OPINIÃO
O herdeiro
Desde 1973 que conta as histórias que quer, como quer, explicando Portugal como se fosse como ele diz, mas que não passa de um país que ele inventa semanalmente a seu gosto.
Ele é, por definição, um herdeiro.
Filho de dirigente salazarista que, com 53 anos em 1974, havia feito todo o cursus
honorum da ditadura (Mocidade Portuguesa, deputado, subsecretário de
Estado, governador colonial, ministro), Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) foi
“educado para ser político”, como escreve o seu “biógrafo consentido”, Vítor
Matos (VM), que assim se autodefine no livro de 2012 onde reúne informação
preciosa obtida do próprio biografado, e que aqui citarei. Marcelo é um
herdeiro – não apenas no sentido estrito de primogénito de uma das figuras mais
típicas dessa elite de funcionários fiéis que Salazar e Caetano recrutavam,
cuja legitimidade repousava exclusivamente na lealdade para com o Chefe,
mas também como produto (e produtor) de uma universidade classista que, na
definição de Pierre Bourdieu (1964), é “a própria instância de reprodução dos
privilégios e da preservação dos interesses dos herdeiros”. A tal ponto MRS se
terá sentido a vida toda um herdeiroque logo aos 27 anos (1976)
quis escrever as suas memórias. A maioria delas não eram suas mas sim daqueles
de quem ele era herdeiro. “Tinha conhecido o salazarismo por dentro e vivera o
marcelismo, lançara o Expresso, estivera na fundação do PPD e
vivera a Constituinte. Tinha histórias para contar.” (VM, 319)
“Se havia gente que o achava
afilhado de Caetano” - e não o era, por falta de vontade deste - “ele deixava
achar”, assegura o padre João Seabra (VM, 86). Desde os “10 ou 12 anos” que o
pai Baltazar o leva a assistir aos lanches de sábado no restaurante A
Choupana, em S. João do Estoril, onde Caetano, afastado do governo em 1958,
reunia os marcelistas indefetíveis enquanto fazia a sua
travessia do deserto que só terminará com o AVC de Salazar. “Ouvir horas de
discussão entre seniores do regime podia ter injetado em Marcelo o talento para
para a intriga por detrás do pano. (…) O pai empenha-se em instruí-lo nos
meandros do regime” (VM, 87-88). MRS descreve a experiência como “uma escola”,
e é revelador que ache que “os comportamentos políticos não são muito
diferentes em ditadura ou em democracia[,] as amizades, as inimizades, as
traições, a atração do poder” (cit. VM, 91). Aos 20 anos, senta-se à mesa de
todos os jantares oficiais do Governo Geral de Moçambique assumido pelo pai
desde 1968. Quando Caetano sobe ao poder, janta uma vez por semana com ele. O
adolescente a quem nunca faltou inteligência e intuição para o poder
empenhou-se a fundo nessa “educação para ser político”, isto é, um futuro
hierarca do regime; há quem se lembre no Liceu ouvi-lo dizer que um dia queria
ser Presidente do Conselho (VM, 91). Muito jovem, assumirá os discursos e os
temas de “exaltação nacionalista” do salazarismo dos anos 60: critica “a falta
de amor pátrio daqueles que, direta ou indiretamente, (…) se divertiram neste
Carnaval de 1962”, semanas depois da perda de Goa e em plena guerra em Angola.
“Mais do que uma vilania foi uma afronta, uma verdadeira declaração de
traição”. Em 1963, conclui uma redação escrevendo: “Pobres das nações que não
têm filhos que lutem por elas e para elas!...” (cit. VM, 88-90) É surpreendente
que, anos depois, não tenha feito a guerra em África. E teria tido tempo:
acabou a licenciatura em 1971 e o Curso Complementar de Político-Económicas em
1972.
No liceu foi “nacionalista” (e o
termo não lhe repugnava ainda há poucos anos atrás), mas muitos outros
envolveram-se no movimento estudantil do secundário, transitando diretamente
para a oposição aberta à ditadura nas universidades. Fazer opções destas aos 15
anos pode ser pouco representativo; na universidade, fazem-se com consciência,
e Marcelo voltou a escolher a direita salazarista que queria fazer o “combate
ideológico ao marxismo” (Freitas do Amaral, cit. VM, 120); na crise académica
de 1969, “participa nas manifestações públicas de apoio à ditadura” (VM, 143).
Nas eleições desse ano, momento de consciencialização política de tanta gente
da sua geração, tem 21 anos e apoia, de novo, o partido único. (Até Cavaco, na
sua autobiografia, dirá que terá votado na CEUD de Mário Soares – mas, claro, o
voto é secreto...) “Ninguém se lembra de afirmações de Marcelo contra a guerra
ultramarina”, garante VM. Com o pai ministro do Ultramar, não é de estranhar,
admitamos. O que é completamente exótico é Leonor Beleza, sua colega e também
filha de subsecretário de Estado da ditadura, achar hoje que “na época era
cómodo estar de um lado ou do outro. Não pertencer a um grupo nem a outro e
estar no meio era mais incómodo.” (cit. VM, 154) Da “comodidade” dos estudantes
presos, torturados e mandados para a guerra por a ela se oporem, Beleza parece
lembrar-se pouco... Em 1970, com Beleza e Braga de Macedo, Marcelo fura a greve
académica na faculdade. E reúne-se com o novo ministro Veiga Simão para lhe dar
“informações” sobre as “movimentações académicas” (VM, 164). É este, aliás, que
lhe dá o seu primeiro emprego, no Ministério da Educação, em gabinete dirigido
por Adelino da Palma Carlos, outro filho de subsecretário, que o tentara atrair
repetidamente para o Opus Dei.
É verdade que manifesta
publicamente o seu ceticismo relativamente à viabilidade da Reforma Educativa
que Simão quer levar a cabo: “a verdadeira democratização do ensino (…)
parece-me impossível no quadro de um regime autoritário e antidemocrático”,
escreve ele em 1971 (cit. VM, 186), o que leva Caetano a exigir a Veiga Simão
que o despeça. Mas não é despedido. Campeão da ambiguidade, o já jovem
assistente de Direito não desiste de procurar o perdão de Caetano. Em 1973, já
no Expresso, e já abortada pelo próprio ditador a Primavera
marcelista, pede desculpa a Caetano pela “vivacidade” dos seus 24 anos e
garante que “sempre estive na convicção” de que os “meus princípios não se
opunham à pessoa de V.Exa”, cuja “presença na Chefia do Governo” volta a
elogiar, prometendo-lhe “[inequivocamente] afastar-me do que possa ser
entendido como atividade política ostensiva” (cit. VM, 226). A mãe, que do
filho espera o cumprimento do destino de um herdeiro, intercede
repetidamente por ele junto de Caetano (VM, 227-29). Em janeiro de 1974, dele
escreve Artur Portela Filho: “Era o filho pródigo do Regime. (…) Estava
talhado, calibrado, destinado” (cit. VM, 232).
Herdeiro de um hierarca politicamente
influente, cuja família, só por isso, era automaticamente cooptada para o
convívio da mais alta burguesia, “Marcelo começa a perceber como é a vida dos
que têm posses.” E gosta. Ainda hoje gosta. Por mais que encene uma cristã
preocupação com os mais pobres, “dirá ao longo da vida: 'melhor que ser rico, é
ser amigo de ricos'” (VM, 79). É curioso que tenha escrito em 1999, na
fotobiografia do seu pai, que “os governantes, na década de 50, enquanto o são,
devem abster-se de fazer vida de ricos. Podem e devem dar-se entre si, eles e
as famílias, mas evitar demasiados contactos com esse mundo perverso que os
desviará do interesse geral.” É curioso porque não era verdade.
Depois do 25 de Abril, já sabemos
das muitas razões para que os seus próprios correligionários o descrevam como
um cata-vento, ou falem da sua “habilidade natural de iludir a
realidade das coisas” (José M. Ricciardi, Expresso, 26.12.2014), de
ter apoiado, depois traído, por vezes reconciliado com dezenas de personagens,
da invenção de factos políticos. “Velho Rasputine”, chamou-lhe
Paulo Portas (Independente, 1.10.1993), que dele podia ser um alter
ego. “É filho de Deus e do Diabo: Deus deu-lhe a inteligência, o Diabo
deu-lhe a maldade” (Portas, RTP, 4.12.1994). Em MRS intui-se, acima de tudo, a
desmedida ambição que se estampa contra os erros de avaliação dos momentos e
das conjunturas: os Inadiáveis contra Sá Carneiro (1978),
Salgueiro contra Cavaco (1985), o fracasso da aliança com Paulo Portas (1999),
três anos na liderança do PSD de que pouco mais fica a demonstração da sua
infinita criatividade na criação de obstáculos mesmo nas mais plácidas
conjunturas políticas. “Para se defender da frustração não assumida de não ter
chegado a primeiro-ministro, conformou-se com a sua projeção de poder através
da influência e da exposição comunicacional” (VM, 643). Desde 1973, primeiro no Expresso,
depois no Semanário, na TSF (1993-96) e na TVI ou na RTP
(consecutivamente desde 2000), que conta as histórias que quer, como quer,
explicando Portugal como se fosse como ele diz, mas que não passa de um país
que ele inventa semanalmente a seu gosto. Para o ajudar a chegar onde ele quer.
Porque o herdeiro, agora, quer
ser Presidente.
http://www.publico.pt/politica/noticia/o-herdeiro-1720393?page=-1
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