* Jorge Feliciano
A engrenagem da guerra todos consome, ninguém consegue agir sem ser em consonância com ela
«É tempo de perceber que não haverá manteiga nas nossas mesas sem canhões que a garantam», disse o Chefe do Estado Maior da Armada, Gouveia e Melo, em Abril deste ano. Esta chantagem bem poderia ser feita pelo Engajador ou pelo Sargento, personagens da peça de teatro Mãe Coragem e os seus filhos, de Bertolt Brecht, que andam de terra em terra a angariar homens para combater na guerra.
Tal como Gouveia e Melo, que pediu uma reacção da sociedade portuguesa para que esta saísse «do estado de comodismo e indiferença», também o Engajador da peça de Brecht se mostra indignado com a dificuldade em encontrar homens para a guerra: «Não sabem o que é palavra de homem, não têm sentido de honra, não têm lealdade nem fé.»
As frases ditas por estes personagens são intemporais da propaganda de guerra, que a apresentam como um fatalismo, ideia que atinge o seu culminar em proclamações como esta outra de Gouveia e Melo: «Se a Europa for atacada e a NATO assim exigir temos de morrer onde tivermos de morrer para a defender.»
Se queres manteiga na mesa, dá em troca os teus filhos
Bertolt Brecht escreve a primeira versão de Mãe Coragem e os seus filhos em 1939, em pouco mais de um mês. A peça haveria de estrear em 1941, já em plena guerra, em Zurique, com Helene Weigel no papel de Mãe Coragem. Em Portugal, a peça foi recentemente levada a cena pelo Teatro do Bairro, com a actriz Maria João Luís no papel de Mãe Coragem, numa representação portentosa das contradições da personagem, juntando-se assim a Eunice Muñoz e Teresa Gafeira, as Mães Coragem, respectivamente, do Novo Grupo de Teatro (1986) e da Companhia de Teatro de Almada (2000).
Mãe Coragem e seus filhos é uma peça que expõe a engrenagem social que permite a guerra acontecer e continuar. Mas uma engrenagem que Brecht mostra como possível de ser transformada. Trata-se de um desafio ao público. Como foi possível isto acontecer? O que seria possível fazer para que as coisas fossem de outra maneira?
Os acontecimentos a que a peça reporta decorrem em 1624, durante a Guerra dos Trinta anos. Mas o que Brecht mostra são os mecanismos da ascensão do nazi-fascismo que levaram à Segunda Guerra Mundial. Uma negociante vai de terra em terra com a sua carroça vendendo mercadorias diversas. Para ela a guerra traz-lhe ganhos suficientes para sobreviver e a paz é algo que não quer porque, considera, a pode levar à miséria. Como não ver aqui uma das principais linhas da manipulação feita pelos nazi-fascistas de que a guerra e a conquista representavam a saída do povo alemão da pobreza e da miséria?
Da sua alcunha, a própria diz: «Chamo-me Coragem, sargento, porque tinha medo de ficar arruinada e atravessei o fogo de artilharia de Riga, com cinquenta pães na carroça. Já estavam cheios de bolor, e por isso não havia tempo a perder.» Será isto coragem ou desespero?
No entanto, a guerra, que é «o seu patrão», contradiz a mãe que também é. Ela não quer que os seus filhos morram a combater. Tem amor por eles. Mas como lhe faz ver o Sargento, «queres engordar as tuas crias com a guerra e não dar nada em troca?» Ela bate-se pelo não alistamento na guerra dos seus filhos, mas é distraída pelos militares com a chance de um bom negócio e já está, os filhos são levados.
A muda que faz do tambor a voz da coragem
Nesta peça a engrenagem da guerra todos consome, ninguém consegue agir sem ser em consonância com ela. A excepção é a muda, a filha que resta. Um dos exércitos pretende atacar durante a noite uma aldeia que dorme. Os camponeses dos arrabaldes são ameaçados pelos militares de forma a ficarem quietos e nada fazerem. Enquanto as tropas avançam e os camponeses rezam, é a muda que sobe a um telhado, de tambor na mão, e bate nele com todas as forças que tem. É abatida, mas o povo da aldeia acorda
https://www.avante.pt/pt/2648/argumentos/176763/M%C3%A3e-Coragem.htm
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