quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Domingos Lobo Os dias amargos e os salteadores de sonhos


  • Domingos Lobo 

Os dias amargos e os salteadores de sonhos
A Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP), tem vindo a publicar, com invulgar periodicidade, uma série de textos de incontornável valor literário, memorialístico e histórico, em edições que primam pelo rigor de análise e contextualização dos conteúdos. Livros que têm uma marca, uma identidade que os distingue e singulariza face à volatilidade, fasquia de exigência e mercantilização que caracteriza o grosso do nosso mercado livreiro.

A AJHLP tem vindo a publicar um notável conjunto de títulos, (poesia, conto, novela, ensaio) em formatos de fácil manejo (a colecção Memória Perecível, p.ex.), concebendo paralelamente outras edições, num permanente desafio de busca e de investimento na nossa memória colectiva; títulos gizados para uma leitura mais recolhida e demorada, quer pela importância temática e conceptual que esses livros exibem, enquanto abordagem metódica e prospectiva nos territórios do ensaio literário, da história e do testemunho cívico, quer ainda quanto à relevância dos nomes que concebem e assinam esses textos. Livros que, para além da sua função de instrumento cultural de capital importância, primam pela excelência do grafismo e da aplicação de uma vertente criativa, já rara entre nós, dos materiais utilizados na sua concepção.

Tem Cuidado, Meu Amor – Cartas de Prisão de Virgínia Moura e António Lobão Vital. Organização, apresentação e notas de Manuela Espírito Santo.

O fascismo luso não exerceu o seu poder criminoso apenas impedindo a vida, a sua fruição plena, os movimentos, o pensamento, a realização individual e colectiva da esmagadora maioria do povo; os seus tentáculos não seviciavam apenas o corpo ou os sentidos das suas vítimas (comunistas, sobretudo); os seus crimes foram cometidos, em muitos casos, sobre os afectos, os humanos íntimos clamores, vigiando, censurando, punindo de forma abjecta e sórdida, um olhar, um beijo, um gesto de ternura mais fremente. O fascismo, este nosso, beato e cínico, queria-nos invertebrados, frouxos, sonâmbulos, disponíveis para a plena consumação da sua usura. O Amor, a Cultura, a Inteligência, eram-lhes modos de Ser insuportáveis, perigosos para o sistema e, por isso, porque incidiam sobre as capacidades mais lídimas, cognitivas da nossa condição, tidos como subversivos e, na beatífica lógica da barbárie, passíveis de repressão exemplar, penalizados a rigor. Foi o refrear dos estímulos sensoriais, criando um normativo comportamental alicerçado na ignorância e na rendição, o cerco sobre os afectos e os imaginários, a castração sistemática das emoções, apenas consentidas no futebol ou nas touradas, como escapatória circunstancial, a beatitude ungida como modelo, a estratificação classista, as formas de penetração subtil e ardilosa sobre os talentos e os sonhos, os instrumentos de domínio com que o fascismo conseguiu tornar mais longo, sagaz e manente, instigando no subconsciente colectivo esse magma do conformismo – sinais ainda actuantes, visíveis no nosso tecido social, e que as forças mais retrógradas ainda manobram com hábil perfídia, volvidos mais de 40 anos sobre Abril.

É dessa insídia sobre o íntimo, sobre a vigilante pata da censura fascista, que as cartas de prisão escritas por Virgínia Moura ao seu companheiro António Lobão Vital nos dizem e que este livro reproduz de forma irrepreensível, juntando aofac-símile das cartas a violência (apenas uma das muitas sofridas pelo casal às mãos dos carcereiros) de um carimbo dos esbirros, que desse modo quiseram deixar, maculando as missivas, a sua perene, inominável marca. Mais do que a impossibilidade de escrever o que, nas circunstâncias, essas cartas poderiam dizer e denunciar, esta vasta epistolografia traça o retrato de uma mulher atenta às singularidades da sua condição de resistente antifascista, atenta ao contínuo pulsar do tempo e dos sinais que esses rumores lhe trazem às grades do catre; atenta aos seus, ao marido a quem deixa recados sobre a saúde, os cães, os cuidados a ter com a horta, notas sobre os livros que lhe permitem ler, os jornais, o frio que faz no pátio da prisão; o redescobrir de outras formas de resistência em situações limite. O amor a combater o medo, cifrado, o imponderável, os lanhos de um percurso; incertezas sobre as decisões do Tribunal Plenário, a inquietação sobre os desígnios de um poder injusto e arbitrário, em permanente desvario.

Diz-nos Manuela Espírito Santo na profusa e informada nota introdutória: Por razões de cidadania, Virgínia Moura e o seu companheiro António Lobão Vital várias vezes são presos. Não cedem, não temem, não racham. Fiéis, sempre, a um ideal comum e ao profundo amor que os unia. As cartas que agora se publicam, escritas na prisão entre 1951 e 1957, revelam a infâmia do tempo da ditadura. Tudo devassa, até os sentimentos mais íntimos.

São essas marcas do arbítrio, da sonegação do espaço íntimo de respiração, que as cartas de Virgínia e Vital amplamente transportam, numa linguagem em que nunca se agita o fantasma do desânimo, da cedência, da rendição: ter razão é um modo de alegria que sobreleva todos os medos, todas as angústias. E o amor, a activa cumplicidade existente entre Virgínia Moura e António Lobão Vital, ajudou a suportar tudo o resto.

A organizadora deste espólio, traça, igualmente, o retrato de Virgínia e Vital, os percursos da sua actividade cívica, longe das masmorras pidescas: as tertúlias nos cafés Primus ou naBrasileira, no Porto, que seriam “a mais pequena república socialista do mundo”, tertúlias de que fizeram parte personalidades como Artur Santos Silva (pai), Arménio Losa, António Macedo, Manuel Azevedo, Mário Cal Brandão, Papiniano Carlos; o nascimento da revista Sol Nascente, que teve a primeira redacção em casa do casal; a activa participação de ambos na candidatura à Presidência da República de Ruy Luís Gomes; a actividade cultural e de combate ao fascismo, o trabalho, a vida, os modos de cumprir, de enfrentar os dias sitiados.

Beco Salteador, de Faure da Rosa

É muito estimulante, para quantos lêem e admiram a obra ficcional de Faure da Rosa, ao qual o Museu do Neorealismo, por altura do centenário do seu nascimento (1912), dedicou uma bem estruturada, pedagógica exposição sobre a suaVida e Obra, a publicação de um dos mais interessantes contos do autor de Nós e os Outros.

Na colecção Memória Perecível, acompanhado de um cumpliciário prefácio de José Manuel Mendes, a AJHLP dá à estampa, a partir de um dactiloscrito constante do acervo da Associação, o conto Beco Salteador datado, na versão facsimilada que acompanha o volume, de Agosto de 1947, conto que Faure da Rosa, integraria, em 1962, no livro A Cidade e a Planície.

Beco é um salteador de estrada, um vagabundo que rouba, ou mata se a fome o acossar mais do que o corpo suporta, pelo instinto primevo da sobrevivência, um anti-herói sem causas nem sentimentos de culpa. Cercado pela GNR (e aqui, por opostos motivos, lembramos o Palma de Seara de Vento, a sua luta resistente contra a injustiça e a prepotência), Beco rende-se à fome, forma última de submissão, e pelo sono: E ficou, todo imerso em gozo, o corpo inerte, sedento de repouso – a dormir.

Do prefácio de José Manuel Mendes, sublinho: Seja este momento o estímulo para a republicação do corpus integral de Faure da Rosa, um autor notável a que importa regressar.A começar pela leitura deste conto que nos devolve o tempo em que os salteadores tinham outros nomes e nos assaltavam em pleno sono, roubando-nos a voz e os sonhos.

http://avante.pt/pt/2200/argumentos/138788/

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