sexta-feira, 31 de julho de 2020

Mário Castrim - "Ser comunista, hoje" e outros poemas

* Mário Castrim

Ser comunista, hoje

Esperança:
é a maneira
como o futuro fala
ao nosso ouvido.
Depois
há que saber
organizá-lo.

Então
Os comunistas entram em acção.


Versos muito pessoais

III

És livre?
Isto é:
quem amas?

 IV

Realizo-me no acto de pagar
as quotas do Partido.
Não tem nada de heróico.
Nada mais natural
como beijar o filho
na hora de deitar.

 V

Leio
o AVANTE!
devagar
e com toda a atenção
como se o escrevesse.


*************************

Lágrimas, não. Lágrimas, não. A sério -
Enfim, não digo que. É natural.
Mas pronto. Adeus, prazer em conhecer-vos -
Filhos, sejamos práticos, sadios.

 Nada de flores. Rigorosamente.
Nem as velas, está bem? Se as acenderem
Sou homem para me levantar e vir
soprá-las, e cantar os «parabéns».

Não falem baixo: é tarde para segredos.
Conversem, mas de modo que eu também
oiça, e melhor a grande noite passe.

Peço pouco na hora desprendida:
Fique eu em vós apenas como se
Tudo não fosse mais que um sonho bom.



               (Último poema de Mário Castrim, escrito uma semana antes  do seu falecimento e após cerca de dez semanas de internamento.)



segunda-feira, 27 de julho de 2020

Diana Andringa e a morte de Oliveira Salazar

* Diana Andringa

«Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. 

Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na prisão de Caxias.

Um toque diferente, desconhecido, num tom lamentoso que não lhe conhecíamos.

Numa cadeia, ganham-se mil ouvidos: habituamo-nos aos sons ciciados da chegada de um novo preso, ao esforço de distinguir qual a cela onde o colocam (da parte da frente, com o rio ao longe? Da de trás, tendo como única visão o muro e as pernas do guarda republicano andando nele?), à frase «Prepare-se para ir à António Maria Cardoso», que pode significar, para aquele a quem é dita, uma sessão de tortura, seja a pancada, o sono ou a estátua, o seu regresso («Quantas horas passou em interrogatórios? Quantas noites?»), à tosse que anuncia esse regresso, ao assobio longínquo de um camarada, identificando-se com uma canção comum (no nosso caso, uma coladera), até às crises de asma de alguém que necessita socorro, numa cela próxima. Então, um toque de clarim, a uma hora inabitual, desperta de imediato a atenção e a ansiedade.

Lá em baixo, na guarita, o jovem guarda republicano olha, também ele, o lado de onde o som surgiu. «Que toque é este?», perguntamos-lhe, gritando. Olha-nos e encolhe os ombros. Não como quem não quer responder à pergunta gritada por aqueles que tem o dever de guardar, mas como quem não sabe. E ouvimo-lo repetir a pergunta para a guarita seguinte: «“Que toque é este?» Do outro lado chega uma resposta, para nós inaudível. Mas o jovem ouve-a e repete-a para nós: «“É o toque dos mortos!» Para que, numa cadeia, toque o clarim por alguém que morreu, é que esse alguém é pessoa de importância. E a ansiedade e a curiosidade crescem. Gritamos, de novo, para o guarda: «E quem é que morreu?»
Tal como da primeira vez, ele repete, para a guarita seguinte, a nossa pergunta. E tal como da primeira vez, a resposta escapa-nos. Mas – tal como da primeira vez – o jovem que nos guarda logo no-la repete: «Foi o velho! O velho foi à viola!»

Não houve necessidade de perguntar mais nada. O «velho» com direito a clarim só podia ser um: Salazar. E logo nos abraçámos a rir, enquanto ouvíamos, vindos de outras celas, gritos de regozijo. Que a morte, tantas vezes desejada, do ditador, nos fosse anunciada pelo jovem que devia guardar-nos aumentava a ironia da notícia.

A cadeia explodiu em gritos, risos, murros nas paredes, comunicando de cela em cela, na velha caligrafia prisional – «Um toque é “a”, dois são “b”, três “c” e por aí adiante…» – a morte do antigo Presidente do Conselho.

Os mais lúcidos lembraram que já havia outro, Marcelo Caetano. Mas, nesse dia, a alegria prevaleceu. Mesmo quando a visita foi cancelada, mesmo quando nos cortaram os minutos de música diária, porque «o país está de luto». «De luto?», respondemos nós. «O vosso talvez esteja, o nosso país está em festa!»

E, desafinadas ou não, ergueram-se as vozes dos presos e ouviram-se pela Cadeia, nesses minutos sem música, canções de resistência.»

Inês N. Lourenço - Perry Mason: retrato do advogado enquanto detetive malcomportado



A famosa personagem criada por Erle Stanley Gardner regressa ao pequeno ecrã com um requintado estilo noir. Nesta nova aposta da HBO, Matthew Rhys veste a pele de Perry Mason, numa atuação muito diferente do original e digna de se lhe tirar o chapéu.
22 Junho 2020 — 00:41

A ilustre figura de Raymond Burr como advogado de defesa criminal na série televisiva Perry Mason (1957-1966) é para esquecer quando, na nova série homónima da HBO, vemos um Matthew Rhys pouco polido, sempre de chapéu e cigarro na boca, a comprar uma gravata na morgue, roubada a quem já não vai precisar dela. Entenda-se: essa personagem nascida do fenómeno literário de Erle Stanley Gardner é o ponto de referência mas não funciona como piscadela de olho para um exercício respeitoso de nostalgia. Pelo contrário, a ideia dos criadores Rolin Jones e Ron Fitzgerald foi reinventar a postura do protagonista dentro do seu universo, rodeado de nomes que são familiares a quem leu os livros ou assistiu ao sucesso da CBS (em Portugal, passou na RTP), e introduzir uma carga sombria que se espalha ao longo dos oito episódios.

Desde logo, o Perry Mason de Rhys (The Americans) vive em plena Grande Depressão, e nos primeiros momentos da série ainda não é um advogado de renome. Sem um tostão no bolso, ele faz pela vida trabalhando como detetive privado no rasto de intrigas de Hollywood, acompanhado de uma pequena máquina fotográfica e de um cúmplice que alinha nos seus métodos muito pouco ortodoxos. Mora numa quinta decadente, separado da mulher e do filho, bebe que se farta (à sombra da Lei Seca) e enquanto veterano da Primeira Guerra é frequentado por memórias que volta e meia o atormentam. Quando lhe chega o convite de um amigo advogado, E.B. Jonathan (comovente John Lithgow), para investigar um caso mediático de sequestro e homicídio, Mason não perde tempo a pôr o seu faro apurado em ação, seguindo por atalhos pouco recomendáveis e, claro, sem fazer cerimónia no que toca à recolha de provas.


Firmada no espírito da Los Angeles de 1932, esta séria acaba por ser uma história das origens da personagem, com traços de revisionismo que a aproximam de uma certa respiração atual. Veja-se, por exemplo, o polícia negro (Chris Chalk) que aqui dá rosto ao conhecido Paul Drake, futuro detetive privado que auxilia Mason, ou a incansável secretária Della Street (Juliet Rylance), que esconde uma relação lésbica. Tanto o racismo como a homofobia atravessam o retrato de uma sociedade que está igualmente espelhada nas miudezas do caso investigado.

A dar mais robustez à trama deste Perry Mason surge ainda a líder de uma igreja evangélica, Irmã Alice (Tatiana Maslany) - cuja presença vigorosa é quase uma narrativa paralela - e todo um sistema de corrupção que procura distorcer as linhas da verdade, entre perseguições, assassínios e cadáveres à mercê. Porém, no cerne de praticamente tudo está algo muito pouco policial: a dureza que define as relações familiares. Será legítimo dizer que esta primeira temporada, com ares de continuação, serve de lente para observar os dilemas interiores das personagens. Cada uma à sua maneira, tenta descobrir um caminho pessoal.

Coproduzida por Tim Van Patten (Boardwalk Empire), realizador da maior parte dos episódios, e pelo ator Robert Downey Jr., que esteve para interpretar Perry Mason, a série brilha não só nos detalhes da reprodução de época, mas também, e sobretudo, no requinte e disposição noir, que faz da solidão do protagonista um veículo para explorar o lado pútrido da cidade. Matthew Rhys personifica com muita segurança esse misto de desmazelo e força moral de Mason. É uma espécie de cão rafeiro com hora marcada para trocar as voltas ao destino, contando com uma pequena ajuda dos amigos.

Apesar do cenário de crime, Perry Mason contraria o ritmo frenético e programado de muitas séries policiais. Cada episódio presta uma atenção adulta aos diferentes contextos domésticos que traduzem a realidade da vida em Los Angeles, e essa paciente construção de uma intimidade é a alma do negócio narrativo. Este, por si só, não propriamente genial em termos de suspense, mas maduro na abordagem. Talvez porque o mais importante são as personagens e a sua ressonância emocional. Para avançar é preciso conhecê-las bem, perceber a melancolia que está por detrás de uma gravata suja de mostarda, substituída por outra comprada numa morgue.

Miguel Esteves Cardoso - Morreu o passôbem

* Miguel Esteves Cardoso

OPINIÃO

Rezo para que o passôbem nunca mais volte. Mal por mal, preferia andar sempre de chapéu.

27 de Julho de 2020, 6:46

O passôbem está condenado a juntar-se ao minuete. Um dia não muito distante só os especialistas saberão que uma dessas coisas é uma dança do século XVI e a outra um hábito estranho de apertar a mão de outra pessoa para cumprimentá-la.

Diz-se que começou para se mostrar que estava ocupada a mão da espada, tranquilizando o interlocutor que não seria imediatamente decapitado. Esta explicação, pelo menos para canhotos como eu, cai em saco roto.

Em plena pandemia um livreiro desconhecido veio a correr para mim, abanando a mão direita no meio de uma feira e proclamando que “queria apertar a mão do homem que tinha escrito O Cabo das Tormentas”.

Quando recusei, ofendeu-se. “Olha este! Olha este armado em bom, que não quer apertar a mão à gente!

Ainda tentei explicar que eu não tinha escrito qualquer livro chamado O Cabo das Tormentas mas ele ainda se picou mais: “Mas escreveu outros tantos, olha porra!

Também a palavra “perdigoto” se perdeu, tendo-se transformado na temida “gotícula”.

Por outro lado, finalmente faz sentido a expressão “bater a bota com a perdigota”. Bater a bota é morrer, a perdigota pode matar e é mau sinal quando estão sincronizadas.

Tremo de pensar que há culturas em que os homens cospem para as palmas das mãos antes de uma tarefa árdua - antes, por assim dizer, de deitar mãos à obra.

Se tivéssemos o azar de interrompê-los, ofereciam-nos a mão estendida, procurando o calor e a cumplicidade dum passôbem.

Rezo para que o passôbem nunca mais volte. Mal por mal, preferia andar sempre de chapéu.

Colunista

domingo, 26 de julho de 2020

O Mistério da Estrada de Sintra. Mais do que um folhetim de verão


Em julho de 1870, Lisboa aborrecia-se ao sol. Provocadores, dois jovens membros da chamada Geração de 70, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, decidem agitar tal modorra com um folhetim intrigante iniciado com um crime na Estrada de Sintra. Publicaram-no no Diário de Notícias durante dois meses em que ninguém perdeu pitada.

Maria João Martins
25 Julho 2020 — 00:12

Sintra ainda se escrevia com "C" mas foi através das páginas do DN que dois jovens escritores, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, se dispuseram a abanar a sonolenta Lisboa, mergulhada na languidez da canícula: "Há 14 anos numa noite de verão, no Passeio Público, em frente de duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono (...) deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinando à Baixa das alturas do Diário de Notícias", escreve Eça de Queiroz no prefácio à segunda edição em livro de O Mistério da Estrada de Sintra, datada de 1884.

Como o fizeram? Usando essa novidade do seu tempo, que era o poder absoluto da imprensa escrita na formação da opinião pública, para expor as pequenas misérias de uma certa aristocracia lisboeta que ia a Sintra refrescar-se dos incómodos estivais da capital. Para isso, engendraram um enredo de tal maneira rocambolesco que seria digno das Proezas de Rocambole, o folhetim de Ponson du Terrail que criara este adjetivo ainda hoje comum: certa noite, indo um médico e um escritor de caleche pela estrada de Sintra (que se iniciava onde hoje é a Estrada de Benfica e ligava a capital àquela vila), foram surpreendidos e raptados por quatro homens embuçados, que os levariam a uma casa isolada. O objetivo era confirmar o óbito de um oficial britânico, a quem fora ministrada uma dose excessiva de ópio. À medida que a noite avançava os dois compreenderiam estar diante do trágico corolário de um triângulo amoroso constituído pelo assassinado, uma condessa portuguesa mal casada e uma bela rapariga chegada de Cuba. Tudo começara meses antes da fatídica noite, durante uma estada em Malta, à época parte do império britânico. Isto, claro, sem perder o tom jocoso com que Eça e Ramalho habitualmente tratavam as suas personagens.

Forjada a intriga, a mesma começaria a ser enviada em sucessivas cartas a Eduardo Coelho, primeiro diretor do Diário de Notícias. Na primeira, a atmosfera de mistério preparava já o espírito do leitor para um caso cheio de suspense: "Senhor Redator do DN, venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente extraordinário em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo modo que eu entender mais adequado, publique a substância do que vou expor. Os sucessos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mistério, envolve-os uma tal aparência de crime que a publicidade do que se passou torna-se importantíssimo como chave única para a desvendação de um drama que suponho terrível conquanto não conheça dele senão um só ato."

Na véspera da sua publicação, a 23 de julho, o próprio jornal aguçará o apetite do leitor ao publicar este aviso no espaço imediato aos «Assuntos do dia»: "A hora já adiantada recebemos ontem um escrito singular. É uma carta, não assinada, enviada pelo correio à redação, com o princípio de uma narração estupenda, que dá ares de um crime horrível, envolto nas sombras do mistério, e cercado de circunstâncias verdadeiramente extraordinárias, e que parece terem sido feitas para aguçar a curiosidade, e confundir o espírito em milhares de vagas e contraditórias conjeturas. Trata­‑se da sequestração noturna de um médico, e de um amigo seu para assistirem a um ato gravíssimo, e, demais factos subsequentes. O interesse que esta narração desperta, a forma literária que a reveste, e o crime que parece revelar nos obrigam a não buscar resumi­‑la, e a dá­‑la na íntegra aos nossos leitores. Não podemos, porém, inseri-la sem eliminar o folhetim, e substituí­‑lo por esse escrito, o que faremos em a nossa folha de domingo."

A dúvida estava lançada: notícia ou ficção? Durante mais de dois meses, de 24 de julho a 27 de setembro, os leitores do jornal não perderam pitada, desconhecendo totalmente a autoria de quem escrevia, mas incapazes de resistir ao suspense que se lançava no final de cada capítulo do folhetim, uma técnica de "engodo" ainda hoje adotada pela ficção televisiva. O sucesso foi total. As 31 cartas seriam reunidas em livro nesse mesmo ano, numa edição da Parceria António Maria Pereira, só se revelando a sua na última, que também encerra a história.

Como escreve o estudioso da obra de Eça de Queiroz e catedrático da Universidade de Coimbra, Carlos Reis, na nota prefacial à edição crítica de O Mistério da Estrada de Sintra: "Este é um exercício de construção de uma ficção que habilmente disfarça essa sua condição. Ou que joga, de forma deliberada e divertida, com as frágeis fronteiras da ficção e com dispositivos contratuais e discursivos que põem em causa a distinção entre mundo ficcional e mundo real. Era um jovem que andava pelos 25 anos quem comparticipava naquele exercício, já então, como acontecera alguns anos antes com os folhetins da Gazeta de Portugal, com o claro propósito de introduzir uma vibrante nota de provocação nas rotinas culturais da burguesia lisboeta. Acompanhava Eça de Queiroz, na composição do romance, Ramalho Ortigão, mais velho nove anos do que o amigo (e seu antigo professor, como se sabe), na que seria uma primeira colaboração entre ambos, aprofundada, no ano seguinte ao do aparecimento d"O Mistério da Estrada de Sintra, quando irromperam, na cena cultural portuguesa, As Farpas."

Quinze anos depois, com os dois autores a serem já nomes conhecidos do grande público, far-se-ia uma segunda edição da obra, em que os dois esclareceriam as circunstâncias em que esta fora produzida: "O que pensamos hoje do romance que escrevemos (...)? Pensamos simplesmente - louvores a Deus - que é execrável." Mas acrescentam, sempre provocatórios. "Aos 20 anos é preciso que alguém seja estroina, nem sempre talvez para que o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite."

Folhetins, entretenimento das famílias

Num mundo anterior à rádio, ao cinema e à televisão, a leitura era o principal meio de entretenimento das famílias. Em França e em Inglaterra, jornais e revistas de grande tiragem começaram a publicar histórias, fundamentalmente de aventuras, em "episódios", de modo a fidelizar os leitores. Quanto mais agitadas fossem as peripécias dos heróis, melhor. Assim se estrearem, nas lides literárias, homens como Alexandre Dumas que começaria por escrever os seus maiores êxitos como Os Três Mosqueteiros ou O Conde de Monte Cristo no jornal Le Siècle. O mesmo aconteceria com outros autores como o referido Ponson du Terrail, Paul de Kock ou mesmo grandes nomes do cânone literário francês como Balzac ou Zola. Do outro lado da Mancha, o mesmo faria Charles Dickens, que, aliás, começaria por assinar a crónica judicial do que se passava nos tribunais de Londres. Em 1833 começaria a publicar na revista The Monthly Magazine um conjunto de apontamentos humorísticos a que daria o nome de Sketches by Boz, que reuniria em livro em 1836. Mas várias obras de Dickens fariam o mesmo percurso, como Os Cadernos de Pickwick ou mesmo romances como Oliver Twist (publicado originalmente na Bentley"s Magazine) ou Nicholas Nickleby. Lá, como cá, o método era sempre o mesmo: aparecia na parte inferior de uma página ímpar e, de edição para edição, tratava de agarrar o leitor com suspense e "cenas dos próximos capítulos". Já no século XX, jornalistas como Reinaldo Ferreira (o famoso Repórter X) usariam técnicas não muito diferentes em reportagens de longa duração, publicadas na imprensa diária, como O Táxi n.º 9297 (sobre o assassinato da atriz lisboeta Maria Alves, que mais tarde o próprio transformaria em livro e em filmes), que, ao longo de meses, acompanhou a intricada investigação em torno de quem, numa noite escura de 1926, atirara o corpo da mulher, já morta, de um táxi em andamento. Tivesse ele usado o título O Mistério do Regueirão dos Anjos e ninguém se teria escandalizado.


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Paulo Roberto Gaefke - Recomeçar (ou Faxina da alma)



* Paulo Roberto Gaefke

Não importa onde você parou,
em que momento da vida você cansou,
o que importa é que sempre é possível
e necessário “Recomeçar”.
Recomeçar é dar uma nova
chance a si mesmo.
É renovar as esperanças na vida
e o mais importante:
acreditar em você de novo.

Sofreu muito nesse período?
Foi aprendizado.
Chorou muito?
Foi limpeza da alma.
Ficou com raiva das pessoas?
Foi para perdoá-las um dia.
Sentiu-se só por diversas vezes?
É por que fechaste a porta até para os outros.
Acreditou que tudo estava perdido?
Era o início da tua melhora.

Pois é!
Agora é hora de iniciar,
de pensar na luz,
de encontrar prazer nas coisas simples de novo.
Que tal um novo emprego?
Uma nova profissão?
Um corte de cabelo arrojado, diferente?
Um novo curso,
ou aquele velho desejo de aprender a pintar,
desenhar,
dominar o computador,
ou qualquer outra coisa?

Olha quanto desafio.
Quanta coisa nova nesse mundão
de meu Deus te esperando.
Tá se sentindo sozinho?
Besteira!
Tem tanta gente que você afastou
com o seu “período de isolamento”,
tem tanta gente esperando apenas um
sorriso teu para “chegar” perto de você.

Onde você quer chegar?
Ir alto.
Sonhe alto,
queira o melhor do melhor,
queira coisas boas para a vida.
pensamentos assim trazem para nós
aquilo que desejamos.
Se pensarmos pequeno,
coisas pequenas teremos.
Já se desejarmos fortemente o melhor
e principalmente lutarmos pelo melhor,
o melhor vai se instalar na nossa vida.
E é hoje o dia da Faxina Mental.

Joga fora tudo que te prende ao passado,
ao mundinho de coisas tristes,
fotos,
peças de roupa,
papel de bala,
ingressos de cinema,
bilhetes de viagens,
e toda aquela tranqueira que guardamos
quando nos julgamos apaixonados.
Jogue tudo fora.
Mas, principalmente,
esvazie seu coração.
Fique pronto para a vida,
para um novo amor.
Lembre-se somos apaixonáveis,
somos sempre capazes de amar
muitas e muitas vezes.
Afinal de contas,
nós somos o “Amor”.



– * Paulo Roberto Gaefke, em Meu anjo (website)./e no livro  ‘Decidi ser Feliz’. Edições do autor, 2002.


quarta-feira, 22 de julho de 2020

José Mário Branco - o charlatão



Numa rua de má fama
faz negócio um charlatão
vende perfumes de lama
anéis d'ouro a um tostão
enriquece o charlatão


No beco mal afamado
as mulheres não têm marido
um está preso, outro é soldado
um está morto e outro f'rido
e outro em França anda perdido

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra

Na ruela de má fama
o charlatão vive à larga
chegam-lhe toda a semana
em camionetas de carga
rezas doces, paga amarga

No beco dos mal-fadados
os catraios passam fome
têm os dentes enterrados
no pão que ninguém mais come
os catraios passam fome

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra

Na travessa dos defuntos
charlatões e charlatonas
discutem dos seus assuntos
repartem-s'em quatro zonas
instalados em poltronas

Pr'á rua saem toupeiras
entra o frio nos buracos
dorme a gente nas soleiras
das casas feitas em cacos
em troca d'alguns patacos

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra

Entre a rua e o país
vai o passo dum anão
vai o rei que ninguém quis
vai o tiro dum canhão
e o trono é do charlatão

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra

terça-feira, 21 de julho de 2020

Tomás Vieira da Cruz - Romagem a Quicombo

* Tomás Vieira da Cruz

Vinham do rio Longa e da Quissama
todos que têm por lá seu grande amor
à santa da Muxima que os inflama,
em fé ardente, e crente, e milagrosa.

Vinham os Sobas de passadas guerras
com sua corte altiva e caprichosa;
e moças lindas, cor da noite escura,
negras flores do exílio em que te encerras,

ó minha Angola imensa, ó formosura!
E bandeiras daquelas mais festivas,
certo dia tornadas prisioneiras,

ali regressam, livres e altivas.
Quando elas passam, com seu ar contente,
batem palmas as palmas das palmeiras,
e o sol, subindo alto, é mais ardente!

1938

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Paulo Roberto Gaefke - Recomeçar (ou Faxina na Alma)

* Paulo Roberto Gaefke

Não importa onde você parou,
em que momento da vida você cansou,
o que importa é que sempre é possível
e necessário “Recomeçar”.
Recomeçar é dar uma nova
chance a si mesmo.
É renovar as esperanças na vida
e o mais importante:
acreditar em você de novo.

Sofreu muito nesse período?
Foi aprendizado.
Chorou muito?
Foi limpeza da alma.
Ficou com raiva das pessoas?
Foi para perdoá-las um dia.
Sentiu-se só por diversas vezes?
É por que fechaste a porta até para os outros.
Acreditou que tudo estava perdido?
Era o início da tua melhora.

Pois é!
Agora é hora de iniciar,
de pensar na luz,
de encontrar prazer nas coisas simples de novo.Que tal um novo emprego?
Uma nova profissão?
Um corte de cabelo arrojado, diferente?
Um novo curso,
ou aquele velho desejo de apender a pintar,
desenhar,
dominar o computador,
ou qualquer outra coisa?

Olha quanto desafio.
Quanta coisa nova nesse mundão
de meu Deus te esperando.
Tá se sentindo sozinho?
Besteira!
Tem tanta gente que você afastou
com o seu “período de isolamento”,
tem tanta gente esperando apenas um
sorriso teu para “chegar” perto de você.

Onde você quer chegar?
Ir alto.
Sonhe alto,
queira o melhor do melhor,
queira coisas boas para a vida.
pensamentos assim trazem para nós
aquilo que desejamos.
Se pensarmos pequeno,
coisas pequenas teremos.
Já se desejarmos fortemente o melhor
e principalmente lutarmos pelo melhor,
o melhor vai se instalar na nossa vida.
E é hoje o dia da Faxina Mental.

Joga fora tudo que te prende ao passado,
ao mundinho de coisas tristes,
fotos,
peças de roupa,
papel de bala,
ingressos de cinema,
bilhetes de viagens,
e toda aquela tranqueira que guardamos
quando nos julgamos apaixonados.
Jogue tudo fora.
Mas, principalmente,
esvazie seu coração.
Fique pronto para a vida,
para um novo amor.
Lembre-se somos apaixonáveis,
somos sempre capazes de amar
muitas e muitas vezes.
Afinal de contas,
nós somos o “Amor”.

– *Paulo Roberto Gaefke, em Meu anjo (website)./e no livro  ‘Decidi ser Feliz’. Edições do autor, 2002.

domingo, 19 de julho de 2020

José Gameiro - Quo Vadis

DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA, POR JOSÉ GAMEIRO

Era o que faltava que impedissem a nossa liberdade de circulação. Acabámos detidas

Puseram-me aqui. Parece que há por aí muitos vírus, já vão em 19... Que disparate, sempre existiram vírus. Porque é que agora lhes dão um número? Devem achar que aparece um todos os dias. São uns ignorantes. Fecharam tudo, cafés, restaurantes, até cabeleireiros... Como é que eu vou arranjar o cabelo? A única coisa que acho bem que tenham fechado são as fronteiras. Nunca deviam ter sido abertas, não ouviram dizer que de Espanha nem bom vento nem bom casamento?

No meu tempo, alguém tinha medo de um vírus? Um bicho tão pequenino, temos cá dentro aos milhões. Ninguém me tira da cabeça que fizeram isto para acabar com os velhos. Toda a gente pensa que morrem por causa do vírus, mas não é verdade. Morrem de tristeza. Ficaram isolados, sem poderem ver os filhos e os netos. Falam com eles através daquelas coisas modernas, as crianças mais pequenas têm medo e fogem.

Estou aqui há três meses, disseram-me que tinham de fazer obras lá em casa. Pedi para a Maria vir comigo, mas não deixaram. Que aqui teria tudo, era só pedir. Isto é só velhos e velhas. Querem-me dar beijos, era o que faltava, depois de o meu marido morrer mais ninguém me tocou. E ele tocava-me tão bem. Mas fiz aqui uma amiga. Já não é muito nova, tem 94, menos três do que eu, mas está um bocado acabada. Parece minha mãe.

Começámos a conversar e descobri que ainda somos primas afastadas, tivemos o mesmo bisavô. As duas, muito fartas de aqui estar, congeminámos uma aventura. Uma noite fingimos que tomávamos os comprimidos que nos dão para dormir e ficámos acordadas até ao silêncio total. Sabíamos que a empregada passava pelas brasas num dos sofás da sala. Vestimos a melhor roupa que tínhamos e esgueirámo-nos para a rua. Sem máscaras — já não temos idade para andar mascaradas —, fomos a pé até ao centro. As ruas completamente desertas, eis que aparece um carro da polícia.

“Mas o que é que as senhoras andam a fazer na rua a esta hora? Onde é que moram?” Recusámos responder a todas as perguntas. Era o que faltava que impedissem a nossa liberdade de circulação. Acabámos detidas, depois de termos sido ameaçadas de coimas e outros disparates. “Se não fosse a vossa idade, iam dormir ao posto, até de manhã as levarmos ao tribunal.”

Explicámos que não tinha problema, sempre íamos conhecer uns rapazes novos. Acederam. Foi uma noite bem animada. Às sete da manhã chegou o alarme do lar. Duas velhas tinham desaparecido, era uma vergonha. Os nossos amigos explicaram que tínhamos sido capturadas. Lá fomos ao tribunal. Sem a minha colega de aventura saber, tinha avisado antes um amigo meu que percebe imenso de Direito Constitucional. Ele tinha-me dito: “Faz tudo o que te apetecer. Eu defendo-te. Eles não sabem fazer as leis, é tudo inconstitucional.”

O delegado do Ministério Publico, um rapaz ainda novo, começou a falar connosco como se fôssemos atrasadas mentais. “Então as meninas andaram a passear?” Disse ao advogado oficioso: “S.f.f., dite para a ata: se o senhor delegado continuar neste tom, terá uma queixa no Conselho Superior da Magistratura.” O homem não gostou. “Peço que se aplique a coima e que, se as senhoras” — passámos a ser crescidas — “voltarem a fazer o mesmo, incorrem no crime de desobediência.”

Foi nesta altura que entrou o meu amigo. Levantaram-se todos, senhor professor para aqui, senhor professor para ali, os salamaleques habituais da Justiça. Tinham sido todos seus alunos. O resto da sessão foi breve. O meu amigo argumentou a total inconstitucionalidade daqueles estados que eles inventaram, catástrofe, calamidade e mais não sei o quê.

Claro que nenhum deles queria proferir uma sentença que fosse parar ao Tribunal Constitucional. Tive pena, dar-me-ia muito gozo. Mas talvez tenham aprendido que não podem fazer o que querem com os velhos. A partir daquele dia, o bicho passou a chamar-se Quo Vadis.


sábado, 18 de julho de 2020

CARTAS ABERTAS ~ DEIXEM O COSTA TRABALHAR!

* Comendador Marques de Correia

A VERDADE É QUE O PRIMEIRO-MINISTRO TEM DE TRABALHAR! DEIXEM O COSTA TRABALHAR!

O LÍDER DA OPOSIÇÃO, QUE TEM A IDEIA DE UM DIA VIR A SER LÍDER DA POSIÇÃO (SÓ FALTA DESENVENCILHAR-SE DO ‘O’), TEVE, POR FIM, UMA IDEIA MUITO FELIZ

Desde que o saudoso professor Cavaco Silva exclamou aos quatro ventos uma das suas três frases que ficaram para a História (“Deixem-me trabalhar!”; as outras foram “Safa!” e “Isto é tudo muito difícil, como diz a minha mulher”) que não se ouvia no Parlamento duas ideias acertadas. Pois bem, essa altura chegou com uma proposta de Rui Rio para que os debates quinzenais passem a mensais, que teve de imediato o apoio de António Costa, mostrando que as relações políticas, sociais e pessoais entre os dois homens não sofreram, até hoje, abalo significativo.

Vários políticos e comentadores acharam a ideia de Rio péssima, não percebendo que ele a faz por dois motivos: o primeiro é que espera vir a ser ele próprio primeiro-ministro (embora não saiba quando); a segunda é que, quando ele for primeiro-ministro, haverá um acordo com quem for líder do PS para que os debates passem a semestrais (caso o chefe do PS não seja esse indomável homem que é Pedro Nuno Santos, que cavalga pradarias aparentemente sem destino). Quando o PS voltar ao Governo, o Rui Rio que lá estiver propõe que os debates passem a anuais; mais tarde propor-se-á que passem a ser um por legislatura e, finalmente, que deixem de existir debates, resolvendo-se tudo entre o PS e o PSD à volta de uma jantarada de leitão, ou vitela, ou bacalhau, como devia ser num país onde se come melhor do que se debate. Eu conheço este projeto porque ele foi desenhado em Bilderberg ou na Trilateral, de qualquer modo num desses lugares maçónicos que frequento, e ouvi perfeitamente a tramoia.

Além disso, concordo com a ideia de Rui Rio, Costa e Cavaco segundo a qual um primeiro-ministro que está sempre no Parlamento, ou mesmo de 15 em 15 dias, a responder a perguntas idiotas (infelizmente, é raro haver uma que o não seja), não pode trabalhar a sério, que é para o que lhe pagam. Desde logo porque tem de preparar respostas tão idiotas como as perguntas. E se não é fácil homens superiormente dotados, como são os representantes da nação, pensarem em perguntas idiotas, mais difícil se torna ao mais dotado desses homens, que é o primeiro-ministro, arranjar respostas ao nível. Daí que se perca algum tempo desnecessário nesta coisa dos debates quinzenais. E não só (com dantes se dizia para se dar ares).

Há mais coisas que roubam tempo a um primeiro-ministro empenhado no desenvolvimento das suas tarefas. Por exemplo:

— Os Conselhos de Ministros, onde alguém que não percebe nada de horta tem de ouvir falar de agricultura;

— As visitas a hospitais, centros de saúde, lares de velhinhos, escolas, etc., nos quais, além do risco de infeção, se perde imenso tempo nas deslocações;

— As reuniões semanais com o Presidente da República, porque toda a gente sabe que o Marcelo deve telefonar seis vezes por dia a António Costa, como aliás faz à maioria dos portugueses;

— As entrevistas a órgãos de comunicação social, mormente às televisões, para as quais tem de preparar-se longamente, de modo a dizer com cara séria um chorrilho de mentiras a que as circunstâncias o obrigam (do amor que tem por Pedro Nuno à consideração que devota a Catarina Martins);

— As reuniões com os partidos, para lhes dar conta de coisas em Bruxelas que não têm absolutamente interesse nenhum, porque já se viu que a Merkel decide, e, quando não é a Merkel, como no caso do presidente do Eurogrupo, as coisas não ficam melhor;

— As próprias reuniões do Conselho de Ministros europeu, que apenas servem para tirar fotografias para campanhas eleitorais ao lado de dois tipos de pessoas: as que as tiram para as usarem nas suas próprias campanhas e as que as deitam imediatamente fora ou aproveitam para pedir um voto numa treta qualquer em debate no momento;

— As deslocações constantes de casa a São Bento, que o impedem de ser mais colaborativo com a sua mulher, que além de o mandar à praça gostava que ele lavasse a loiça (a do jantar);

— Os almoços com empresários, ou quem quer que seja, para assegurar que está tudo bem!

Imaginem Costa liberto destas funções. O tempo que ele teria para governar o país, coisa que, aliás, também é um desperdício fazer, porque, mesmo que fique quieto, nós somos governados pela Europa, que é governada pela China e pelos EUA, que são governados por duas figuras maléficas que andam, aliás, às ordens de um vírus.

O líder da Oposição, que tem a ideia de um dia vir a ser líder da Posição (só falta desenvencilhar-se do ‘O’), teve, por fim, uma ideia muito feliz.


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Manuel Alegre - Meu amor é marinheiro



* Manuel Alegre

Meu amor é marinheiro
E mora no alto mar
Seus braços são como o vento
Ninguém os pode amarrar.

Quando chega à minha beira
Todo o meu sangue é um rio
Onde o meu amor aporta
Seu coração - um navio.

Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade
E uns cabelos onde nascem
Os ventos e a liberdade.

Meu amor é marinheiro
Quando chega à minha beira
Acende um cravo na boca
E canta desta maneira.

Eu vivo lá longe, longe
Onde passam os navios
Mas um dia hei-de voltar
Às águas dos nossos rios.

Hei-de passar nas cidades
Como o vento nas areias
E abrir todas as janelas
E abrir todas as cadeias.

Assim falou meu amor

sábado, 11 de julho de 2020

Manuel Alegre - Abril




* Manuel Alegre

Habito o sol dentro de ti
Descubro a terra, aprendo o mar,
por tuas mãos, naus antigas, chego ao longe,
que era sempre tão longe, aqui tão perto.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. meu navio,
este navio onde embarquei
para encontrar dentro de ti, o país de Abril.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava,
Quando o país de Abril se vestia de ti
e eu perguntava quem eras.

Meu amor por ti cantei. E to me deste
um chão tão puro, algarves de ternura.
Por ti cantei, à beira-povo à beira-terra
e achei achando-te o país de Abril.

domingo, 5 de julho de 2020

Alberto Caeiro VII - Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…

 * Alberto Caeiro


VII

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

s.d.

O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
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