sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Domingos Lobo - Cró­nicas e Dis­cursos, de An­tónio Borges Co­elho


* Domingos Lobo

Cró­nicas e Dis­cursos são pro­duto de uma sagaz, viva e ac­tu­ante de­núncia cí­vica do autor

No novo Museu Na­ci­onal da Re­sis­tência e Li­ber­dade, no Forte de Pe­niche, en­con­tramos o Mo­nu­mento de Ho­me­nagem aos Presos Po­lí­ticos. É um for­tís­simo e sim­bó­lico ele­mento es­cul­tó­rico, da au­toria de José Au­rélio. Na base dessa ins­ta­lação mag­ní­fica temos di­reito a uma frase feliz, com en­de­reço, da au­toria de An­tónio Borges Co­elho: Dis­seram Não, para que a água da vida cor­resse limpa!

Este Cró­nicas e Dis­cursos, de An­tónio Borges Co­elho, trans­porta-nos, em vá­rias dessas cró­nicas, pro­duto de uma sagaz, viva e ac­tu­ante de­núncia cí­vica, para os dias em que o autor es­teve preso no Forte de Pe­niche com ou­tros ca­ma­radas, acu­sado do crime de pensar di­fe­rente, de ter, como muitos ou­tros, uma po­sição crí­tica contra a di­ta­dura e de, na­tu­ral­mente, lutar para o seu der­rube. Nas três cró­nicas que têm o Forte-Prisão como ce­nário, o autor evoca Álvaro Cu­nhal, líamos co­pi­o­gra­fadas as suas pa­la­vras no Tri­bunal Ple­nário, e os tempos em que ambos ali es­ti­veram em re­clusão. As três cró­nicas traçam o perfil de Cu­nhal, o in­te­lec­tual que es­creveu na For­ta­leza o en­saio A Arte, o Ar­tista e a So­ci­e­dade; a no­vela Cinco Dias e Cinco Noites A Mu­lher do Lenço Preto, que re­ce­beria o tí­tulo final de Até Amanhã, Ca­ma­radas, e o com­ba­tente. Fala-nos da fuga épica de 3 de Ja­neiro de 1960, dia em que Sa­lazar tremeu.

A cró­nica é o gé­nero jor­na­lís­tico mais nobre e di­fícil, diz quem por essas an­danças pre­en­cheu longos lin­guados e lhe sentiu os es­co­lhos da in­ves­tida. Borges Co­elho, con­segue tornar o gé­nero sim­ples, o seu apo­dí­tico modo dis­cur­sivo traça a es­sência, sem em­barcar em re­dun­dân­cias, mesmo quando o tema é de âm­bito li­te­rário, como nas cró­nicas em que nos fala de An­tónio Nobre, num texto que é um no­tável en­saio sobre a obra do autor de , esse poeta que en­cheu a po­esia de cor; ou de José Sa­ra­mago, um re­trato sen­si­tivo, José! Fazem-nos muita falta a tua ami­zade e as tuas con­versas, do autor de O Ano da Morte de Ri­cardo Reis Le­van­tado do Chão, com­pa­nheiros que foram no Su­ple­mento Cul­tural do Jornal A Ca­pital.

Sa­li­en­tamos ainda do ca­pí­tulo Ca­derno do Re­pórter, a cró­nica Da­maia 1968, a des­crição dos su­búr­bios para os quais co­me­çavam a ser em­pur­rados os tra­ba­lha­dores que não con­se­guiam pagar as rendas, já usu­rá­rias nessa data, pra­ti­cadas, como hoje, numa Lisboa a saque: Da­maia. Gigas de ca­rapau re­fulgem ao sol es­cal­dante en­quanto, contra a mu­ralha do Aque­duto, ene­gre­cida pelo tempo, se en­costam portas sem pa­rede, cai­bros, latas, pernas de ca­deiras de­sir­ma­nadas.

A cró­nica Um Rio Sub­ter­râneo trata de um tema caro ao autor, através de um es­crito do cristão-novo, Ri­beiro San­ches, Di­fi­cul­dades Que Tem Um Reino Velho em Emendar-se, livro em que San­ches ad­voga, entre ou­tras «he­re­sias», que se re­tirem ao clero os ren­di­mentos em dí­zimas e terras e re­cebam apenas sa­lário «e pouco». San­ches é um autor a que Borges Co­elho também re­correu, em­bora noutra pers­pec­tiva, no livro Reino Velho Com Emenda.

Um texto so­bre­leva pela sua ac­tu­a­li­dade, con­tun­dência e bri­lhan­tismo nar­ra­tivo: O Médio Ori­ente na Sala dos Ca­pelos, pu­bli­cado ori­gi­nal­mente em o diário. Nessa sala ilustre e so­lene da Uni­ver­si­dade de Coimbra, um guer­ri­lheiro pa­les­ti­niano, que pa­recia saído do nosso pró­prio povo, falou do seu ter­ri­tório na­ci­onal ocu­pado. O pú­blico aplaudiu de pé e os re­tratos dos reis não caíram abaixo. Numa outra pas­sagem deste texto, o his­to­ri­ador faz jus ao di­a­le­tismo como vem cons­truindo a sua ho­mé­rica His­tória de Por­tugal: Res­peitar os mortos só por fora é usar a His­tória para parar a His­tória, é pre­tender obrigar os povos a man­terem eter­na­mente as ca­deias da de­pen­dência e da sub­missão.

É ainda o olhar do his­to­ri­ador que des­creve o terror da In­vasão do Iraque, re­fe­rindo que o pavor e a morte caem sobre a ci­dade das Mil e Uma Noites; das bombas da NATO que, em Abril de 1999, de noite, caíram sobre a Ju­gos­lávia, per­gun­tando-se, em outra cró­nica, como o an­gus­tiado Er­nest He­mingway, Por Quem os Sinos Do­bram?, ou Kant, de­sig­nando as duas con­di­ções que con­duzem o homem ao êx­tase per­pétuo: «O céu es­tre­lado por cima das nossas ca­beças e a lei moral no fundo do nosso co­ração.»

Cró­nicas e Dis­cursos, de An­tónio Borges Co­elho, pro­fessor ju­bi­lado da Fa­cul­dade de Le­tras de Lisboa, in­ves­ti­gador, his­to­ri­ador, poeta, cro­nista, dra­ma­turgo e fic­ci­o­nista, uma das per­so­na­li­dades ci­meiras da nossa cul­tura, dá-nos nestas ex­ce­lentes cró­nicas, uma visão pro­funda, re­flec­tida e culta da agreste re­a­li­dade po­lí­tica e so­cial dos nossos dias, afir­mando que A es­pe­rança de que falo de­sem­boca em mul­ti­dões na rua larga em de­fesa da dig­ni­dade e das li­ber­dades con­quis­tadas em sé­culos de in­venção, de luta e de sangue.

https://www.avante.pt/pt/2648/argumentos/176762/Cr%C3%B3nicas-e-Discursos-de-Ant%C3%B3nio-Borges-Coelho.htm

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