* Raphael Machado
Se levarmos em consideração o
terror existencial do trabalho precário e intermitente, a omnipresença da
pornografia e da prostituição na internet, bem como o impulso pela substituição
da propriedade de bens, por serviços pagos mensalmente, vivemos num mundo menos
livre do que há cem anos atrás.
A uberização de
quase todos os trabalhos impede que o homem faça qualquer tipo de planeamento
existencial ou familiar. Ele nunca sabe se terá emprego amanhã. Existe, vive
com um terror constante, no fundo de sua mente, de que estará em situação de
indigência amanhã.
A pornificação generalizada
da sociedade, com a desconstrução da respeitabilidade do corpo, principalmente
do corpo feminino, pela indústria da pornografia, e a recente hipsterização da
prostituição através da popularização do OnlyFans, aponta para uma
realidade em que a “puta” é o único caminho possível para uma mulher. Nesse
caminho, o grau de degradação é inversamente proporcional à quantidade de
dinheiro recebido.
Enquanto isso, ninguém mais tem
casa, ninguém mais tem carro, ninguém mais compra CD, ninguém mais compra jogo
de videogame, (quase) ninguém mais compra livros, ninguém mais vai a
restaurantes ou ao cinema. Em boa parte do mundo, pelo menos, tudo isso é substituído
por algum tipo de “mensalidade”, a qual dá sempre uma falsa sensação de
propriedade e segurança, mas que não passa de uma máscara para a absoluta
despossessão do homem em relação a tudo – inclusive em relação à experiência
humana concreta e real (ir a um restaurante, ir ao cinema).
É a domínio do aluguel, do uber,
do streaming, dos ebooks, do iFood, etc. O
homem sai cada vez menos de casa (que não é sua mesmo), e vive de forma cada
vez mais virtual, tendo experiências que são sempre mediadas por uma tela. E
ninguém tem mais nada.
Mesmo o cortejo do sexo oposto
perdeu organicidade social, transformando-se em burocracia contratual através
do Tinder. Você se anuncia como um pedaço de carne num mercado,
para que outro pedaço de carne te avalie e demonstre interesse. É tão prático
quanto desumanizante. Mas na era do hiperfeminismo, pelo menos é um pouco mais
seguro do que a interação social normal.
E, como toda discussão foi
absorvida pela internet, precisamente na era do hipermoralismo, as redes
sociais bem poderiam ser resumidas a linchamentos diários contra qualquer um
que tenha violado algum suposto tabu de um dos principais rebanhos políticos.
Aos poucos, o virtual vai sendo
considerado mais importante que o real, a ponto de se levarem mais a sério as
indiscrições ou ofensas na internet do que danos e prejuízos concretos
acarretados no mundo real. Todo mundo policia todo mundo e é policiado por
linchadores em potencial.
O homem baniu, na maior parte do
mundo, a escravidão sob todas as formas. Anuncia-se a “liberdade” por todos os
cantos e, semanalmente, não faltam propagandistas para dizer que somos cada vez
mais livres e que estamos mais livres hoje, do que em qualquer outra geração.
Mas a condição do homem em
2024 parece-me apenas uma variação pós-moderna de antigas formas de escravidão
e subjugação. A vantagem dos escravos antigos, porém, é que eles tinham plena
consciência da falta de liberdade.
(Raphael Machado in Twitter 03/08/2024, revisão da Estátua)
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