sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Paulo Moura - 1147 O tesouro de Lisboa


paulo moura

repórter à solta


1147 O tesouro de Lisboa


Introdução

Em Julho de 2006, um grupo de antropólogos da Universidade de Coimbra decidiu abrir o túmulo de D. Afonso Henriques. O objectivo era, através de recolhas de ADN, análises químicas e toxicológicas, TACs e testes por radiocarbono,  saber mais sobre a constituição física e a história do primeiro rei de Portugal.
No último momento, porém, a abertura do túmulo foi cancelada pelo Governo. Razão oficial: os investigadores não tinham obtido as necessárias autorizações. Seguiu-se um coro de queixas, acusações, declarações contraditórias, explicações confusas. Durante algumas semanas, os jornais publicaram editoriais, artigos de opinião, dossiers sobre reis, cientistas e túmulos. Depois o assunto morreu. Como se tivesse sido encerrado no próprio túmulo do rei, que não chegou a ser exumado.
Tudo isto era muito estranho e eu decidi fazer uma investigação. Entrevistei historiadores, arqueólogos e antropólogos, visitei arquivos e bibliotecas e o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde se encontra a sepultura. O que descobri foi surpreendente, embora não o possa revelar na totalidade. Fá-lo-ei quando tiver concluído a investigação e reunido todas as provas.
Para já, posso adiantar que dentro do grande túmulo de pedra existem duas urnas de madeira. Uma contém a ossada do rei. Quanto à outra, guardou em tempos os restos mortais de Mafalda, esposa de Afonso Henriques. Mas já não. Em algum momento, entre o século XV e o século XXI, o conteúdo da pequena caixa foi substituído.
Uma investigadora chegou a abrir o túmulo e a sua descoberta lançou tal pânico nas autoridades políticas, científicas e religiosas, que toda a operação foi interrompida.
Dentro da carcomida urna não havia ossos mas papéis. E antes que fossem confiscados pela Polícia ou pelo instituto governamental do património arquitectónico, a cientista, com quem eu havia mantido várias conversas, tomou uma estranha decisão: entregou à minha guarda todos os manuscritos que encontrou no túmulo.
Ignoro porque o fez, ou porque confiou em mim. Antes nunca tivesse tido essa ideia. A responsabilidade que deixou nas minhas mãos é mais pesada do que me sentia capaz de suportar. Mas a partir do momento em que me achei na posse dos manuscritos, não tive escolha. Comecei a trabalhar. Era preciso descobrir tudo sobre aqueles livros: o que dizem, quem os escreveu e quando e como foram ali parar, em que época e pela mão de quem.
Trata-se de uma dezena de livros, da autoria de um português, nascido na zona de Coimbra no início da década de 1120, chamado Raul Santo-Varão. Isto é certo. Tudo o resto é ainda um mistério.
Há no entanto indícios de que os manuscritos, ou parte deles, terão sido entregues, ainda no século XII, a D. Teotónio, fundador e prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que os terá passado a um sucessor de confiança, e este a um outro, e assim sucessivamente. Alguns documentos sugerem que, no século XIII, os livros de Raul Santo-Varão tenham estado na posse de Fernando Martins de Bulhões, mais tarde conhecido como Santo António de Lisboa, ou de Pádua, que foi estudante em Santa Cruz. Uma análise atenta de outros textos, entre os quais os “Lusíadas”, abre a possibilidade de o próprio Luís de Camões, no século XVI, ter sido o fiel depositário dos escritos de Santo Varão.
Pode datar dessa época, aliás, a sua transferência para o túmulo de Afonso Henriques, quando as ossadas foram trasladadas para a capela-mor do mosteiro, onde hoje se encontram.
Nada disto é fácil de provar, e ainda menos de explicar. Mas tudo indica que D. Teotónio criou uma corrente, que atravessou a História, para garantir a sobrevivência dos manuscritos daquele que foi seu amigo e aliado. Na origem dessa espécie de pacto, parece estar um compromisso com certas ideias revolucionárias que na altura surgiram na Europa, e a solidariedade com alguns cristãos portugueses que nasceram e viveram nas regiões ocupadas pelos muçulmanos.
Mas quem e porquê e como, ainda não sei explicar. São matérias nebulosas, a carecer de um enorme esforço de investigação.
Sabe-se que a Europa era atravessada por uma onda de fundamentalismo cristão. No tempo em que decorre a acção do manuscrito que publicamos, tinha ocorrido a primeira cruzada ao Oriente e estava a começar a segunda. Depois do apelo do papa Urbano II, em 1095, para que os cristãos corressem a libertar Jerusalém das mãos dos muçulmanos, foi a vez de Eugénio III, coadjuvado pelo Abade Bernardo de Claraval, solicitar uma segunda corrida à Terra Santa. Estávamos no ano de 1147, o mesmo em que D. Afonso Henriques, depois de conquistar Santarém aos Mouros, decidiu fazer uma segunda tentativa de tomar Lisboa.
Bernardo de Claraval era o líder mundial desse movimento fundamentalista. Andava pela Europa a pregar que fazer a guerra contra os infiéis era garantia de salvação da alma, mesmo dos criminosos e corruptos. E também que a palavra de Deus deveria ser aceite sem questões ou discussões, e que essa palavra era legitimamente veiculada pelos representantes da Igreja.
Esta ideologia altamente conservadora insurgia-se contra um racionalismo embrionário que surgia na Europa através de pensadores como Pedro Abelardo, e levou à criação da ordem de Cister, em 1090, e depois à dos Templários.
Ambas se instalaram em Portugal no tempo de Afonso Henriques, que adoptou esse fundamentalismo como religião para o novo reino. Em troca, Bernardo de Claraval convenceu os cruzados a ajudarem-no na conquista de Lisboa, e o papa a reconhecer a independência de Portugal.
Sabe-se também que esta ideologia, como lhe chamaríamos hoje, levou, durante a Reconquista, a uma política de extermínio não só de todas as populações muçulmanas, mas também das cristãs que viviam sob o domínio muçulmano. Os moçárabes, como se designavam estes cristãos, tinham misturado elementos culturais e religiosos islâmicos à sua base cristã. A sua língua e linhagem de sangue também não eram “puras”, depois de quatrocentos anos em terras mouras. Por isso se viu neles um perigo de contaminação dos cristãos “verdadeiros” e se optou pela “limpeza étnica”. O novo reino, para existir, teria de ser étnica e religiosamente puro.
Sabe-se ainda que, ao contrário dos mais altos dignitários da Igreja portucalense, D. Teotónio se insurgiu contra este extermínio dos cristãos moçárabes. E que, por essa razão, se desentendeu com a rainha, D. Mafalda.
Tudo isto é conhecido dos historiadores. O que não se sabia mas eu estou em condições de afirmar, é que D. Teotónio protagonizou várias operações, mais ou menos secretas, para tentar salvar os moçárabes. Não o tendo conseguido, empenhou-se pelo menos em que a história desse “genocídio” não fosse esquecida.
Eis uma explicação possível para o “culto” destes manuscritos. Uma espécie de sociedade “racionalista” e defensora avan-la-lettre dos direitos humanos terá, através dos séculos, conservado e por fim depositado os livros junto a Afonso Henriques, no lugar da odiada Mafalda de Sabóia, na esperança de um dia serem encontrados e lidos. Esse dia talvez tenha chegado cedo demais. Porque Raul Santo Varão conta histórias que ninguém conhecia, e que põem em questão a forma como conhecemos a História.
Mas quem era afinal este homem? Um escritor que inventou um novo género literário: a “reportagem”. Ao mesmo tempo, um espião, um agente secreto cujas missões alteraram por diversas vezes o rumo dos eventos. Um intelectual iconoclasta, adepto do racionalismo de Abelardo, de quem foi aluno, que viajou pelo mundo e escreveu relatos impressionantes dos acontecimentos que marcaram uma das épocas mais fascinantes da História: o século XII.
Alguns documentos da época mencionam Raul Santo Varão. Referem-no sempre como um homem belo e inteligente, de personalidade forte, corajoso, gentil e bem-falante. Qualidades, portanto, que talvez possuísse de facto, mas certamente aparentava. O que constitui mais uma qualidade, sem dúvida importante no seu desempenho como agente secreto.
Referem também os documentos que Santo Varão era viajado. Sabemos que, antes dos acontecimentos aqui narrados, viveu em Paris e visitou outras cidades europeias. Mas, depois de 1147, é certo que correu o mundo. Viajou com os cruzados até ao Oriente, viveu aventuras assombrosas, correu perigos, presenciou feitos momentosos, uns históricos, outros que a História desconhece.
Foi como agente secreto que em várias ocasiões se achou no centro do mundo. Conheceu protagonistas e eminências pardas, guardou segredos, desvendou mistérios. E sobre tudo isso escreveu. Livros que são documentos históricos de valor inestimável e que apenas uma pessoa, no nosso século, teve o privilégio de ler. Contrafeito mas fiel depositário do espólio de Santo Varão, tenho consciência da missão que, embora involuntariamente, assumi: divulgar, ainda que leve toda a vida a lutar contra os polícias da cultura, a obra do repórter medieval português.
O estilo das suas reportagens nem sempre é perfeito e o seu papel nos acontecimentos é quase sempre ambíguo. Mas é precisamente por isso que o que escreve é tão revelador.
Este livro, sobre a conquista de Lisboa, em que apenas actualizei alguns termos e conceitos, para que a leitura não se tornasse fastidiosa, poderia ter sido escrito hoje. Quase se poderia dizer que Raul, perfeitamente capaz de compreender a razão humana numa época futura, o escreveu para nós. E ao fazê-lo tenha acreditado que, 860 anos depois, a mesma razão humana nos fizesse compreendê-lo a ele.
Lisboa, 27 de Outubro de 2006

1

O assombro é fonte de vida. O rosto de Herveu de Glanvill, quando o navio entrou no esteiro do Tejo, tornava-se mais uma prova desse poder flagrante da realidade. Lisboa era mais bela do que tinha sonhado e esse facto reanimava-o.
A nossa era a primeira de uma frota de quase duzentas naus. A derradeira etapa da viagem não fora fácil. Uma tempestade ao largo de Peniche, onde pernoitámos pela primeira vez desde a saída do Porto, afundara três embarcações. Os esforços de salvamento não conseguiram evitar dezenas de mortos. Outra borrasca, no Golfo da Biscaia, engolira várias naus e cruzados. A confusão foi enorme, as naus perderam-se umas das outras. Só nas costas da Galiza se viriam a reencontrar, já perto do cabo Finisterra. Aí, aportaram nas margens do rio Tambre, para que homens e mulheres caminhassem 15 quilómetros e pudessem finalmente rezar em Santiago de Compostela.
Num mês de viagem, desde Darmouth, o saldo da morte quase atingia a centena. E o que é pior: ainda não tinham começado os combates, se exceptuarmos um pequeno recontro com piratas. Episódio, aliás, que ficou resolvido com a entrega de uma nau com mantimentos, mulheres e escravos.
Mas agora chegávamos à grande cidade mourisca de Lisboa e ninguém queria recordar as atribulações passadas. A expectativa era grande e ainda maiores as decisões que urgia tomar.
Permanecer ou partir? O objectivo da viagem era claro, justo e conveniente para todos. Não importava se vinham de Norfolk ou Suffolk, de Kent ou Londres, da Bretanha, Escócia, Flandres, Colónia ou do Império Germânico. A ideia era a mesma: responder ao apelo de Bernardo de Claraval e de Eugénio III, nosso Papa, para que fossem ao Oriente ajudar a recuperar as terras onde Cristo nasceu, pregou e morreu.
Mas ao escolherem a via marítima, para evitar os salteadores na Europa, Balcãs e Ásia Menor, depararam com este novo desafio: o rei de Portugal queria ajuda para conquistar Lisboa aos mouros.
Seria, argumentava D. Afonso Henriques, um feito tão glorioso como a defesa do Santo Sepulcro, já que a lendária cidade do Atlântico fora arrebatada pelos muçulmanos à Cristandade e estava a ser por eles diariamente violada havia mais de 400 anos. Por outro lado, os benefícios de uma empresa militar em Lisboa ultrapassavam as mais optimistas previsões de ganhos numa longa cruzada para Oriente. Porquê? Isso era uma segredo a revelar na devida altura. Por agora, era preciso lançar âncoras no Tejo e esperar.

2

Os mouros viram-nos chegar. Não só os sentinelas nas torres da muralha, mas também centenas de outros, cujas cabeças se alternavam em alvoroço nas ameias. Ou se esticavam nos terraços, telhados e torres. Que pensariam eles? O espectáculo dos barcos a atracar em redor da cidade não lhes devia deixar muitas dúvidas sobre as nossas intenções. Decerto não vínhamos para uma visita de amigos. Também não éramos apenas comerciantes cristãos, dos que se aproximavam dos muros para comprar âmbar e tecidos orientais. Nem simples piratas como os que regularmente atacavam as costas do reino mourisco, chegavam a fazer incursões nos seus territórios, a ocupar durante anos as suas cidades. Os piratas normandos, loiros e selvagens, que chegavam em embarcações vermelhas e recurvas, para saquear e violar. É verdade que alguns, como o viking Sigurd, filho de Bastod, rei da Noruega, tentou conquistar a cidade. Mas isso fora há 40 anos e poucos mouros agora vivos se recordavam dos combates sangrentos que levariam os lisboetas a robustecer a muralha protectora e também o seu próprio carácter, reconhecidamente negligente e até licencioso.
Seja como for, para um habitante de Al-Ashbuna, a chegada de 200 navios cristãos à base da sua muralha deveria ser algo insólito e aterrador. Pressentia-se grande agitação do lado de dentro daqueles muros. Era fácil de adivinhar que os sentinelas tivessem já avisado os seus chefes militares e estes os líderes políticos. E que em poucas horas o rumor tivesse percorrido a medina e conduzido a população à beira do pânico.
— Não me parece que estivessem à nossa espera. Talvez conste dos escritos divinos que os devamos poupar, meu caro Raul.
Sem se voltar, Herveu de Glanvill tinha sentido a minha presença.
— Dos escritos divinos só é lei para os homens o que os homens neles puderem ler — respondi, apercebendo-me logo de que não estava a usar a melhor estratégia. Porque seria?
— O teu rei fez mal em escolher um herege como emissário. A sua sorte é que o que está escrito está escrito, e nada o pode alterar. A propósito, vamos falar com ele. Não percamos mais tempo.
Não sei porquê, tive a suspeita de que Herveu, apesar de determinista confesso e reputado exegeta de sonhos, não tinha ainda conhecimento do conteúdo dos escritos divinos sobre as deliberações que iam ser tomadas. Disse-lhe:
— Amanhã. Está marcado o encontro, com D. Pedro Pitões e D. João Peculiar, no acampamento do rei, logo pela manhã. — Mas percebendo a expressão de contrariedade em Herveu, que finalmente me olhava, acrescentei: — Um grupo saiu já a terra com a missão de recolher víveres para o jantar. — E afastei-me.
Horas antes, ainda as embarcações deslizavam pelo estuário, falara com Pedro Pitões, bispo do Porto, sobre a oportunidade de visitar Afonso Henriques mal chegássemos a Lisboa. A reunião com o rei era de suma importância, lembrara D. Pedro, que sobre o assunto já conferenciara com o seu colega bispo de Braga, João Peculiar. Negócios cruciais para o futuro de Portugal e da Cristandade aí seriam tratados, pelo que era preciso agir com toda a prudência. A discórdia entre os vários líderes estrangeiros era profunda, como diversos eram os interesses em causa. Conseguir um acordo era tarefa quase impossível, um passo em falso deitaria tudo a perder. Seria necessário usar toda a argúcia, toda a subtileza diplomática de que fôssemos capazes, e escolher o momento propício. Esse era sem dúvida o dia seguinte, 29 de Junho, domingo de São Pedro. Todas as igrejas do mundo cristão recordariam, com missas e cânticos, o martírio de São Pedro e São Paulo, onze séculos antes, na Roma de Nero. As naus e os acampamentos cristãos às portas da Lisboa muçulmana não seriam excepção, o que contagiaria aos duros líderes militares um espírito mais piedoso. Tudo isto aconselhava, ponderaram os bispos, a que a reunião ficasse para o dia seguinte.

 3

Ao jantar houve convidados. Como o dia era de festa, por se ter cumprido uma etapa tão importante do percurso, Herveu chamou para o nosso barco os outros condestáveis ingleses, Sahério de Archelles, Simão de Dover e André de Toron, e os respectivos séquitos de guerreiros, padres e mulheres.
As tropas dos portugueses, que se encontravam há mais de oito dias acampadas à volta de Lisboa, tinham-se encarregado de atacar e assaltar os pequenos arrabaldes mouros, cujas populações foram obrigadas a refugiar-se no interior das muralhas da cidade, abandonando aos soldados cristãos casas, gado, reservas de cereais e outros mantimentos.
Era portanto um período de grandes fartura e euforia e, para impressionar os senhores vindos do Norte, Afonso Henriques mandara desde logo entregar grandes quantidades de carne e vinho.
Desde a partida de Darmouth que os guerreiros de Cristo não eram assim tratados. Tudo parecia montado para os desencorajar de seguir viagem. Para lhes mostrar que Lisboa era, nos meses seguintes, a missão que lhes estava reservada, a Jerusalém que tinham obrigação de libertar.
Foi servido o manjar, na nau, como se fosse num palácio. Arranjou-se uma mesa e um bancal de fino tecido árabe, sobre o qual, como provocação, foi colocado, em grandes terrinas, um guisado de carne de porco. Mas antes houvera sopa de peixe do Tejo (o rio que os habitantes da região garantem possuir dois terços de água para um terço de peixe) e assado de caça — garça e galeirão, temperados com um molho de azeite, coentros e salsa. Para emitir um claro sinal de opulência e poder, Herveu intercedeu pessoalmente junto dos cozinheiros para que não fossem servidos legumes ou hortaliças. Também as cerejas e pêssegos foram banidas, por ordem expressa de Venâncio de Suffolk, o médico privativo de Sahério de Archelles, que classificou essas frutas como “viandas húmidas”, portanto muito nocivas à saúde.
O vinho, esse, corria sem restrições, e cedo começou a algazarra entre os comensais, mas mal as primeiras vitualhas foram colocadas sobre as grandes rodelas de pão, um homenzinho de barriga proeminente e melenas a pingar sobre o olho esquerdo bateu as palmas.
— Atenção! Vamos proceder às verificações científicas. Ninguém toca na comida — era Venâncio que gritava, agitando na mão a sua maleta de bizarros instrumentos.
Debruçou-se sobre uma escudela onde um criado vertera a sopa de Sahério e mergulhou nela a sua alfaia mais eficaz, um fio de ouro com dois pingentes, de ágata e pedra-serpentina.  Se as pedras mudassem de cor, significaria que algum ingrediente nefasto fora acrescentado à sopa. Se desatassem a sangrar seria prova evidente de que o caldo tinha um veneno mortal. Como a serpentina escorresse apenas sopa e não sangue, o alimento estava aprovado. Mas não era tudo. Em confirmação, Venâncio mexeu o líquido cinzento com um chifre de unicórnio. Agora sim. O repasto podia começar.
D. Pedro e D. João entreolharam-se. De quem teria Sahério tanto medo? Não dos árabes, decerto. A esses teria sido praticamente impossível infiltrar algum agente para envenenar a comida, que vinha directamente das hostes portuguesas.
— A prudência é uma qualidade muitas vezes negligenciada num cavaleiro — começou D. João, sem olhar directamente para Sahério. Mas foi ele quem respondeu, fixando nos olhos o Peculiar.
— Porém sempre apreciada num rei! — Mergulhou as mãos num gomil de prata que lhe estendera um serviçal, limpou-as à toalha. — Será porventura o mais ímpio merecedor de maiores benesses? A verdade, caro arcebispo, é que são preocupantes os rumores que nos chegaram. Em consequência dos sábios argumentos por vós apresentados no nosso primeiro encontro, no Porto, estudávamos precisamente o mérito espiritual dos nossos actos. Quais deles seriam mais susceptíveis de agradar a Deus. Por outras palavras, se Lisboa, tão longe de Jerusalém, estaria para nós mais próxima da Jerusalém Celeste.
— E repare que nessa contabilidade não entram recompensas materiais — acrescentou Herveu de Glanvill, seguro de que os prelados portugueses sabiam perfeitamente do que se estava a falar. E tinha razão. Também aos ouvidos de Pitões e Peculiar haviam chegado os boatos de que ao grupo dos flamengos tinham sido prometidas alvíssaras especiais. Tanto quanto sabiam, não tinha havido nenhuma reunião secreta com o chefe dos flamengos, Cristiano de Gistell. Mas era essa a informação que corria nas naus e acampamentos à volta de Lisboa. Herveu falava com uma agressividade alto teatral, como que a lançar um teste a Pitões e Peculiar:
— Um rei digno desse título não tenta angariar aliados espalhando a animosidade e a desconfiança no seu seio.
Os bispos calaram-se, vexados com aquelas insinuações, e Herveu continuou:
— Pela nossa parte, sentimo-nos honrados por não termos sido objecto de ofertas extraordinárias. E agradecidos a Afonso Henriques por confiar na nossa devoção, que, por si só, nos motivaria a ajudá-lo. Já com outros preferiu jogar pelo seguro…
Incitado pelo desafio retórico, D. Pedro começou a preparar uma resposta à altura da ironia de Herveu, mas a barulheira à mesa era cada vez mais ensurdecedora e desencorajava a conversa.
Foram servidas as carnes e já ninguém, excepto Sahério, reparava em Venâncio, que andava de terrina em terrina a mergulhar no molho um dente de escorpião pendurado num castão de prata.
Sahério, cuja renitência às propostas do rei português era sobejamente conhecida, não tocava em nada antes do veredicto do médico. Apesar da protecção de todos os seus amuletos, tinha razões para temer que a ganância levasse Cristiano a atentar contra a sua vida. Sahério era conhecido e invejado pela sua colecção de relíquias, entre as quais uma lasca da cruz de Cristo e um dedo de São Bartolomeu, um pêlo da barba de São Paulino e um dente já podre do beato Isidoro.
Para o resto dos convivas, a simples chegada a Lisboa era motivo de celebração. Beberam e cantaram pela tarde dentro e, a certa altura, um grupo levantou-se, com a intenção de ir espairecer para terra firme. Herveu e Sahério opuseram-se. Era cedo para saber que perigos os espreitariam nas imediações da muralha. Todas as acções teriam de ser bem planeadas e concertadas. Mas os homens estavam excitados e afoitos. De certa forma, acusavam os efeitos da incerteza e desorientação que dominavam os seus chefes. Desobedeceram e saíram.
Chegada a hora das sobremesas, os portugueses decidiram mostrar aos guerreiros da Europa do Norte alguma da doçura do novo país. Todos saborearam a especialidade da terra, compota de talos de alface, não antes, é claro, de o médico ter nela empapado o lingueiro de onde pendiam três línguas mortas de serpente.

  4

Caía a noite e o grupo de uns 50 ingleses veio deleitar-se com a brisa da praia. Caminharam alguns metros, sem se afastarem da nave, aferrada na parte oriental do esteiro do rio. Para além do berreiro que provinha das naus, não se ouvia nada. Os mouros, era como se não existissem.
Ganhando confiança, os homens avançaram um pouco mais na areia, aproximaram-se de duas casas abandonadas. Não parecia haver qualquer perigo e, além do mais, estavam bem armados, alguns de loriga e capacete, uns com espada, outros com lança. Inspeccionaram as casas e um quintal com figueiras, mas já tudo fora pilhado.
— Sahério tem razão — disse um dos homens. — Os portugueses não vão deixar nada para ninguém.
— Isso é o que se vai ver — disse outro. — Por mim, ficava por aqui. Ocupava uma dessas quintas, arrecadava um bom quinhão de ouro e de órfãs…
Exploraram o casario do arrabalde abandonado, comeram alguns figos e uvas, dispersaram-se um pouco pelas hortas que foram viçosas e bem tratadas até à razia dos selvagens portugueses. Era fácil imaginá-lo, como era fácil pensar que tudo aquilo já lhes pertencia, e que os muçulmanos afinal não existiam, ou só esperavam a oportunidade de fugir para as suas terras inóspitas e diabólicas.
De súbito, um dos ingleses viu algo mover-se entre os arbustos. Fez sinal aos outros, aproximaram-se sem ruído. Era um mouro. Observaram-no, com alguma dificuldade, na penumbra. O rapaz, de túnica branca a contrastar com a tez muito escura, afastara-se de um grupo que caminhava apressadamente ao longo da muralha, para se embrenhar entre uns arbustos. Chegou muito próximo do local onde os ingleses espreitavam, imóveis, sem respirar, e parou. De repente desapareceu.
Então o inglês que o avistara primeiro voltou-se para os companheiros. A sua cara estava a rebentar de riso.
— O que foi? — Os outros não tinham percebido nada, impacientavam-se. — Onde se meteu o  cabrão do sarraceno? De que ris?
— Eles mijam como as mulheres!
— O quê? — Agora todos queriam ver. Empurraram-se, atropelaram-se, quase denunciando a sua presença, mas o mouro já se tinha levantado e juntado aos amigos.
— Viste aquilo?
— Não. O quê? Estás a troçar de nós?
— Ele mijava assim… — o inglês acocorou-se imitando o muçulmano.
— Vamos atrás deles!
— Vamos!
E a trupe correu atrás dos mouros, que não seriam mais de quatro ou cinco. Atravessaram a fina língua de areia no local onde a muralha quase toca a água do rio, seguiram até às proximidades de uma primeira torre, já do lado ocidental da cidade. Quase alcançaram os fugitivos, que entretanto tinham desatado a correr, soltando estranhos gritos, na língua deles. Mas ao dobrar a esquina da torre, um grande portão de madeira e ferro abre-se subitamente. Os mouros fugidiços somem-se para o interior da almedina, mas eis que do acesso a que, saberíamos depois, os lisbonenses chamavam Porta do Ferro, salta uma caterva de mouros armados até aos dentes.
Os ingleses levam as mãos às espadas, recompõem-se rapidamente da surpresa, dão luta feroz aos pagãos. Mas eles são muitos, e não param de sair. O portalhão só se fecha quando mais de uma centena está cá fora, em ensurdecedora berraria, manejando os sabres com destreza. Os ingleses organizam-se, assumem posições tácticas, impedindo que os inimigos fechem o assédio à sua volta. Mas a inferioridade numérica, o cansaço e a ligeira embriaguez levam-nos de vencida. Recuam. Desorientam-se. Combatem com bravura mas vão cedendo, e torna-se evidente que, se continuarem, serão chacinados. Os mouros empurram-nos até à língua de areia junto à chamada Porta do Mar, e aí ficam ao alcance da vista dos companheiros que, nas naus, já tinham sido alertados pelo chinfrim da escaramuça, e assomavam à popa.
Furioso, Sahério de Archelles empunha a espada e, com um pequeno grupo de combatentes, desembarca. Vendo isso, Herveu de Glanvill considera que não pode ficar para trás e, com uma equipa de homens corajosos, na qual me incluo, vai também ajudar os companheiros.
A peleja depressa muda de figura. Organizados pelos condestáveis, os ingleses passam ao ataque. Os infiéis apercebem-se da alteração de forças e fogem. Perseguimo-los ao longo dos muros, enquanto uma pequena unidade se adianta para lhes barrar a passagem na Porta do Ferro. Eles continuam a correr como desalmados e acabam, em grande sarapatel, por se introduzir na cidade por um passadouro mais a norte, a Porta da Alfofa.
Os cristãos ajoelharam-se para agradecer a Deus a sua primeira vitória, mas não houve ensejo para festejar. Sahério e Herveu não disseram nada, mas todos compreenderam que eles estavam desgostosos. Mesmo sem ter decidido se ficavam para ajudar o rei português, já tinham sido obrigados a combater. Agora os infiéis haviam recebido o sinal, e começariam a preparar-se. Não tardariam em responder. As hostilidades estavam desencadeadas. Um cavaleiro não ataca quando não tenciona fazer a guerra.
Sahério e Herveu olharam para os seus homens, que estavam cabisbaixos, envergonhados. Que fazer agora?
Sahério conversou em surdina com Herveu, e depois declarou:
— Um cavaleiro não abandona o terreno, depois de vencer uma batalha. Ocupa-o, para mostrar que não tem medo e que não combateu em vão.
E perante a incredulidade dos soldados, mandou-os ir aos barcos buscar tendas. A maioria foi e não voltou. Os mais fiéis regressaram com o que era necessário para pernoitar ali: tendas, comida, archotes e armas. Sahério guiou-nos até um monte mais próximo da muralha do que um tiro de lança. E ficámos. Trinta e nove homens, numa vigília desafiadora. Era noite de São Pedro, um capelão disse missa. Em redor, viam-se as luzes de Lisboa, das naus e do acampamento de D. Afonso Henriques. Herveu não dormiu e eu também não. Conversámos muito. Ele contou-me os seus sonhos e visões, eu falei-lhe das minhas aventuras. A noite foi longa e ficámos amigos. 
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