A famosa personagem criada por
Erle Stanley Gardner regressa ao pequeno ecrã com um requintado estilo noir.
Nesta nova aposta da HBO, Matthew Rhys veste a pele de Perry Mason, numa
atuação muito diferente do original e digna de se lhe tirar o chapéu.
22 Junho 2020 — 00:41
A ilustre figura de Raymond Burr
como advogado de defesa criminal na série televisiva Perry Mason (1957-1966) é
para esquecer quando, na nova série homónima da HBO, vemos um Matthew
Rhys pouco polido, sempre de chapéu e cigarro na boca, a comprar uma gravata na
morgue, roubada a quem já não vai precisar dela. Entenda-se: essa
personagem nascida do fenómeno literário de Erle Stanley Gardner é
o ponto de referência mas não funciona como piscadela de olho para um exercício
respeitoso de nostalgia. Pelo contrário, a ideia dos criadores Rolin Jones e
Ron Fitzgerald foi reinventar a postura do protagonista dentro do seu universo,
rodeado de nomes que são familiares a quem leu os livros ou assistiu ao sucesso
da CBS (em Portugal, passou na RTP), e introduzir uma carga sombria que se
espalha ao longo dos oito episódios.
Desde logo, o Perry Mason de Rhys
(The Americans) vive em plena Grande Depressão, e nos primeiros momentos
da série ainda não é um advogado de renome. Sem um tostão no bolso, ele faz
pela vida trabalhando como detetive privado no rasto de intrigas de Hollywood,
acompanhado de uma pequena máquina fotográfica e de um cúmplice que alinha nos
seus métodos muito pouco ortodoxos. Mora numa quinta decadente, separado da
mulher e do filho, bebe que se farta (à sombra da Lei Seca) e enquanto veterano
da Primeira Guerra é frequentado por memórias que volta e meia o atormentam.
Quando lhe chega o convite de um amigo advogado, E.B. Jonathan
(comovente John Lithgow), para investigar um caso mediático de sequestro e homicídio, Mason
não perde tempo a pôr o seu faro apurado em ação, seguindo por atalhos pouco
recomendáveis e, claro, sem fazer cerimónia no que toca à recolha de provas.
Firmada no espírito da Los
Angeles de 1932, esta séria acaba por ser uma história das origens da
personagem, com traços de revisionismo que a aproximam de uma certa
respiração atual. Veja-se, por exemplo, o polícia negro (Chris Chalk)
que aqui dá rosto ao conhecido Paul Drake, futuro detetive privado que auxilia
Mason, ou a incansável secretária Della Street (Juliet Rylance), que esconde
uma relação lésbica. Tanto o racismo como a homofobia atravessam o retrato de
uma sociedade que está igualmente espelhada nas miudezas do caso investigado.
A dar mais robustez à trama deste
Perry Mason surge ainda a líder de uma igreja evangélica, Irmã Alice (Tatiana
Maslany) - cuja presença vigorosa é quase uma narrativa paralela - e todo um sistema
de corrupção que procura distorcer as linhas da verdade, entre perseguições,
assassínios e cadáveres à mercê. Porém, no cerne de praticamente tudo está
algo muito pouco policial: a dureza que define as relações familiares. Será
legítimo dizer que esta primeira temporada, com ares de continuação, serve de
lente para observar os dilemas interiores das personagens. Cada uma à sua
maneira, tenta descobrir um caminho pessoal.
Coproduzida por Tim Van Patten
(Boardwalk Empire), realizador da maior parte dos episódios, e pelo ator Robert
Downey Jr., que esteve para interpretar Perry Mason, a série brilha não
só nos detalhes da reprodução de época, mas também, e sobretudo, no requinte e
disposição noir, que faz da solidão do protagonista um veículo para explorar o
lado pútrido da cidade. Matthew Rhys personifica com muita segurança
esse misto de desmazelo e força moral de Mason. É uma espécie de cão rafeiro
com hora marcada para trocar as voltas ao destino, contando com uma pequena
ajuda dos amigos.
Apesar do cenário de crime, Perry
Mason contraria o ritmo frenético e programado de muitas séries policiais. Cada
episódio presta uma atenção adulta aos diferentes contextos domésticos que
traduzem a realidade da vida em Los Angeles, e essa paciente construção de
uma intimidade é a alma do negócio narrativo. Este, por si só, não propriamente
genial em termos de suspense, mas maduro na abordagem. Talvez porque o mais
importante são as personagens e a sua ressonância emocional. Para avançar é
preciso conhecê-las bem, perceber a melancolia que está por detrás de uma
gravata suja de mostarda, substituída por outra comprada numa morgue.
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