quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Fausto Neves - A Música e a Paz



*  Fausto Neves

Ainda de olhos hú­midos pelo horror da 2.ª Grande Guerra e na an­gústia do mundo não ter apren­dido ainda com o con­flito, os eu­ro­peus as­sis­tiram à es­treia em 1962 do “War Re­quiem” do in­glês Ben­jamin Britten: uma missa de de­funtos de­di­cada à morte da guerra.

Mis­tu­rando o tra­di­ci­onal texto li­túr­gico com po­esia pa­ci­fista de Wil­fred Owen que co­teja as pa­la­vras bí­blicas, Britten, ob­jector de cons­ci­ência in­glês, co­ra­jo­sa­mente as­su­mido em plena guerra, e Owen, obri­gado a com­bater e morto na 1.ª guerra mun­dial, vi­eram mu­ni­ciar a obra com os seus exem­plos. Ainda a re­levar a sim­bo­logia da co­e­xis­tência de duas or­ques­tras (sin­fó­nica e de câ­mara) com um coro gi­gan­tesco e três so­listas (ori­gi­nal­mente so­prano russo, tenor in­glês e baixo alemão), e a es­treia na re­cons­truída ca­te­dral de Con­ventry (ar­ra­sada pelas bombas alemãs).

É a Mú­sica um veí­culo po­de­roso para a Paz e para a luta que esta nos me­rece?

Sim e… não, como toda a Arte no con­texto so­cial en­vol­vente, no âm­bito de classe pos­si­dente do mo­mento his­tó­rico.

A poucos dias da Festa, sa­bemos da força da en­to­ação co­lec­tiva de um Avante, ca­ma­rada! ou de uma In­ter­na­ci­onal. “Eles” também o sabem e desde há muito: pen­semos no uso que Hi­tler fez da Mú­sica para ali­enar mul­ti­dões…

Só que o fu­turo é só um: o do pro­gresso. E pro­gresso é paz, não guerra; é a eman­ci­pação do Homem e não o obs­cu­ran­tismo, com as opo­nentes “carnes para ca­nhão”, lan­çadas em lutas sempre fra­tri­cidas.

E a Arte, com a Mú­sica in­cluída, não re­siste a longo apri­si­o­na­mento, ao travar da His­tória ou mesmo re­tardar-lhe o passo: ha­verá sempre quem lembre “aos amigos para mu­darem de tom, de som”, como fez Be­ethoven na inu­si­tada en­trada de uma voz so­lista na sua 9.ª sin­fonia.

E se a prá­tica coral pode ser ex­ce­lente exemplo da co­o­pe­ração entre vozes e idi­os­sin­cra­sias na cons­trução de um som co­lec­tivo; se o fa­moso “El Sis­tema” bo­li­va­riano de or­ques­tras, aces­sí­veis a todos os alunos de mú­sica sem qual­quer obs­tá­culo de acesso, é ex­por­tado – às es­con­didas… para tantos países com su­cesso, num exemplo de eman­ci­pação so­cial pela prá­tica mu­sical de qua­li­dade; se a Or­questra West-Eas­tern Divan, criada por Da­niel Ba­rem­boim, pôs jo­vens ju­deus, pa­les­ti­ni­anos e árabes em geral a dar con­certos ines­que­cí­veis por todo o mundo, ar­ra­sando exem­plar­mente os ac­tuais gro­tescos tam­bores do horror, temos entre nós um fe­nó­meno que me­rece al­gumas li­nhas, ainda no ca­pí­tulo de in­ter­venção pela mú­sica: uma vez mais a nossa “Car­va­lhesa”!

As “car­va­lhesas” são ir­re­sis­tí­veis danças, to­cadas por gai­teiros (con­junto de gaita-de-foles, caixa e bombo), sem letra as­so­ciada. A “Car­va­lhesa” que co­nhe­cemos, se­gundo re­colha de Kurt Schin­dler, ofe­re­cida ao PCP pelo seu mi­li­tante Mi­chel Gi­a­co­metti e mais tarde ar­ran­jada por Fausto Bor­dalo Dias na sua versão mais po­pular, não sendo can­tada, “não possui qual­quer sig­ni­fi­cado in­ter­ven­tivo”, como é de­fen­dido por mu­si­có­logos para quem a mú­sica só ganha um sen­tido com letra.

Quem vai à Festa per­cebe fa­cil­mente que, pelo menos, esta te­oria terá ex­cep­ções (!): se­guindo a sua vo­cação ini­cial, a “Car­va­lhesa”, às pri­meiras notas, é mola im­pul­si­o­na­dora de mul­ti­dões para a dança!

Além disso a “Car­va­lhesa”, pela sua po­pu­la­ri­dade e cunho etno-mu­sical ge­nuíno, re­siste na sua jo­vial fun­ci­o­na­li­dade ao afo­ga­mento cri­mi­noso en­ce­tado em força pela mú­sica co­mer­cial de má qua­li­dade, que tenta se­parar o ci­dadão, quer da sua mú­sica tra­di­ci­onal, quer do pa­tri­mónio mu­sical de todos os tempos a que tem di­reito e ne­ces­si­dade. Na Festa re­cria de certa ma­neira a his­tória e a evo­lução da Mú­sica com o po­si­ci­o­na­mento do Homem pe­rante ela: solta em todos a te­lú­rica pulsão pri­mária da Dança, nos pri­mór­dios li­gada in­ti­ma­mente à Mú­sica, e que, por ne­ces­si­dade de es­pe­ci­a­li­zação ins­tru­mental e cres­cente abs­tracção hu­mana, se foi sa­cri­fi­cando; deixa de­mo­cra­ti­ca­mente o seu usu­fruto à es­colha livre do pú­blico – a) ex­pri­mindo fi­si­ca­mente as suas pul­sões; b) fa­zendo-o pru­den­te­mente, abrindo os olhos em si­mul­tâneo para o es­pec­tá­culo co­lec­tivo; c) pro­cu­rando em ex­clu­sivo um local ele­vado com visão pri­vi­le­giada sobre o es­pec­tá­culo inol­vi­dável.

Numa pe­nada, temos a origem da Mú­sica um­bi­li­cal­mente li­gada à Dança, a pos­si­bi­li­dade morna de po­dermos usu­fruir em si­mul­tâneo do mo­vi­mento e do es­pec­tá­culo e, por úl­timo, a po­sição de pú­blico so­li­dário e vi­brante com o quadro es­pec­ta­cular ob­ser­vado.

No meio de tudo isto, é claro, a Paz e a ale­gria de viver: o fu­turo será sempre nosso.

2024 08 09

https://www.avante.pt/pt/2645/argumentos/176540/A-M%C3%BAsica-e-a-Paz.htm

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