domingo, 19 de julho de 2020

José Gameiro - Quo Vadis

DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA, POR JOSÉ GAMEIRO

Era o que faltava que impedissem a nossa liberdade de circulação. Acabámos detidas

Puseram-me aqui. Parece que há por aí muitos vírus, já vão em 19... Que disparate, sempre existiram vírus. Porque é que agora lhes dão um número? Devem achar que aparece um todos os dias. São uns ignorantes. Fecharam tudo, cafés, restaurantes, até cabeleireiros... Como é que eu vou arranjar o cabelo? A única coisa que acho bem que tenham fechado são as fronteiras. Nunca deviam ter sido abertas, não ouviram dizer que de Espanha nem bom vento nem bom casamento?

No meu tempo, alguém tinha medo de um vírus? Um bicho tão pequenino, temos cá dentro aos milhões. Ninguém me tira da cabeça que fizeram isto para acabar com os velhos. Toda a gente pensa que morrem por causa do vírus, mas não é verdade. Morrem de tristeza. Ficaram isolados, sem poderem ver os filhos e os netos. Falam com eles através daquelas coisas modernas, as crianças mais pequenas têm medo e fogem.

Estou aqui há três meses, disseram-me que tinham de fazer obras lá em casa. Pedi para a Maria vir comigo, mas não deixaram. Que aqui teria tudo, era só pedir. Isto é só velhos e velhas. Querem-me dar beijos, era o que faltava, depois de o meu marido morrer mais ninguém me tocou. E ele tocava-me tão bem. Mas fiz aqui uma amiga. Já não é muito nova, tem 94, menos três do que eu, mas está um bocado acabada. Parece minha mãe.

Começámos a conversar e descobri que ainda somos primas afastadas, tivemos o mesmo bisavô. As duas, muito fartas de aqui estar, congeminámos uma aventura. Uma noite fingimos que tomávamos os comprimidos que nos dão para dormir e ficámos acordadas até ao silêncio total. Sabíamos que a empregada passava pelas brasas num dos sofás da sala. Vestimos a melhor roupa que tínhamos e esgueirámo-nos para a rua. Sem máscaras — já não temos idade para andar mascaradas —, fomos a pé até ao centro. As ruas completamente desertas, eis que aparece um carro da polícia.

“Mas o que é que as senhoras andam a fazer na rua a esta hora? Onde é que moram?” Recusámos responder a todas as perguntas. Era o que faltava que impedissem a nossa liberdade de circulação. Acabámos detidas, depois de termos sido ameaçadas de coimas e outros disparates. “Se não fosse a vossa idade, iam dormir ao posto, até de manhã as levarmos ao tribunal.”

Explicámos que não tinha problema, sempre íamos conhecer uns rapazes novos. Acederam. Foi uma noite bem animada. Às sete da manhã chegou o alarme do lar. Duas velhas tinham desaparecido, era uma vergonha. Os nossos amigos explicaram que tínhamos sido capturadas. Lá fomos ao tribunal. Sem a minha colega de aventura saber, tinha avisado antes um amigo meu que percebe imenso de Direito Constitucional. Ele tinha-me dito: “Faz tudo o que te apetecer. Eu defendo-te. Eles não sabem fazer as leis, é tudo inconstitucional.”

O delegado do Ministério Publico, um rapaz ainda novo, começou a falar connosco como se fôssemos atrasadas mentais. “Então as meninas andaram a passear?” Disse ao advogado oficioso: “S.f.f., dite para a ata: se o senhor delegado continuar neste tom, terá uma queixa no Conselho Superior da Magistratura.” O homem não gostou. “Peço que se aplique a coima e que, se as senhoras” — passámos a ser crescidas — “voltarem a fazer o mesmo, incorrem no crime de desobediência.”

Foi nesta altura que entrou o meu amigo. Levantaram-se todos, senhor professor para aqui, senhor professor para ali, os salamaleques habituais da Justiça. Tinham sido todos seus alunos. O resto da sessão foi breve. O meu amigo argumentou a total inconstitucionalidade daqueles estados que eles inventaram, catástrofe, calamidade e mais não sei o quê.

Claro que nenhum deles queria proferir uma sentença que fosse parar ao Tribunal Constitucional. Tive pena, dar-me-ia muito gozo. Mas talvez tenham aprendido que não podem fazer o que querem com os velhos. A partir daquele dia, o bicho passou a chamar-se Quo Vadis.


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