22.01.2016 às 19h50
A última homenagem ao arquitecto foi numa igreja com a sua assinatura
O funeral do arquitecto Nuno Teotónio Pereira começou ao som da “Cantata da Paz”. “Vemos, ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar”, assim reza o refrão do célebre poema de Sophia de Mello Breyner, musicado por Francisco Fernandes, e que foi suavemente entoado por algumas centenas de pessoas que quiseram prestar a última homenagem ao cidadão arquitecto, cuja vida se confundiu com o catolicismo progressista dos anos sessenta e setenta. O poema, aliás, fora cantado pela primeira vez numa vigília contra a guerra colonial realizada na igreja de São Domingos, na passagem de 1968 para 1969, e organizada clandestinamente por Teotónio Pereira e pela amiga Sophia. Voltou a ser cantado ao princípio da tarde de hoje na igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, obra da autoria do arquitecto, que lhe valeu um dos quatro prémios Valmor e onde quis que o seu corpo ficasse em câmara ardente.
“CAPACIDADE DE REUNIR E ENVOLVER PESSOAS”
A cerimónia, muito simples, foi presidida pelo frei Bento Domingues, que conheceu Teotónio Pereira em 1962 e de quem também era grande amigo. O dominicano saudou a assistência, dizendo que lhe fazia lembrar “os encontros dos terceiros sábados”, como ficaram conhecidas as reuniões, promovidas por Teotónio Pereira e a primeira mulher, Natália Duarte Silva, perto do Campo Pequeno, e que há mais de 40 anos constituíam um habitual ponto de encontro de numerosos católicos progressistas. Bento salpicou a sua intervenção com várias leituras, incluindo uma crónica de 1995 do próprio arquitecto no Público, as bem-aventuranças do evangelho de São Mateus (numa velha versão do movimento Metanóia) e até uma frase de Raul Solnado, que lhe ouvira pouco antes de morrer: “Deus do amor, livra-me de um deus sem humor…” Socorrendo-se de numerosas citações do Papa Francisco, o sacerdote estabeleceu um certo paralelismo entre Jorge Bergoglio e Teotónio Pereira, em termos de irrequietude, inconformismo e alegria. Deste, elogiou a “sua capacidade de reunir e envolver pessoas”, de “inventar” e de “não fazer juízos de valor”. Bento Domingues quis terminar com mais um texto de Sophia, extraído da sua “Carta aos amigos mortos”: “E eu vos peço por este amor cortado/ Que vos lembreis de mim lá onde o amor/ Já não pode morrer nem ser quebrado./ Que o vosso coração que já não bate/ O tempo denso de sangue e de saudade/Mas vive a perfeição da claridade/ Se compadeça de mim e de meu pranto/ Se compadeça de mim e do meu canto.”
Da família, falou um dos netos, para um muito terno e comovido elogio do avô, que, disse, viveu os últimos tempos na obsessão de completar 94 anos – o que aconteceria no próximo dia 30 – e sobretudo de vir a conhecer o primeiro bisneto, nascido no longínquo Equador.
QUATRO PRÉMIOS VALMOR
Nuno Teotónio Pereira ficou em campa rasa no cemitério do Lumiar. Na igreja, o Estado português esteve presente através da sua segunda figura, o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e do primeiro-ministro, António Costa. À cerimónia compareceram inúmeras figuras do catolicismo progressista, mas também do extinto Movimento de Esquerda Socialista (MES), um pequeno partido de que Teotónio Pereira foi um dos principais dirigentes. Em termos políticos, viam-se personalidades de todos os quadrantes políticos, com destaque para o PS.
“As pessoas são mais importante que a obra”, afirmou Bento Domingues na sua intervenção, garantindo que essa fora sempre a perspectiva de Teotónio Pereira. A sua obra como arquitecto é vastíssima. Para além da igreja que o acolheu (feita em colaboração com o grande amigo Nuno Portas, que também esteve presente), foram distinguidos com o prémio Valmor três outros trabalhos seus: o edifício “Franjinhas”, na Rua Braamcamp (com João Braula Reis); um prédio de habitação na freguesia dos Olivais Norte (com António Pinto Freitas); e a estação de metropolitano do Cais do Sodré (com Pedro Botelho). Mas um dos trabalhos em que mais se revia esteticamente é o Bloco das Águas Livres, também em Lisboa, desenhado em colaboração com Bartolomeu da Costa Cabral.
Casado em segundas núpcias com a artista plástica brasileira Irene Buarque, Nuno Teotónio Pereira tinha três filhos e faleceu em Lisboa no passado dia 20.
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-01-22-Poemas-de-Sophia-no-funeral-de-Nuno-Teotonio-Pereira
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