* Domingos Lobo
Crónicas e Discursos são produto de uma sagaz, viva e actuante denúncia cívica do autor
No novo Museu Nacional da Resistência e Liberdade, no Forte de Peniche, encontramos o Monumento de Homenagem aos Presos Políticos. É um fortíssimo e simbólico elemento escultórico, da autoria de José Aurélio. Na base dessa instalação magnífica temos direito a uma frase feliz, com endereço, da autoria de António Borges Coelho: Disseram Não, para que a água da vida corresse limpa!
Este Crónicas e Discursos, de António Borges Coelho, transporta-nos, em várias dessas crónicas, produto de uma sagaz, viva e actuante denúncia cívica, para os dias em que o autor esteve preso no Forte de Peniche com outros camaradas, acusado do crime de pensar diferente, de ter, como muitos outros, uma posição crítica contra a ditadura e de, naturalmente, lutar para o seu derrube. Nas três crónicas que têm o Forte-Prisão como cenário, o autor evoca Álvaro Cunhal, líamos copiografadas as suas palavras no Tribunal Plenário, e os tempos em que ambos ali estiveram em reclusão. As três crónicas traçam o perfil de Cunhal, o intelectual que escreveu na Fortaleza o ensaio A Arte, o Artista e a Sociedade; a novela Cinco Dias e Cinco Noites e A Mulher do Lenço Preto, que receberia o título final de Até Amanhã, Camaradas, e o combatente. Fala-nos da fuga épica de 3 de Janeiro de 1960, dia em que Salazar tremeu.
A crónica é o género jornalístico mais nobre e difícil, diz quem por essas andanças preencheu longos linguados e lhe sentiu os escolhos da investida. Borges Coelho, consegue tornar o género simples, o seu apodítico modo discursivo traça a essência, sem embarcar em redundâncias, mesmo quando o tema é de âmbito literário, como nas crónicas em que nos fala de António Nobre, num texto que é um notável ensaio sobre a obra do autor de Só, esse poeta que encheu a poesia de cor; ou de José Saramago, um retrato sensitivo, José! Fazem-nos muita falta a tua amizade e as tuas conversas, do autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis e Levantado do Chão, companheiros que foram no Suplemento Cultural do Jornal A Capital.
Salientamos ainda do capítulo Caderno do Repórter, a crónica Damaia 1968, a descrição dos subúrbios para os quais começavam a ser empurrados os trabalhadores que não conseguiam pagar as rendas, já usurárias nessa data, praticadas, como hoje, numa Lisboa a saque: Damaia. Gigas de carapau refulgem ao sol escaldante enquanto, contra a muralha do Aqueduto, enegrecida pelo tempo, se encostam portas sem parede, caibros, latas, pernas de cadeiras desirmanadas.
A crónica Um Rio Subterrâneo trata de um tema caro ao autor, através de um escrito do cristão-novo, Ribeiro Sanches, Dificuldades Que Tem Um Reino Velho em Emendar-se, livro em que Sanches advoga, entre outras «heresias», que se retirem ao clero os rendimentos em dízimas e terras e recebam apenas salário «e pouco». Sanches é um autor a que Borges Coelho também recorreu, embora noutra perspectiva, no livro Reino Velho Com Emenda.
Um texto sobreleva pela sua actualidade, contundência e brilhantismo narrativo: O Médio Oriente na Sala dos Capelos, publicado originalmente em o diário. Nessa sala ilustre e solene da Universidade de Coimbra, um guerrilheiro palestiniano, que parecia saído do nosso próprio povo, falou do seu território nacional ocupado. O público aplaudiu de pé e os retratos dos reis não caíram abaixo. Numa outra passagem deste texto, o historiador faz jus ao dialetismo como vem construindo a sua homérica História de Portugal: Respeitar os mortos só por fora é usar a História para parar a História, é pretender obrigar os povos a manterem eternamente as cadeias da dependência e da submissão.
É ainda o olhar do historiador que descreve o terror da Invasão do Iraque, referindo que o pavor e a morte caem sobre a cidade das Mil e Uma Noites; das bombas da NATO que, em Abril de 1999, de noite, caíram sobre a Jugoslávia, perguntando-se, em outra crónica, como o angustiado Ernest Hemingway, Por Quem os Sinos Dobram?, ou Kant, designando as duas condições que conduzem o homem ao êxtase perpétuo: «O céu estrelado por cima das nossas cabeças e a lei moral no fundo do nosso coração.»
Crónicas e Discursos, de António Borges Coelho, professor jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa, investigador, historiador, poeta, cronista, dramaturgo e ficcionista, uma das personalidades cimeiras da nossa cultura, dá-nos nestas excelentes crónicas, uma visão profunda, reflectida e culta da agreste realidade política e social dos nossos dias, afirmando que A esperança de que falo desemboca em multidões na rua larga em defesa da dignidade e das liberdades conquistadas em séculos de invenção, de luta e de sangue.
https://www.avante.pt/pt/2648/argumentos/176762/Cr%C3%B3nicas-e-Discursos-de-Ant%C3%B3nio-Borges-Coelho.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário