* Carlos Coutinho
TIVE nos tempos de antanho um amigo chamado Mário-Henrique Leiria que conheci no “Montecarlo”, um antigo café de Lisboa, ali ao Saldanha, onde ele às vezes também aparecia, acompanhado por uma jovem meio esgalgada de quem nunca cheguei a saber o nome e que não foi capaz de pronunciar qualquer palavra ao pé de mim. Depois de dar “duas voltas ao mundo”, demorando-se no Brasil, em Macau, em Xangai, por “ligações” que ele definia como “astrológicas”, instalou-se em Carcavelos com “o Tejo inteiro à frente dos olhos”.
Já trazia acabado o seu livro mais famoso, “Contos do Gin-Tonic” e, antes de morrer em 1980, com 57 anos, ainda publicou “Novos Contos do Gin”. Se eu quisesse agora escrever a sua biografia em modo surrealista, bastava-me seguir com rigor absoluto os passos tergiversantes da sua vida pluricontinental.
Passou pela Escola Superior de Belas Artes, mesmo ao lado do Chiado, donde foi expulso em 1942 “por motivos políticos inconfessáveis”. Participou nas atividades do Grupo Surrealista de Lisboa, entre 1949 e 1951. Em 1962 foi preso, por participação na "Operação Papagaio”, uma intervenção surrealista contra o fascismo que a PIDE facilmente gorou.
Na Primavera de 1962, um ano após o início da Guerra Colonial, um grupo de surrealistas do qual faziam parte Virgílio Martinho, António José Forte, Manuel de Castro, Mário-Henrique Leiria e outros, concebeu um plano estapafúrdio: atacar o Rádio Clube Português, prender e amarrar o contínuo de serviço e substituir a bobina com o programa noturno “Companheiros da Alegria” por uma outra contendo o hino nacional, marchas militares e, a cada cinco minutos, notícias sobre movimentações militares para derrubar o Governo. Terminava convocando a população a deslocar-se à Baixa de Lisboa para saudar os militares vitoriosos e o advento da democracia.
Durante os interrogatórios na PIDE, aconteceu por diversas vezes os beleguins saírem dos “gabinetes de investigação» e virem rir às gargalhadas para o corredor. Não houve torturas nem se formou processo e foram confiscadas as armas reunidas para a execução do golpe. No seu livro “Prazo de Validade” (1998), Luiz Pacheco dá-nos a sua versão destes acontecimentos, não diferindo muito nos pormenores.
Seguidamente, Mário-Henrique Leiria partiu para o Brasil onde desenvolveu várias atividades, como a de encenador e a de diretor literário da Editora Samambaia, regressando a Portugal em 1970, depois das tais “duas voltas ao mundo” que nunca me foi possível confirmar. Cá, colaborou com pequenos contos no suplemento “Fim-de-Semana” do jornal “República” e no semanário humorístico "Pé de Cabra". Também chefiou a redação de “O Coiso”, um semanário impresso nas oficinas do “República”, durante 13 semanas, em 1975.
Em 1976, “cheio de um certo fervor brasileiro”, aderiu de alma e coração ao PRP, talvez porque “já tinham passado uns bons 15 anos” sobre a entrega, em 1961, de um punhado de textos seus, alguns já publicados e outros ainda inéditos, para serem incluídos na “Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito”, organizada por outro Mário e ex-surrealista, o Cesariny de Vasconcelos.
Os dificílimos últimos anos da sua vida, tolhido pela sua degenerescência óssea e caído na pobreza, foram decisivos na opção pelo clandestinidade da vida. Embora contrariado, viveu finalmente na casa materna, com a mãe e uma tia, ambas muito idosas, mas solícitas
2022 07 01