quarta-feira, 30 de abril de 2014

José Saramago - Demissão

* José Saramago 

Demissão

Este mundo não presta, venha outro. 
Já por tempo de mais aqui andamos 
A fingir de razões suficientes. 
Sejamos cães do cão: sabemos tudo 
De morder os mais fracos, se mandamos, 
E de lamber as mãos, se dependentes. 

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

domingo, 27 de abril de 2014

Cristovam de Pavia - Ao meu cão

* Cristhovam de Pavia

Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

http://www.triplov.com/poesia/Cristovam-Pavia/4Poemas/4poemas.htm

quarta-feira, 23 de abril de 2014

João Cabral de Melo Neto - O cão sem plumas

O cão sem plumas
(Paisagem do Capibaribe)
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O Rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra.
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa.)
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
II
(Paisagem do Capibaribe)
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira do cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
III
(Fábula do Capibaribe)
A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.
No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.
(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
– ou do mastro – do rio.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.
O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria.)
O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.
Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.
Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.
Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.
(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:
A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
– trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada – .
Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres.)
IV
(Discurso do Capibaribe)
Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.
O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.
Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.
Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia, 
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).(3)
 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.135/4694

domingo, 20 de abril de 2014

Reeditado "Histórias de Amor", livro censurado de Cardoso Pires

Literatura: 

Publicado em 2008-09-01


Lisboa, 01 Set (Lusa) - O livro de contos de José Cardoso Pires intitulado "Histórias de Amor", publicado em 1952 e logo apreendido pela censura, será reeditado pelas Edições Nelson de Matos na segunda quinzena de Setembro.

Datada de Julho de 1952, a primeira edição da obra foi lançada pela Editorial Gleba numa colecção de bolso chamada "Os Livros das Três Abelhas", dirigida por Victor Palla e Aurélio Cruz.

A 26 de Agosto do mesmo ano, o livro foi retirado do mercado e Cardoso Pires, então com 27 anos, reclamou da sua apreensão junto dos Serviços de Censura e conseguiu reaver o exemplar sublinhado a azul, mas este nunca mais foi reeditado sob a forma inicial, apesar de o autor o ter mantido sempre na lista das suas obras completas.

Esta edição de "Histórias de Amor" reproduz o exemplar com os cortes feitos pela Pide, que a família de José Cardoso Pires - falecido em Outubro de 1998, aos 73 anos - entregou à Biblioteca Nacional, instituição à guarda da qual o restante espólio do escritor será entregue em Outubro.

Alguns dos contos que compõem "Histórias de Amor" - à excepção de "Romance com Data", que permaneceu sempre inédito - foram mais tarde reescritos e incluídos na edição de "Jogos de Azar", publicada em 1963 pela Editora Arcádia.

Além de conservar todos os contos na sua versão inicial, esta edição inclui ainda como anexos uma carta do escritor à Comissão de Censura, datada de 1952, em que este protestava pela apreensão do livro, e três críticas de Mário Dionísio, Óscar Lopes e Luís de Sousa Rebelo, publicadas na imprensa também em 1952.

A contracapa da reedição apresenta a reprodução de um retrato a óleo de José Cardoso Pires, da autoria de Júlio Pomar, datado da mesma época, 1954.

ANC.
Lusa/fim

http://www.pcp.pt/frontpage

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Notícias
Literatura: Romance de José Cardoso Pires conta história de amor em cenário de censura, revolta estudantil e perseguição política (in RTP.pt) 

 "Lavagante", romance inédito de José Cardoso Pires, narra uma "história de amor" em cenário marcado pela "censura, a polícia política, a revolta estudantil de 1962, as perseguições e prisões políticas", disse hoje o editor Nelson de Matos.

Antes mesmo de começar a ser distribuído, o que hoje aconteceu, o livro, segundo o editor, recebeu tantas encomendas que, a uma primeira edição de 3000 exemplares, houve que acrescentar prontamente uma segunda, com a mesma tiragem.

O romance, assinalou Nelson de Matos, está escrito com "o cuidado e o rigor" que foram marca de Cardoso Pires, que aqui aparece "num dos seus melhores registos" e apresenta "um retrato feminino muito bem executado", Cecília.

Um dos nomes maiores da literatura portuguesa do século XX, autor de romances como "Hóspede de Job", "Anjo Ancorado", "O Delfim" - para muitos a sua obra magna - "Balada da praia dos cães" e "Alexandra Alpha", entre outros, de contos como "Jogos de Azar" e peças de teatro como "O render dos heróis" e "Corpo-delito na sala de espelhos", José Cardoso Pires morreu em 26 de Outubro de 1998.

A colecção de que "Lavagante" é o título inaugural chama-se "Mil horas de leitura" e estará aberta a "clássicos, modernos, nacionais e estrangeiros".

(...)

In RTP.pt


21-02-2008
 http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/index.php?s=destaques&catid=1&id=504&accao=tab3#tab3

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Quando publicou Histórias de Amor em Julho de 1952, na colecção de bolso «Os Livros das Três Abelhas» (Editorial Gleba), José Cardoso Pires tinha 26 anos de idade e o rótulo de esperança da ficção nacional a pairar sobre a sua cabeça, fruto do aplauso generalizado, tanto da crítica como do público, com que fora recebido o seu primeiro livro: Os Caminheiros e Outros Contos(1949). Embora escrevendo com uma audácia temática e formal que já antecipa o grande escritor que veio a ser, este Cardoso Pires não é ainda o Cardoso Pires sólido dos livros seguintes (O Anjo Ancorado, 1959; O Render dos Heróis, 1960) e muito menos o Cardoso Pires vintage, de O Delfim(1968) e Alexandra Alpha (1987). É, se quisermos, um escritor em construção, com os andaimes e as inseguranças todas à vista.

Ainda assim, dos cinco textos, só “Week-end” – trôpego relato de um encontro adúltero, cheio de silêncios e meias palavras – me parece dispensável. “Uma simples flor nos teus cabelos claros” é um exercício curioso de narração paralela, que torna nítido o desajuste entre a suavidade do amor ideal (uma abstracção literária) e a aspereza concreta do quotidiano. “Romance com data” retoma a atmosfera erótica de “Week-end”, mas com um suplemento de ambiguidade na exposição da origem (e consequências) dos não-ditos entre os amantes, o que o torna muito mais original. As duas melhores narrativas, porém, são o conto “Ritual dos pequenos vampiros”, minuciosa e arrepiante descrição de um gang bang para os lados de Chelas, e “Dom Quixote, as velhas viúvas e a rapariga dos fósforos”, melancólico apocalipse da inocência em que já se detecta, aqui e ali, a voz do futuro romancista.

O principal interesse da reedição deste livro, feita por Nelson de Matos no momento em que se assinalam os dez anos da morte do escritor, está no campo da Sociologia da Literatura. Em Agosto de 1952, um mês após a chegada destas Histórias de Amor às livrarias, a Censura apreendeu todos os exemplares à venda, alegando imoralidade e exposição de misérias sociais. Na altura, o censor sublinhou com o célebre lápis azul as partes do texto que justificavam a sentença. Nelson de Matos, ao assinalar esses cortes pela sobreposição de uma rede de cinzento sobre o texto original, permite-nos constatar a tacanhice absurda e a pudicícia paranóica (mas também a cegueira) de quem se encarregava de zelar pelos bons e brandos costumes. Em anexo, há ainda uma constrangedora carta de Cardoso Pires ao director dos serviços de Censura e três críticas da época (Mário Dionísio, Luís de Sousa Rebelo, Óscar Lopes), exageradamente obcecadas com as influências americanas no estilo de JCP.

Avaliação: 7/10
[Texto publicado no número 73 da revista Ler]

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Bucowski - All the Casualties…

All the Casualties…

eu disse então a ela na cama
depois de voar todo o caminho
até ali
eu disse a ela na cama
em seguida,
”não tem como voltar atrás,
você sabe, é danado
de ruim…”
e era
contudo eu fiquei 2 ou
3 dias
e então ela me levou
ao aeroporto
o cachorro no
banco de trás
aquele cachorro que tinha vivido
conosco
naqueles poucos
anos.
eu saí
disse a ela
”não entre”,
o cachorro pulou pra cima
e pra baixo,
ele sabia que eu estava indo embora,
assanhei seu pêlo,
ele lambeu em torno
do meu rosto.
que merda.
inclinei-me para dentro
segurando minha mala,
ela me deu um
beijinho de adeus,
então eu me virei e
caminhei para o
guichê do aeroporto
onde o controlador
destacou a
outra metade do meu bilhete de ida
e volta.
“fumante ou não-
fumante?”, o funcionário
perguntou.
“bebedor”, eu
respondi.
recebi meu bilhete de embarque
e caminhei até
o portão
me sentindo mal
por todos
que eu conhecia
que não conhecia
que ia
conhecer.

http://cronicadeumamorlouco.wordpress.com/2010/07/28/bukowski-2-poemas-sobre-mulheres/

terça-feira, 15 de abril de 2014

Bocage - O Cão e a Cadela

    * Bocage

    Tinha de uma cadela um cão fome canina,
    Ele bom perdigueiro, ela de casta fina:
    Mil foscas lhe fazia o terno maganão,
    Mas gastava o seu tempo, o seu carinho em vão.
    Dando no chichisbéu dentada e mais dentada,
    A fêmea parecia um cadela honrada
    E incapaz de ceder às pretensões de amor.
    Mas o amante infeliz foi sabedor
    De que a mesma, em que via ações tão desabridas,
    Era co'um torpe cão fagueira às escondidas.
    Se és sagaz, meu leitor, talvez tenhas visto
    Cadelas de dois pés, que também fazem isto.

                                                                               


sábado, 12 de abril de 2014

JAIME CORTESÃO - O CASAMENTO DA FRANGA

JAIME CORTESÃO


* O CASAMENTO DA FRANGA




Diz o Galo
Para a Galinha:
- Quando casaremos
A nossa filhinha?
Casaremos
Ou não casaremos:
Agora o noivo
D´onde o arranjaremos?

Salta o Gato
Do seu modo mural:
«Eu estou pronto
Para me ir casar.»
- Agora o noivo
Já nós cá temos;
Agora a madrinha
D´onde a arranjaremos?

Salta a Cabra
Da sua casinha:
«Eu estou pronta
P´ra ser madrinha.»
- Agora a madrinha
Já nós cá temos;
Agora o padrinho
D´onde o arranjaremos?

Salta o Rato
Do seu buraquinho:
«Eu estou pronto
P´ra ser padrinho.»
- Agora padrinho
Já nós cá temos;
Agora o padre
D´onde o arranjaremos?

Salta o Escaravelho
Do seu escaravelhar:
«Eu estou pronto
Para os ir casar.»
- Agora o padre
Já nós cá temos:
Agora o chibo
D´onde o arranjaremos?

Salta o Lobo
Do seu lobal:
«Eu estou pronto
P´rò chibo dar.»
Chibo já nós cá temos;
Agora o vinho
D´onde o arranjaremos?

Salta o Mosquito
Do seu mosquital:
«Eu estou pronto
P´rò vinho dar.»
- Agora o vinho
Já nós cá temos;
Agora o trigo
D´onde o arranjaremos?

Salta o Pardal,
Do seu ninho estar:
«Eu estou pronto
P´ra o trigo dar.»

Acabou-se a boda
Com tal desatino;
Veio o noivo
Engoliu o padrinho.

 

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Charles Baudelaire - O Cão e o Frasco

VIII


O CÃO E O FRASCO


“Meu bom cão, meu cachorrinho, querido Totó, chegue- se e venha respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade.”

E o cão, agitando a cauda, o que é, creio eu, nesses pobres seres, o sinal correspondente a um sorriso ou riso, aproximou-se e pousou curiosamente seu focinho úmido sobre o frasco destampado; em seguida, recuando subitamente, com medo, latiu contra mim como se me reprovasse.

“Ah! miserável cão, se eu tivesse lhe oferecido um pacote de excrementos, você o teria farejado com prazer e talvez até devorado. Assim você mesmo, indigno companheiro de minha triste vida, você se parece com o público a quem não se pode jamais presentear com perfumes delicados que o exasperam mas com sujeiras cuidadosamente escolhidas.”


http://pequenospoemasemprosa.blogspot.pt/2011/01/o-cao-e-o-frasco.html

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Lord Byron - Epitáfio a um cão

Perto daqui
Estão depositados os despojos daquele
Que possuía Beleza sem Vaidade,
Força sem Insolência,
Coragem sem Ferocidade,
E todas as virtudes do Homem sem seus Vícios.
Este elogio, que seria uma Adulação sem sentido
Se escrito fosse sobre Cinzas humanas,
É somente um justo tributo à Memória de
BOATSWAIN, um CÃO
Que nasceu em Newfoundland em maio de 1803,
E morreu em Newstead, em 18 de novembro de 1808.
 

Quando um orgulhos Filho do Homem retorna à terra
Desconhecido pela Glória mas sustentado pelo Berço,
A arte do escultor exaure a pompa do infortúnio,
E urnas ornadas registram aquele que descansa abaixo:
Quando tudo está terminado, sobre a Tumba é visto
Não o que ele foi, mas o que deveria ter sido.
Mas o pobre Cão, na vida o mais fiel amigo,
O primeiro a dar boas vindas, na dianteira para defender,
Cujo coração honesto é do próprio Dono,
Que trabalha, luta, vive, respira somente por ele
Sem honra se vai, despercebido seu valor,
Negada no Paraíso a Alma que tinha na terra;
Enquanto o homem, fútil inseto! tem a esperança de ser perdoado,
E reivindica para si só exclusividade no Paraíso!
Oh, homem! frágil, breve inquilino
Rebaixado pela escravidão, ou corrompido pelo poder,
Quem te conheces bem, deve rejeitar-te com desgosto,
Massa degradada de poeira viva!
Teu amor é luxúria, tua amizade inteira ilusão
Tua língua hipocrisia, teu coração decepção.
Por natureza mau, dignificado apenas pelo nome,
Cada irmão selvagem pode fazer-te corar de vergonha.
Vós! que, por ventura, contemplais esta Urna simples
Ficais sabendo, não homenageia ninguém que desejais prantear,
Para marcar os despojos de um Amigo estas pedras se levantam;
Nunca conheci nenhum, exceto um único — e aqui ele decansa.

Newstead Abbey, 30 de novembro de 1808

Tradução: Gisele

http://www.anton-tijolinho.com.br/poemas/boatswain/

sábado, 5 de abril de 2014

Machado de Assis - SUAVE MARI MAGNO

SUAVE MARI MAGNO

Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.

                                            Machado de Assis
            Do livro: "Ocidentais", 1880, RJ

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Alexandre O'Neill - Cão

* Alexandre O'Neill 

Cão

Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!




Alexandre O'Neill
Poesias Completas. 1951-1986
Lisboa, INCM, 1990 (3ª ed.)