Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
sábado, 29 de abril de 2023
Bárbara Reis - A culpa também é dos jornalistas
terça-feira, 25 de abril de 2023
Manuel Loff . Discurso em nome do PCP, na sessão de celebração do 25 de Abril na AR
sábado, 22 de abril de 2023
José Pacheco Pereira - Derrubar o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (I e II)
* José Pacheco Pereira
Opinião - Derrubar
o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (I), por José
Pacheco Pereira 15 de Abril de 2023
Misturam-se coisas sérias com trivialidades, porque o que conta é criar uma ecologia tóxica, e não a relevância do que se “denuncia”. O que conta é a repetição, o estilo e o DR
1. Este
é um artigo que escrevo por alguma coisa parecida com o dever. Preferia não o
fazer. Exactamente porque vivemos na ecologia tóxica em que vivemos, é fácil
fazê-lo dizer aquilo que ele não diz. Mas vale a pena correr esse risco.
2. Não
se indignem com a palavra estuporar. É sólido português e nem sequer é um
plebeísmo, só caiu em desuso porque hoje falamos com cada vez menos palavras,
ficando com isso cada vez mais pobres. Mas é mesmo o que eu quero dizer com a
exacta palavra. Vivemos hoje um momento em que para obter ganhos políticos
contra o Governo se cria um ambiente tóxico de radicalização em que vale tudo
desde que daí possa vir prejuízo para o actual Governo socialista de António
Costa. O efeito principal não será sobre os governos, que vão e vêm, será sobre
a democracia. É ela que, pelo caminho, está a ser estuporada pelo “vale tudo”
actual e pela incompreensão de que há hoje um efeito de ampliação com
mecanismos de desgaste no interior das democracias que são novos. Fazer o que
está a ser feito é hoje muito mais perigoso do que no passado.
3. É
fácil insinuar que o que me preocupa é a sorte do Governo e que isso é
situacionista. Não é verdade. Não me esqueço de que o Governo é um governo
medíocre, com raras excepções, porque há excepções. Muito do que hoje facilita
a corrosão da democracia deve-se ao Governo e às suas asneiras, que nem sequer
percebe o mal que está a fazer e a permitir que se faça. É este segundo aspecto
que me interessa, o do “permitir que se faça”, porque hoje o situacionismo é
participar e alimentar neste ar tóxico em que estamos envolvidos. O Governo e a
sua sobrevivência são o menor problema.
4. Dito
isto, também não esqueço um aspecto fundamental da democracia que é a forte
legitimação de um governo que tem uma maioria absoluta. Enquanto não houver
eleições que mudem o peso relativo político dos partidos e dêem a outros a
legitimidade do poder, não são as sondagens que são critério, nem sequer a
nuvem de “casos e casinhos”, desde que a justiça funcione para os “casos”, a
liberdade de escrutínio para os “casinhos”, e não haja perturbação no
funcionamento das instituições, como não há. Os apelos à dissolução da
Assembleia e ao derrube do Governo são mais um elemento da radicalização. Não
há comparação possível entre as “trapalhadas” de um governo com escassa
legitimidade política, ainda por cima herdada, e as de um governo com uma
sólida maioria parlamentar, com uma oposição frágil e dividida. Se houvesse
dissolução da Assembleia na actual situação, não teria qualquer precedente
válido. Deste ponto de vista, o Presidente tem actuado correctamente.
5. O
problema é que, com o objectivo de se derrubar o Governo a todo o custo, está a
estragar-se a democracia. É um truísmo perigoso achar que a democracia aguenta
tudo. Não estamos a falar do dever do escrutínio nem de análise, que é sempre
bem-vinda, estamos a falar de campanhas políticas e politizadas usando a
comunicação social. A comunicação social teve uma enorme viragem à direita que
começou durante o Governo Passos-Portas-troika e se radicalizou com a
maioria absoluta do PS. Onde antes a esquerda tinha a hegemonia, hoje o
dinamismo político encontra-se à direita que ocupa a parte de leão, por
exemplo, do comentário político na televisão, na rádio e nos jornais. O efeito
de repetição e a saturação de temas, motivos e, acima de tudo, alvos são hoje
definidos à direita, mas esse é apenas o pano de fundo de um processo que tem
outra dimensão e, acima de tudo, outros métodos. São esses métodos que estão a
estuporar a democracia criando uma elevada toxicidade na acção política.
6. O
pretexto parte muitas vezes de “casos” reais, mas que são inseridos num fluxo
que não é nem informativo, nem comunicacional, mas politicamente instrumental.
O clima é persecutório. Deixou de haver a presunção da inocência, e os
desmentidos, mesmo quando revelam mentiras e manipulações grosseiras, ou quando
significam a conclusão judicial pelo arquivamento por falta de provas ou a
absolvição, raramente são noticiados ou são remetidos para um fundo de página.
Há alvos a abater, que uma vez abatidos passam a mira para outros alvos. Há
técnicas de saturação que misturam coisas sérias com trivialidades, porque o
que conta é criar uma ecologia tóxica, e não a relevância do que se “denuncia”.
Tudo é, aliás, tratado do mesmo modo, porque resulta tratá-lo do mesmo modo. O
que conta é a repetição, o estilo e o tom.
Há críticas
com razão? Certamente que há, mas a duplicidade de critérios, o andar para trás
e para a frente, tem uma única constante: o alvo
7. Toda
uma panóplia de técnicas de manipulação, duplos critérios, sanha persecutória,
sugestões de ilegalidade quando não existem ilegalidades, interpretações ad
terrorem, ataques contra as pessoas e seus familiares, mecanismos em
círculo vicioso – ou falou de mais e não devia ter falado, ou falou de menos e
devia falar mais, ou não falou e devia ter falado, ou falou mas não disse nada,
ou está silencioso porque tem culpa – e o arsenal clássico da sugestão da
falsidade e da omissão da verdade. E não é só o que se diz, é também o que se
cala, omite ou minimiza. E é o tempo da fala – falou hoje mas devia falar
ontem, falou ontem mas devia ser hoje, foi com aquele pretexto mas devia ser
com outro, etc. –, é um labirinto sem saída. No meio disto tudo há críticas com
razão? Certamente que há, mas a duplicidade de critérios, o andar para trás e
para a frente, tem uma única constante: o alvo. E a escolha e o modo de
tratamento do alvo são puramente políticos.
8. A
politização panfletária de quase toda a comunicação social tem efeitos
perversos no próprio funcionamento da democracia, gerando um ambiente de
permanente excitação, em que predomina o pathos e perde o logos.
(Continua...)
O autor é
colunista do PÚBLICO
Daniel Oliveira - Cada vez menos inteligentes
* Daniel Oliveira
A meteorologia
foi das primeiras a usar inteligência artificial (IA) para modelos de previsão.
E, no entanto, como explica João Gabriel Ribeiro, diretor da “Shifter”, mesmo sendo uma ferramenta indicada para o
fazer, a IA “não seria capaz de perceber se está a chover ou o significado da
chuva de um modo geral” além do que pode ser traduzido em dados, através de um
modelo prévio. Como a IA “nunca se molhou” nunca saberá mais do que a
“descrição do que é estar molhado”. Por isso, conclui: “Aquilo que conhecemos
por IA é cada vez menos similar à nossa inteligência.” Há, no temor de a nossa
inteligência ser substituída por máquinas, algum desrespeito por ela. Se
perguntarmos ao ChatGPT como resolver os problemas da habitação ou da inflação
ele vai dar as respostas que mais encontra no espaço público, por serem as mais
prováveis. Só parecem neutras porque são plausíveis. Não as vai pôr em causa ou
verificar se as soluções resultaram. Num processo opaco, até para quem o
concebeu, pode oferecer-nos o erro sem se socorrer do mecanismo mais humano da
inteligência: a dúvida. O que a IA faz é replicar a nossa mediania com a
arrogância do acesso quase ilimitado a bases de dados.
Quem acha que o
jornalismo pode ser substituído por isto é porque assumiu que ele dispensa a
incerteza para oferecer a resposta provável, mesmo que seja falsa. Pode ser
assustador fotografias geradas por IA vencerem concursos, mas, para se falar de
arte, o fundamental continua a ser o mesmo de sempre, dependente da
inteligência humana e muito para lá da técnica: ter alguma coisa improvável
para dizer. Os professores não receiam que a IA simule a capacidade de pensar
diferente, de pôr em causa, de inovar. Receiam que chegue para replicar a
formatação que a escola impõe a adolescentes desmotivados da sua criatividade
para se alinharem com a mediania. Claro que temos de treinar capacidades
básicas. As que nem as calculadoras deveriam substituir. Mas se a máquina pode
tomar o lugar do aluno, a escola obstinada com a memorização não andará a ser
pouco exigente com os jovens cérebros? Se a escola treina para repetir,
qualquer computador a substituirá. Se a inteligência humana pode ser vencida
pela inteligência artificial, quando esta dá os primeiros passos, é porque lhe
andamos a dar pobre uso.
A tecnologia
oprime em vez de libertar porque a sociedade assim está organizada. Para vencer
os perigos da máquina não se destrói a máquina, mas as relações de poder que a
põem ao serviço da opressão. Seremos dominados pela IA porque, neste
capitalismo, estamos reduzidos a ser produto e produtores. O problema não é
tecnológico, é político
Não quero
parecer otimista. Não podia estar mais longe do deslumbramento tecnológico que
mais não é do que o deslumbramento pela desumanização da vida. Não tenho
qualquer ilusão sobre a nossa capacidade de dominar o monstro de Frankenstein
porque não tenho qualquer ilusão quanto à capacidade deste capitalismo nos
libertar da condição de produtos e produtores. Seremos dominados porque já o
somos. Não deixámos que os algoritmos das redes sociais controlados por
ditadores da estupidificação geral determinassem o rumo das democracias? Não
permitimos a complexificação desregulada de um sistema financeiro que nos atira
para crises sucessivas? Não estamos a entregar o monopólio estatal da criação
de dinheiro ao submundo das criptomoedas? Não foi por desistência dos Estados
que o desenvolvimento da IA tenha acontecido, ao contrário do que era habitual,
sem financiado e enquadramento público?
Recordo-me da
clonagem da ovelha “Dolly” ter levado a um debate transversal e à imposição de
limites. Nada a ver com um abaixo-assinado a pedir seis meses de espera para
avaliar os riscos da IA, que conta com o nome de Elon Musk, envolvido no
financiamento inicial da OpenIA e que está a preparar uma startup rival. Quem tem recusado a transparência e a
regulação do Twitter está preocupado com a distopia de uma tecnologia sem freio
ou com o seu lugar nessa distopia?
Não sou nem
tecnoentusiasta, nem ludita. Sei que a tecnologia tende a reforçar as relações
de poder que existem. Para vencer os perigos da máquina não se destrói a
máquina, destroem-se as relações de poder que a põem ao serviço da opressão.
Não foram as plataformas de distribuição e serviços que transformaram a
proposta de uma economia colaborativa em instrumento de promoção do
empreendedorismo escravo. Foi a castração do papel regulatório dos Estados e a
perda de poder de sindicatos e trabalhadores. A tecnologia serve para oprimir
em vez de libertar porque a sociedade assim está organizada.
Li, num texto de Francisco Mendes da Silva, que, segundo um estudo da Universidade de Oxford e do Future of Life Institute, os investigadores da IA acham que o seu trabalho tem, em média, 10% de probabilidades de conduzir a Humanidade à extinção. O que quer dizer que há muita gente convencida que está a trabalhar para o fim do mundo. E, na realidade, são otimistas. As alterações climáticas estão a correr mais depressa para a nossa extinção e chamamos histéricos aos jovens que as tratam como uma questão de vida ou de morte. E nada fazemos para controlar a ganância de banqueiros ou regular o faroeste das redes sociais com as regas que tínhamos como óbvias em sociedades democráticas. Se caminhamos para a extinção, o problema não é tecnológico, é político.
sexta-feira, 21 de abril de 2023
Livros rejeitados pelos críticos
António Guerreiro - O algoritmo diabólico,
Crónica Acção Paralela -
* António Guerreiro
21 de Abril de 2023
A ideia de que
se começa pela junk fiction e se evolui na exigência até que um dia se
chega ao Joyce é uma piedosa invenção que até os “agentes culturais” difundem
com alegria.
Através de
artigos e reportagens que, nos últimos tempos, surgiram na imprensa
(inclusivamente neste
jornal), ficámos a saber que os jovens, por meio do TikTok, contribuíram de
maneira significativa para o aumento das vendas de livros, provocando algum
entusiasmo na indústria editorial. Este fenómeno não tem fronteiras e há já
algum tempo que foi identificado em vários países. A sua história vem de trás,
mas acelerou e ganhou mais força com o lançamento, em 2017, do TikTok, uma rede social que está a
meio caminho da plataforma de conteúdos do tipo Netflix.
Esta rede vinda
da China instaura uma mistura complexa que se situa entre o privado e o público
e revelou-se muito apta para a produção de tendências e de códigos tribais, na
medida em que oferece um uso mais passivo do que as outras redes sociais e
potencializa a lógica da “viralidade”. Tornou-se assim um instrumento poderoso
na relação dos jovens – os seus utilizadores preferenciais – com o mundo. O
algoritmo do TikTok tem a fineza de identificar com sofisticação analítica os
interesses de cada um, os medos e obsessões, categorizando assim uma
personalidade nos seus aspectos mais privados, fornecendo-lhe o que se adapta a
ela, quase entrando na intimidade dos utilizadores. É um algoritmo capaz de
encadear uma série ultrapersonalizada de vídeos (TikTok é uma rede que incita a
criar vídeos e a fazer deles o motor da máquina) e recomenda-os “para ti”, de
maneira ininterrupta. Tem, por isso, um forte poder adictivo.
De um modo
geral, as reportagem e artigos sobre o TikTok enquanto factor adjuvante da
indústria do livro têm um tom optimista e de entusiasmo: porque se vendem
mais livros e porque os jovens são incitados à leitura. É certo que em
nenhum momento alguém diz que os influencers do TikTok e outras redes
promovem a leitura de grande ou mesmo da pequena literatura. Mas a ideia, por
mais que ela já tenha sido desmentida em muitos estudos, de que se começa pela junk
fiction e se evolui na exigência até que um dia se chega ao Joyce, é uma
piedosa invenção que até os “agentes culturais” difundem com alegria. Até
parece que não há pelo menos uma pequena questão a atravessar-se no caminho: o
livro, que desde a invenção da imprensa foi visto como um medium
glorioso que alimenta o nosso poder reflexivo e, por isso, é um factor de
liberdade e emancipação, encontra-se assim projectado num mundo organizado
pelos algoritmos.
É verdade que
seria muito ingénuo manter hoje uma concepção do livro que herdámos do
Iluminismo. Essa concepção pertence ao passado. Mas a cegueira em relação às
consequências da algoritmização é ainda mais escandalosa quando se trata do medium-livro
e deve fazer reflectir sobre os efeitos que isso tem sobre as espécies
bibliográficas e o património literário que – em princípio não há quem não
concorde – é preciso divulgar e preservar para termos um “espaço público” que
não seja conformado a uma paradoxal e totalitária algoritmização da liberdade
que vira o liberalismo contra si mesmo.
À primeira
vista, o TikTok parece uma coisa simples, uma rede que cumpre com a eficácia
que nenhuma outra jamais alcançou as exigências de uma economia da atenção – o
bem mais precioso e mais disputado do nosso tempo. Mas, como observou um
ensaísta francês, Chistian Salmon, num texto publicado na revista Slate
(online), a coisa é muito complexa e dela se pode dizer o que Marx dizia de uma
simples mesa quando se transforma em mercadoria: um objecto “cheio de
subtilezas metafísicas e argúcias teológicas”.
O escritor,
cineasta e ensaísta Alexander Kluge (cuja monumental Crónica dos Sentimentos
podemos ler na tradução portuguesa que saiu em dois volumes, na BCF Editores)
tem-se empenhado em alertar contra as “novas sereias”, essas “criaturas míticas
que ocupam os perigosos recifes de Silicon Valley” (os seus alertas estavam
virados para esse centro industrial da alta tecnologia, do capitalismo
algorítmico, muito antes do aparecimento do TikTok).
As sereias de
hoje, que têm o enorme poder de adivinhar os nossos desejos, são, diz Kluge, um
“novo alfabeto” – um alfabeto binário. Recordemos que Alphabet é o nome da holding
proprietária da Google. E onde há um algoritmo (que nós, os leigos, não sabemos
como trabalha) é preciso que exista sempre um contra-algoritmo. E o
contra-algoritmo que Kluge reclama é um poder poético, que vem também da
teoria. É combinando tudo o que as artes podem produzir que se podem criar
contra-algoritmos: “A arte é o advogado dos contra-algoritmos”, afirmou Kluge,
certamente a pensar na sua formação de advogado.
Livro de
recitações
“A mulher de João
Galamba”
Nome de uma figura assim referida, nos últimos dias, pela generalidade dos media.
À “mulher de
César”, que atravessa os tempos e sobrevive como um espectro até ao nosso
tempo, junta-se agora a “mulher do João Galamba”. A bem dizer, nem quis saber o
que se passava com esta mulher e porque é que teve direito a uma efémera
celebridade por via de uma afinidade conjugal. Mas no nosso tempo só quem é
completamente impermeável a um certo arejamento é que não sente alguma
estranheza e incomodidade na utilização deste genitivo objectivo. Não interessa
se há razões para ele ser utilizado. Novos hábitos linguísticos tornam já
exótica esta fórmula repetida: “A mulher de João Galamba”. Ah, a gramática dos
novos tempos!
https://www.publico.pt/2023/04/21/culturaipsilon/cronica/algoritmo-diabolico-2046556
sábado, 15 de abril de 2023
Bárbara Reis - Boaventura e a nova palavra: ‘extractivismo intelectual’,
OPINIÃO COFFEE BREAK - por Bárbara Reis
15 de Abril de 2023
Nunca tinha ouvido “extractivismo intelectual”. É uma expressão nova para um problema velho. Vantagem em relação ao assédio sexual? É mais fácil de provar.
Dizem-me que na academia há pessoas nervosas com o caso Boaventura de Sousa Santos porque imaginam que a sua vez chegará em breve. Provavelmente é o que vai acontecer. Tem sido esse o padrão noutros países.
Enquanto esperamos — por novos testemunhos ou novos casos —, seria útil olhar para as acusações relativas à sua prática académica tout court, pelo menos as destacadas no livro Sexual Misconduct in Academia (Routledge, 2023).
Num capítulo desse livro, três antigas investigadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra — a belga Lieselotte Viaene, professora na Universidade Carlos III, Espanha; a portuguesa Catarina Laranjeiro, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e a norte-americana Miye Nadya Tom, professora na Universidade de Nebraska, EUA — acusam o sociólogo e director emérito do CES de aproveitamento intelectual.
Não sei se é uma acusação mais grave do que a de assédio sexual. Mas é uma mancha terrível que nenhum académico quer. Fere — e pode destruir — o próprio corpo de trabalho, a essência do que se faz numa profissão.
Também não sei se é verdade. Boaventura pode ter agido sempre de forma correcta em relação aos direitos autorais dos outros, pode ter agido bem só às vezes ou o aproveitamento intelectual pode ter sido o seu padrão.
Muitos académicos dizem que este é um velho problema da academia, cheio de armadilhas, falhas de comunicação, traições e vaidades, e que provoca atritos diários. Dizem também que são conhecidos, nas várias áreas, os investigadores que têm por hábito atrair para si os créditos dos outros.
Há em todas as profissões. Editores de jornais que acrescentam o seu nome à assinatura de notícias escritas pelos colegas jovens. Arquitectos donos de ateliers que registam a autoria de projectos só com o seu nome. Investigadores que se sentem injustiçados quando vêem o seu nome relegado para os agradecimentos no livro para o qual trabalharam meses.
O que parece óbvio é que, olhando para as duas questões éticas em debate, é mais fácil provar o aproveitamento intelectual do que o assédio sexual. É difícil e trabalhoso, mas é realista esperar uma conclusão taxativa, sem ambiguidade e sem margem para dúvida.
Falo do “extractivismo intelectual”, expressão que desconhecia até esta semana e que é usada pelas investigadoras no ensaio que deu origem a esta tempestade.
Percebe-se a origem: há o uso sistemático dos recursos naturais e há o uso sistemático dos recursos intelectuais. Recursos dos outros, bem entendido, em regra, os mais fracos. A expressão vem da crítica moderna ao colonialismo e ao uso que os impérios coloniais fizeram dos recursos naturais das colónias.
Boaventura, dizem as investigadoras, “poderá ser visto como um especialista em extractivismo intelectual”. Na prática, acusam-no de duas coisas: 1) publicar artigos e capítulos de livros usando o trabalho feito por jovens assistentes do CES a quem não pagou ou pagou mal e; 2) assinar textos sozinho, sem reconhecer os assistentes como co-autores e relegando-os para a página dos agradecimentos ou as notas de rodapé.
As investigadoras dizem que “esta má conduta explica como os professores-estrelas conseguem escrever por ano dezenas de artigos e capítulos de livros assinados só com o seu nome, ao mesmo tempo que dão conferências e masterclasses pelo mundo fora”. Uma alta produtividade só possível graças ao “extractivismo intelectual”.
Antes da questão técnica (como provar), a questão ética (as boas práticas). Falei com académicos experientes, incluindo catedráticos e directores de projectos com financiamentos de milhões de euros. Há regras simples, conhecidas e consensuais.
Por exemplo: se um iestigador assistente fez um mestrado ou um doutoramento sob a orientação do mestre e se partes desse trabalho aparecem num texto do mestre no qual o assistente não é identificado como co-autor, o mestre está a apropriar-se do trabalho do assistente. É o “extractivismo intelectual”.
Claro que à volta de alguns mestres célebres há jovens investigadores que “disputam o direito a levar a mala”. Sabem que a associação a um mestre com fama internacional cria currículo e ajuda a conseguir um contrato numa universidade. Estou a citar um académico que, há uns anos, num jantar do CES em Coimbra, viu com espanto jovens assistentes citarem à mesa, em voz alta, passagens de artigos de Boaventura, num esforço de lisonja ao chefe, ali sentado, que muito o impressionou.
Estou também a pensar na frase que otro académico me disse ontem: “Boaventura era um passaporte para uma vida boa.” Não há nada de errado em ser-se discípulo, seguidor e intérprete de um guru. O aprendiz vai mais longe, mas também leva consigo as ideias do guru, que assim vão mais longe também. Os dois ganham.
Isto ajuda a explicar algumas coisas, mas é lateral à tempestade.
De regresso à técnica. Como dizem os americanos, não é preciso um cientista espacial. As investigadoras falam em “inúmeras histórias”. Pois bem, veja-se uma a uma. Basta seguir o paper trail, ou seja, percorrer os documentos que mostram o historial de cada texto.
Hoje os bastidores dos textos têm uma pegada informática automática, inalterável e fácil de reconstituir.
Pode começar-se por perguntar quem se sente lesado. Seria o mais simples, pois cada investigador mostraria o que fez e o que, do seu trabalho, foi usado nos textos publicados por Boaventura. Muito, pouco, nada? E, a seguir, como foi registada a autoria.
Se ninguém se chegar à frente, pode analisar-se artigo a artigo, procurar os nomes nos agradecimentos e notas de rodapé. Isso implica contactar as pessoas, comparar e cotejar os textos. Há quem queira participar e quem não queira. Os que querem têm as provas.
Se foi publicada a tese de mestrado ou de doutoramento, é só comparar. Há bons softwares. Há partes iguais num artigo do mestre? São grandes ou pequenas?
Claro que, em ciência, vale o que se publica. Mas mesmo nos eventuais casos de assistentes que não publicaram, é possível provar a sua participação.
Imagine que um texto foi escrito a quatro ou seis mãos. Se foi no Google Docs — muito usado, pois permite várias pessoas escreverem e editarem um mesmo texto, acessível online e guardado numa nuvem —, basta ver o registo das acções. Tudo fica como marca de água: x escreveu o bloco tal no dia tal, à hora tal; y idem aspas; x de novo, etc. Se foi por email, há registo dos envios.
Explica uma académica: “Quando os jovens investigadores que orientamos são muito bons, incentivamo-los a publicar. A regra é assinarmos juntos: o jovem em primeiro lugar, o mestre em segundo. Sem o mestre, o trabalho não existiria (é o mestre que consegue financiamento para o projecto e é o mestre que guia o processo intelectual). Mas sem o investigador, não haveria aquele trabalho. Além disso, interessa ao jovem assinar em co-autoria com um mestre, pois é isso que lhe vai abrir portas, é um selo de qualidade. Nestes casos, a co-autoria é justa e correcta para os dois.”
Diz outra académica: “Quando não é assim, é porque o trabalho de equipa é só fachada.”
A questão é simples: dá trabalho, mas é possível reconstituir os projectos e os “bastidores” dos textos e ver quem fez o quê.
Outra coisa: tal como no assédio, é preciso que os que se sentem lesados avancem, contem as suas histórias e mostrem os seus papéis. O ar ficará mais limpo.
Redactora principal
quinta-feira, 13 de abril de 2023
José Pacheco Pereira - Um “pide” moderno
* José Pacheco Pereira
1 de Abril de 2023,
As mais
poderosas forças do mundo, boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo
sentido e sem controlo.
PBX DR
Este é um
artigo inútil. Nada do que aqui está, seja o que escrevi, seja o que “acontece”
no que escrevi, muda alguma coisa. Se não achasse que é minimizar uma das
figuras mais criativas da literatura, Dom Quixote de la Mancha, o Cavaleiro da
Triste Figura, podia usar a classificação comum de “quixotesco”. Mais: não só
não muda nada, como vai ser cada vez pior. As mais poderosas forças do mundo,
boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo sentido e sem controlo. O
controlo é do domínio da pura ficção. Quem quer usá-las usa e infelizmente há
muita gente a querer usá-las, a começar por aqueles que deviam ter consciência
dos seus riscos. Há pouca coisa realmente mais apocalíptica nos dias de hoje do
que isto. O que é “isto”?
Imaginemos um
“pide” moderno, e há muitos “pides” modernos. Senta-se para o trabalho diante
de um conjunto de ecrãs, ligados a várias bases de dados, usando quer programas
comuns e motores de busca vulgares, quer especializados. Qualquer serviço
pidesco pode hoje comprar, num mercado mais especializado, programas e motores
de busca usados por polícias e ladrões, serviços de informação nacionais e
internacionais, que procuram não só na superfície da Rede mas também na sua
parte “negra”. Eu já os vi a funcionar e garanto-vos que nem imaginam o que
encontram, dados e contexto.
O “pide”
moderno é jovem, como os últimos recrutamentos da PIDE em vésperas do 25 de
Abril, e nem sequer precisa de ser um nerd nem um hacker,
mas apenas de saber usar os seus instrumentos, que tem diante dos olhos. A
maior parte do que recolhe é legal, qualquer um o pode fazer, mas alguma parte
está na fronteira do abuso e outra é mesmo ilegal. Se houvesse uma suspeita
fundamentada de crime, podia ser autorizado, por um juiz, o acesso aos
metadados ou a escutas, mas eu estou a falar da vigilância sobre as pessoas
comuns e não sobre criminosos.
O “pide”
moderno começa a registar os meus dados. Sai de casa – horas. Ele sabe onde
moro e pode contar o tempo entre a saída e o próximo sinal recebido por causa
do pequeno-almoço, a factura. A factura está cheia de informação que o Estado,
através do fisco, se arroga de ter: na factura bastava o valor global, mas está
muita outra coisa. Está o que comi e bebi, está se tomei o pequeno-almoço
sozinho ou acompanhado.
Depois passo
por um multibanco, e levanto dinheiro e faço pagamentos. Durante o dia todo, os
cartões de crédito registam um rasto de acções que, acompanhado pelas facturas,
já permitem saber muitas coisas. Quando Monica Lewinsky comprou uns livros para
dar a Clinton, um deles, Vox, de Nicholson Baker, uma ficção em que há
uma relação de “sexo telefónico”, isso interessou ao procurador que perseguia
Clinton. A livraria recusou-se, e bem, em mais um acto quixotesco, a dizer que
títulos de livros tinham sido comprados. Eu podia, como faço quase todos os
dias, também ir a uma livraria, e mesmo sem comprar o Vox (que já tenho
e li) alguns títulos podem sobressaltar o “pide”, que não é muito de livros, mas
pode ir ver os resumos à Rede – por exemplo, o Agente Secreto, de
Conrad, levantou-lhe as sobrancelhas tratadas, quando foi a um destes barbeiros
tão modernos como o “pide”. Ou uns fanzines anarquistas com títulos bombásticos
ou o Mapa ou a Batalha, já para não falar no Avante!. Ele
aí ganha o dia, para colmatar a falta de material das redes sociais, em si
mesmo uma falta suspeita, de quem não tem Facebook, nem Instagram, nem qualquer
outro fluxo de fotografias de almoços, pequenas e grandes fúrias, boatos e
calúnias, nem sequer frases crípticas como “que farei quando tudo arde”,
suspeita de incendiário que cita um tipo com nome nas ruas Sá de Miranda. Será
que ele pensa incendiar alguma coisa na Rua Sá de Miranda? Embaixada,
escritório, loja? O “pide” procura na Rede o que é que há na Rua Sá de Miranda
de Lisboa, Porto, Coimbra. Que trabalheira, tanta Rua Sá de Miranda. Ou será
uma escola secundária, ou será uma pessoa?
Depois, vêm os
dados do almoço e do jantar, o que comeu, com quantas pessoas comeu. Uma é
suspeito, duas é ainda mais suspeito, três começa a conspiração. A seguir
chegam os dados da farmácia e, mais importante ainda, da Via Verde. Onde entrou
e onde saiu, quanto tempo demorou. Parou numa área de serviço para ter um
encontro, ou para entregar sub-repticiamente um pacote? Acede-se então às
câmaras de vigilância. Saiu no Porto, será que a Rua Sá de Miranda onde “tudo
arde” é no Porto? Bom, há ali umas instalações universitárias, e perto está o
Jardim da Arca de Água e, como ele comprou o Ambientalista Céptico, será
que vai envenenar
os patos? O “pide” toma nota para posterior investigação. E por aí adiante.
A questão é simples:
se houver uma deriva autoritária (e em muitos aspectos estas tecnologias
“empurram” para essas derivas), o “pide” moderno não precisa de qualquer lei
especial, só acesso. O “pide” lastima-se mentalmente pelo facto de os humanos
ainda não terem chips como os cães e passa em revista os mil e um
argumentos de eficácia que justificariam os chips. O problema é que os
cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha
médica e o número fiscal metido no corpo.
Os cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha médica e o número fiscal metido no corpo
Como nos
defendemos? Deixando de lado, ir para uma zona sem rede, não usar multibanco
nem telefone, não ter conta bancária, etc., etc., e mesmo assim tudo
imperfeito, não há defesa possível. Este é o mundo onde nascemos e onde vamos
morrer, e nesta matéria é mau, muito mau, destruiu duzentos anos de luta pela
privacidade, pela individualidade e por direitos dos cidadãos face ao Estado.
Pode tudo ser mitigado, mas de forma pouco eficaz.
O “pide”
anotou: atenção, ele está denunciar os nossos métodos, e vai à ficha
electrónica e classifica-o como “libertário tecnológico”, partidário do general
Ludd, ou um seguidor do Unabomber. Perigoso.
O autor é
colunista do PÚBLICO
https://www.publico.pt/2023/04/01/opiniao/opiniao/pide-moderno-2044611