, não estamos a falar do outro lado. A Portugal, provavelmente, já não lhe competia ter atenção aos doentes do outro lado, mas deveria ter atenção aos africanos que combateram no exército português e que eventualmente poderão também sofrer da doença. 

Fazendo a comparação com o número de stressados que havia nos EUA por causa da guerra do Vietname, o número em Portugal seria cerca de 140, 150 mil. Nunca se chegou próximo de identificar esse número de casos.

Os números variam muito, são muito incertos. Houve uma altura em que se falava em 140, 150 mil. Em Portugal tinham sido mobilizados para as três guerras coloniais perto de um milhão de jovens portugueses, ou militares de carreira. Fazendo a comparação com o número de stressados que havia nos EUA por causa da guerra do Vietname, o número em Portugal seria esse. Nunca se chegou próximo de identificar esse número de casos.

O número de casos identificado foi sempre variando, começou a haver mais pessoas a irem ao médico e a queixarem-se desta doença. Isto começou a permitir outras extrapolações para outros números em Portugal. Os últimos números que ouvi são bastante diferentes, um anda à volta dos cem mil, outro anda à volta dos cinquenta mil, mas são todos estimativas, não são estatísticas.

A que tratamento tem acesso quem vive fora de Lisboa?

Quem vive fora de Lisboa tem que vir a Lisboa, se pensar em alguém que vive numa pequena terriola no interior que tenha um Centro de Saúde e que vá lá e que se queixe que não dorme, que diga que acorda com pesadelos, “mas não dorme porquê, tem pesadelos porquê?”. “Ah, estive na guerra”… se lá chegar! Porque não há meios, porque os meios não foram criados. A lei que reconhece a doença deveria ter sido acompanhada pela criação de uma estrutura que seguisse a par do SNS e que permitisse que o SNS atendesse estes doentes, com especialistas.

Porque não há meios, porque os meios não foram criados. A lei que reconhece a doença deveria ter sido acompanhada pela criação de uma estrutura que seguisse a par do SNS e que permitisse que o SNS atendesse estes doentes, com especialistas.

 

Numa sessão em que estive recentemente da Apoiar, em que ouvi falar não só ex militares stressados, mas mulheres stressadas e filhos stressados pela guerra que os pais fizeram, nessa sessão, foi dito por algumas pessoas que chegam a ser tratadas com algum desprezo, as pessoas que se vão queixar a um Centro de Saúde, a dizer “então, ainda não me deram resposta”, “lá vem este”… as pessoas ouvem, lá por estarem perturbadas não deixam de ouvir os comentários depreciativos que fazem a seu respeito. Dizerem isto não só não contribui para a melhoria do seu estado de saúde, como com certeza contribui para que piore.

As pessoas contagiadas, mas que não estiveram na guerra também têm acesso ao tratamento?

Sim, se os ex combatentes da sua família tiverem a ser acompanhados. Mas depois há coisas quase perversas. Se uma mulher apresentar sintomas do stress de guerra e o marido estiver a ser acompanhado, ela tem direito ao acompanhamento. Mas se o marido morrer, a mulher perde o direito ao acompanhamento. Porque o direito não é um direito dela, é um direito do marido, extensivo a ela. E, portanto, morrendo o marido, acaba-se o direito a que ela tem por tabela, não por direito próprio.

No livro há a referência a um jornalista, Carlos Gualdino, é uma representação de si próprio? 

Não, pode ter algumas referências, por exemplo, estar com frequência desempregado, fui despedido tantas vezes ao longo da vida profissional como jornalista! Pode ter alguma coisa de muitos jornalistas que conheci, e conheci muitos. Quando comecei a trabalhar no Rádio Club Português, trabalhava com pessoas que eram os seus fundadores, das primeiras pessoas que falaram ao microfone, estavam ali, trabalhavam comigo. Eu tinha 20 anos e eles 50, 60.

Acho que é bom escrever-se com lágrimas nos olhos, com sentimentos, porque as pessoas não são máquinas, e o código deontológico não pode ser um espartilho para as pessoas deixarem de ter sentimentos e passarem a ser autómatos. Eu sofro com o sofrimento dos outros e ponho esse sofrimento naquilo que escrevo.

 

Nela posso estar eu e podem estar muitos outros jornalistas que conheço e que conheci ao longo da minha vida profissional. Sobre a personagem, usei a frase e atribuí-a a Batista Bastos, o autor, dizendo que “escreveu uma reportagem com lágrimas nos olhos”. Porque acho que é bom escrever-se com lágrimas nos olhos, com sentimentos, porque as pessoas não são máquinas, e o código deontológico não pode ser um espartilho para as pessoas deixarem de ter sentimentos e passarem a ser autómatos, amorfos e indiferentes ao sentimentos dos outros. Não, eu sofro com o sofrimento dos outros e ponho esse sofrimento naquilo que escrevo.

Também fez o serviço militar em Moçambique, o que o levou a focar-se nesta temática?

Não foi tanto por mim, por ter estado na guerra, que até tive uma guerra um bocado “exótica”, a saltar de uns lados para os outros, desde o Grupo Recreativo das Forças Armadas, coisas assim. Não foi tanto por isso, mas porque acho que foi o acontecimento mais importante da segunda metade do século XX em Portugal, para Portugal. A guerra e, depois, o fim da guerra. Com a consequência de o fim da guerra ter trazido consigo a democracia. Para acabar com a guerra, foi preciso implantar a democracia em Portugal.

Estes acontecimentos conjugados, a teimosia da guerra, que foi levar um milhão de jovens para uma guerra que os profissionais chegaram à conclusão que não era possível vencer, que militarmente não tinha solução, e com isto morreram milhares de pessoas, foi um acontecimento muito importante na história de Portugal, que depois se resolveu, quando os próprios militares puseram fim à guerra e puseram fim à ditadura. Isso é um acontecimento importantíssimo em Portugal e eu tenho sempre muito gosto em ser testemunha, naquilo que digo, faço e escrevo, foi um acontecimento que tive a felicidade de viver.


Sobre o/a autor(a)

Joana Louçã

Doutorada em sociologia da infância

https://www.esquerda.net/artigo/entrevista-joao-paulo-guerra-sobre-o-livro-coracoes-irritaveis/43780    

domingo, 4 de agosto de 2024

Raphael Machado - Escravos sem saber

 


Raphael Machado

Se levarmos em consideração o terror existencial do trabalho precário e intermitente, a omnipresença da pornografia e da prostituição na internet, bem como o impulso pela substituição da propriedade de bens, por serviços pagos mensalmente, vivemos num mundo menos livre do que há cem anos atrás.

uberização de quase todos os trabalhos impede que o homem faça qualquer tipo de planeamento existencial ou familiar. Ele nunca sabe se terá emprego amanhã. Existe, vive com um terror constante, no fundo de sua mente, de que estará em situação de indigência amanhã.

A pornificação generalizada da sociedade, com a desconstrução da respeitabilidade do corpo, principalmente do corpo feminino, pela indústria da pornografia, e a recente hipsterização da prostituição através da popularização do OnlyFans, aponta para uma realidade em que a “puta” é o único caminho possível para uma mulher. Nesse caminho, o grau de degradação é inversamente proporcional à quantidade de dinheiro recebido.

Enquanto isso, ninguém mais tem casa, ninguém mais tem carro, ninguém mais compra CD, ninguém mais compra jogo de videogame, (quase) ninguém mais compra livros, ninguém mais vai a restaurantes ou ao cinema. Em boa parte do mundo, pelo menos, tudo isso é substituído por algum tipo de “mensalidade”, a qual dá sempre uma falsa sensação de propriedade e segurança, mas que não passa de uma máscara para a absoluta despossessão do homem em relação a tudo – inclusive em relação à experiência humana concreta e real (ir a um restaurante, ir ao cinema).

É a domínio do aluguel, do uber, do streaming, dos ebooks, do iFood, etc. O homem sai cada vez menos de casa (que não é sua mesmo), e vive de forma cada vez mais virtual, tendo experiências que são sempre mediadas por uma tela. E ninguém tem mais nada.

Mesmo o cortejo do sexo oposto perdeu organicidade social, transformando-se em burocracia contratual através do Tinder. Você se anuncia como um pedaço de carne num mercado, para que outro pedaço de carne te avalie e demonstre interesse. É tão prático quanto desumanizante. Mas na era do hiperfeminismo, pelo menos é um pouco mais seguro do que a interação social normal.

E, como toda discussão foi absorvida pela internet, precisamente na era do hipermoralismo, as redes sociais bem poderiam ser resumidas a linchamentos diários contra qualquer um que tenha violado algum suposto tabu de um dos principais rebanhos políticos.

Aos poucos, o virtual vai sendo considerado mais importante que o real, a ponto de se levarem mais a sério as indiscrições ou ofensas na internet do que danos e prejuízos concretos acarretados no mundo real. Todo mundo policia todo mundo e é policiado por linchadores em potencial.

O homem baniu, na maior parte do mundo, a escravidão sob todas as formas. Anuncia-se a “liberdade” por todos os cantos e, semanalmente, não faltam propagandistas para dizer que somos cada vez mais livres e que estamos mais livres hoje, do que em qualquer outra geração.

Mas a condição do homem em 2024 parece-me apenas uma variação pós-moderna de antigas formas de escravidão e subjugação. A vantagem dos escravos antigos, porém, é que eles tinham plena consciência da falta de liberdade.

(Raphael Machado in Twitter 03/08/2024, revisão da Estátua)

https://estatuadesal.com/2024/08/04/escravos-sem-saber/