quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Jorge Feliciano - Mãe Coragem?

 


* Jorge Feliciano 

A en­gre­nagem da guerra todos con­some, nin­guém con­segue agir sem ser em con­so­nância com ela
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«É tempo de per­ceber que não ha­verá man­teiga nas nossas mesas sem ca­nhões que a ga­rantam», disse o Chefe do Es­tado Maior da Ar­mada, Gou­veia e Melo, em Abril deste ano. Esta chan­tagem bem po­deria ser feita pelo En­ga­jador ou pelo Sar­gento, per­so­na­gens da peça de te­atro Mãe Co­ragem e os seus fi­lhos, de Ber­tolt Brecht, que andam de terra em terra a an­ga­riar ho­mens para com­bater na guerra.
Tal como Gou­veia e Melo, que pediu uma re­acção da so­ci­e­dade por­tu­guesa para que esta saísse «do es­tado de co­mo­dismo e in­di­fe­rença», também o En­ga­jador da peça de Brecht se mostra in­dig­nado com a di­fi­cul­dade em en­con­trar ho­mens para a guerra: «Não sabem o que é pa­lavra de homem, não têm sen­tido de honra, não têm le­al­dade nem fé.»
As frases ditas por estes per­so­na­gens são in­tem­po­rais da pro­pa­ganda de guerra, que a apre­sentam como um fa­ta­lismo, ideia que atinge o seu cul­minar em pro­cla­ma­ções como esta outra de Gou­veia e Melo: «Se a Eu­ropa for ata­cada e a NATO assim exigir temos de morrer onde ti­vermos de morrer para a de­fender.»
Se queres man­teiga na mesa, dá em troca os teus fi­lhos
Ber­tolt Brecht es­creve a pri­meira versão de Mãe Co­ragem e os seus fi­lhos em 1939, em pouco mais de um mês. A peça ha­veria de es­trear em 1941, já em plena guerra, em Zu­rique, com He­lene Weigel no papel de Mãe Co­ragem. Em Por­tugal, a peça foi re­cen­te­mente le­vada a cena pelo Te­atro do Bairro, com a ac­triz Maria João Luís no papel de Mãe Co­ragem, numa re­pre­sen­tação por­ten­tosa das con­tra­di­ções da per­so­nagem, jun­tando-se assim a Eu­nice Muñoz e Te­resa Ga­feira, as Mães Co­ragem, res­pec­ti­va­mente, do Novo Grupo de Te­atro (1986) e da Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada (2000).
Mãe Co­ragem e seus fi­lhos é uma peça que expõe a en­gre­nagem so­cial que per­mite a guerra acon­tecer e con­ti­nuar. Mas uma en­gre­nagem que Brecht mostra como pos­sível de ser trans­for­mada. Trata-se de um de­safio ao pú­blico. Como foi pos­sível isto acon­tecer? O que seria pos­sível fazer para que as coisas fossem de outra ma­neira?
Os acon­te­ci­mentos a que a peça re­porta de­correm em 1624, du­rante a Guerra dos Trinta anos. Mas o que Brecht mostra são os me­ca­nismos da as­censão do nazi-fas­cismo que le­varam à Se­gunda Guerra Mun­dial. Uma ne­go­ci­ante vai de terra em terra com a sua car­roça ven­dendo mer­ca­do­rias di­versas. Para ela a guerra traz-lhe ga­nhos su­fi­ci­entes para so­bre­viver e a paz é algo que não quer porque, con­si­dera, a pode levar à mi­séria. Como não ver aqui uma das prin­ci­pais li­nhas da ma­ni­pu­lação feita pelos nazi-fas­cistas de que a guerra e a con­quista re­pre­sen­tavam a saída do povo alemão da po­breza e da mi­séria?
Da sua al­cunha, a pró­pria diz: «Chamo-me Co­ragem, sar­gento, porque tinha medo de ficar ar­rui­nada e atra­vessei o fogo de ar­ti­lharia de Riga, com cin­quenta pães na car­roça. Já es­tavam cheios de bolor, e por isso não havia tempo a perder.» Será isto co­ragem ou de­ses­pero?
No en­tanto, a guerra, que é «o seu pa­trão», con­tradiz a mãe que também é. Ela não quer que os seus fi­lhos morram a com­bater. Tem amor por eles. Mas como lhe faz ver o Sar­gento, «queres en­gordar as tuas crias com a guerra e não dar nada em troca?» Ela bate-se pelo não alis­ta­mento na guerra dos seus fi­lhos, mas é dis­traída pelos mi­li­tares com a chance de um bom ne­gócio e já está, os fi­lhos são le­vados.
A muda que faz do tambor a voz da co­ragem
Nesta peça a en­gre­nagem da guerra todos con­some, nin­guém con­segue agir sem ser em con­so­nância com ela. A ex­cepção é a muda, a filha que resta. Um dos exér­citos pre­tende atacar du­rante a noite uma al­deia que dorme. Os cam­po­neses dos ar­ra­baldes são ame­a­çados pelos mi­li­tares de forma a fi­carem qui­etos e nada fa­zerem. En­quanto as tropas avançam e os cam­po­neses rezam, é a muda que sobe a um te­lhado, de tambor na mão, e bate nele com todas as forças que tem. É aba­tida, mas o povo da al­deia acorda

https://www.avante.pt/pt/2648/argumentos/176763/M%C3%A3e-Coragem.htm

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