domingo, 4 de agosto de 2024

Raphael Machado - Escravos sem saber

 


Raphael Machado

Se levarmos em consideração o terror existencial do trabalho precário e intermitente, a omnipresença da pornografia e da prostituição na internet, bem como o impulso pela substituição da propriedade de bens, por serviços pagos mensalmente, vivemos num mundo menos livre do que há cem anos atrás.

uberização de quase todos os trabalhos impede que o homem faça qualquer tipo de planeamento existencial ou familiar. Ele nunca sabe se terá emprego amanhã. Existe, vive com um terror constante, no fundo de sua mente, de que estará em situação de indigência amanhã.

A pornificação generalizada da sociedade, com a desconstrução da respeitabilidade do corpo, principalmente do corpo feminino, pela indústria da pornografia, e a recente hipsterização da prostituição através da popularização do OnlyFans, aponta para uma realidade em que a “puta” é o único caminho possível para uma mulher. Nesse caminho, o grau de degradação é inversamente proporcional à quantidade de dinheiro recebido.

Enquanto isso, ninguém mais tem casa, ninguém mais tem carro, ninguém mais compra CD, ninguém mais compra jogo de videogame, (quase) ninguém mais compra livros, ninguém mais vai a restaurantes ou ao cinema. Em boa parte do mundo, pelo menos, tudo isso é substituído por algum tipo de “mensalidade”, a qual dá sempre uma falsa sensação de propriedade e segurança, mas que não passa de uma máscara para a absoluta despossessão do homem em relação a tudo – inclusive em relação à experiência humana concreta e real (ir a um restaurante, ir ao cinema).

É a domínio do aluguel, do uber, do streaming, dos ebooks, do iFood, etc. O homem sai cada vez menos de casa (que não é sua mesmo), e vive de forma cada vez mais virtual, tendo experiências que são sempre mediadas por uma tela. E ninguém tem mais nada.

Mesmo o cortejo do sexo oposto perdeu organicidade social, transformando-se em burocracia contratual através do Tinder. Você se anuncia como um pedaço de carne num mercado, para que outro pedaço de carne te avalie e demonstre interesse. É tão prático quanto desumanizante. Mas na era do hiperfeminismo, pelo menos é um pouco mais seguro do que a interação social normal.

E, como toda discussão foi absorvida pela internet, precisamente na era do hipermoralismo, as redes sociais bem poderiam ser resumidas a linchamentos diários contra qualquer um que tenha violado algum suposto tabu de um dos principais rebanhos políticos.

Aos poucos, o virtual vai sendo considerado mais importante que o real, a ponto de se levarem mais a sério as indiscrições ou ofensas na internet do que danos e prejuízos concretos acarretados no mundo real. Todo mundo policia todo mundo e é policiado por linchadores em potencial.

O homem baniu, na maior parte do mundo, a escravidão sob todas as formas. Anuncia-se a “liberdade” por todos os cantos e, semanalmente, não faltam propagandistas para dizer que somos cada vez mais livres e que estamos mais livres hoje, do que em qualquer outra geração.

Mas a condição do homem em 2024 parece-me apenas uma variação pós-moderna de antigas formas de escravidão e subjugação. A vantagem dos escravos antigos, porém, é que eles tinham plena consciência da falta de liberdade.

(Raphael Machado in Twitter 03/08/2024, revisão da Estátua)

https://estatuadesal.com/2024/08/04/escravos-sem-saber/

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