segunda-feira, 27 de julho de 2020

Miguel Esteves Cardoso - Morreu o passôbem

* Miguel Esteves Cardoso

OPINIÃO

Rezo para que o passôbem nunca mais volte. Mal por mal, preferia andar sempre de chapéu.

27 de Julho de 2020, 6:46

O passôbem está condenado a juntar-se ao minuete. Um dia não muito distante só os especialistas saberão que uma dessas coisas é uma dança do século XVI e a outra um hábito estranho de apertar a mão de outra pessoa para cumprimentá-la.

Diz-se que começou para se mostrar que estava ocupada a mão da espada, tranquilizando o interlocutor que não seria imediatamente decapitado. Esta explicação, pelo menos para canhotos como eu, cai em saco roto.

Em plena pandemia um livreiro desconhecido veio a correr para mim, abanando a mão direita no meio de uma feira e proclamando que “queria apertar a mão do homem que tinha escrito O Cabo das Tormentas”.

Quando recusei, ofendeu-se. “Olha este! Olha este armado em bom, que não quer apertar a mão à gente!

Ainda tentei explicar que eu não tinha escrito qualquer livro chamado O Cabo das Tormentas mas ele ainda se picou mais: “Mas escreveu outros tantos, olha porra!

Também a palavra “perdigoto” se perdeu, tendo-se transformado na temida “gotícula”.

Por outro lado, finalmente faz sentido a expressão “bater a bota com a perdigota”. Bater a bota é morrer, a perdigota pode matar e é mau sinal quando estão sincronizadas.

Tremo de pensar que há culturas em que os homens cospem para as palmas das mãos antes de uma tarefa árdua - antes, por assim dizer, de deitar mãos à obra.

Se tivéssemos o azar de interrompê-los, ofereciam-nos a mão estendida, procurando o calor e a cumplicidade dum passôbem.

Rezo para que o passôbem nunca mais volte. Mal por mal, preferia andar sempre de chapéu.

Colunista

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