sábado, 29 de abril de 2023

Bárbara Reis - A culpa também é dos jornalistas

OPINIÃO COFFEE BREAK

Como é que o 25 de Abril foi mostrado na TV? Contar os segundos dados ao partido ajuda a perceber o “efeito Chega” nos media. Mas é preciso mais.

* Bárbara Reis
29 de Abril de 2023, 6:52

Quando não sabemos responder a uma pergunta, dizemos que “dava uma tese de doutoramento”. Ou seja, que é preciso tempo e trabalho para procurar a resposta.

É o caso da cobertura que os media fazem do partido português da direita populista e radical com assento parlamentar. Dão os media demasiado atenção ao Chega, “uma atenção desproporcional em relação ao que eles representam na nossa vida”, como disse no 25 de Abril o primeiro-ministro António Costa?

Regresso ao tema porque, na quarta-feira, alguns leitores escreveram-me para partilhar bons argumentos.

A melhor “carta” que recebi foi a de uma leitora com uma sensibilidade particular para o tempo.

Diz ela que não vê “muita televisão”, mas que ouve rádio e, na rádio pública, há muito que dá consigo a pensar: “Será que o que André Ventura pensa é assim tão relevante? Será que não estão os jornalistas inconscientemente a cair no risco de dar-lhe tempo, sem perceber que é apenas uma forma de populismo ele achar tudo mal, errado e ‘uma vergonha’, e insistir que tem sempre algo a dizer, mesmo que seja a repetição do que disse há dois ou três dias?”


É uma boa pergunta. Com essa dúvida, a leitora decidiu contar os segundos que a rádio pública dá ao Chega, isto no Inverno, “muito antes do escândalo da TAP e da figura triste que, mais uma vez, Ventura fez no 25 de Abril”.

Há uns meses, num domingo ao fim da tarde, “resolvi contar os segundos que lhe deram num noticiário na Antena 1”.

Resultado? Ventura “teve três vezes mais tempo do que Costa”. Nesse noticiário, o primeiro-ministro falou 20 segundos e o líder do Chega falou “quase 60, dividido em várias entradas”, escreve a leitora.

Que conclui: “Acho sinceramente que tem tempo a mais... Se alguém se desse ao trabalho de analisar isto enquanto simples dados estatísticos, a conclusão poderia ser assustadora sobre o poder que lhe está a ser oferecido pela antena aberta. Parece-me que tal não acontece proporcionalmente com mais nenhum partido, como o Bloco de Esquerda [BE], o PCP, a Iniciativa Liberal [IL] ou o PAN... Os segundos dados às declarações de Ventura são muitas vezes completamente desproporcionais ao resto do noticiário.”

Inspirada nesta “carta”, vi agora três noticiários do dia 25 de Abril com um cronómetro ao lado.

Os factos: de manhã, na Assembleia da República (AR), falaram Augusto Santos Silva e Luiz Inácio Lula da Silva; os 12 deputados do Chega ficaram de pé durante toda a sessão com cartazes a dizer que o presidente brasileiro devia estar na “prisão” e bateram com as mãos nas mesas sempre que alguém o aplaudia; Santos Silva irritou-se e disse, de dedo em riste, “chega de degradarem as instituições, chega de porem vergonha no nome de Portugal”; houve duas manifestações nas laterais do Parlamento, uma a favor de Lula, outra contra Lula; à tarde, falou o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e todos os partidos com assento parlamentar, e milhares de pessoas desceram a Avenida da Liberdade com cravos ao peito.


Mais coisa, menos coisa, o dia foi assim. Como é que isto foi mostrado nos noticiários nobres das televisões?

Na RTP, o Telejornal das 20h abriu com o discurso de Rebelo de Sousa e deu-lhe mais de três minutos seguidos, incluindo 93 segundos de discurso directo. A seguir, vem Santos Silva, com 1min83s, dos quais 70 segundos são excertos directos.

A manifestação do Chega dentro do hemiciclo da AR apareceu ao minuto cinco e ocupou três minutos: o bloco foi preenchido com imagens dos deputados do Chega, o raspanete de Santos Silva, a irónica vénia de Lula aos deputados do Chega e o seu comentário ao que acontecera (“foi ridículo”).

A seguir, veio um bloco de 17 segundos dedicado aos manifestantes pró-Lula e um bloco de 40 segundos dedicado aos manifestantes do Chega que protestaram contra Lula. Desses 40 segundos, Ventura falou em discurso directo durante 15 segundos.

Seguiu-se o bloco sobre a intervenção de Costa no jardim de São Bento, onde inaugurou uma escultura de Rui Chafes e comentou o incidente da manhã na AR, criticando o Chega e os media. Durou pouco mais de 10 segundos.

Ventura regressou em discurso directo aos 20min5s, a dizer que Costa devia “arrumar as malas” e mudar-se para o Brasil. Isso entrou no bloco dedicado às intervenções dos deputados na sessão solena do 25 de Abril, à tarde.

Foi nesta ordem e com estes tempos:

— Joaquim Miranda Sarmento (PSD) falou durante 15 segundos;

— Rui Rocha (IL) falou 14s;

— João Torres (PS) falou 19s;

— Ventura falou 18s;

— Catarina Martins (BE) falou 20s;

— Manuel Loff (PCP) falou 9s;

— Rui Tavares (Livre) falou 6s, e

— Inês Sousa Real (PAN) falou 9s.

Pelo meio, houve o bloco dos Passos Perdidos, onde os partidos fazem declarações aos media. Isso passou-se à tarde, já eu tinha saído da AR, por isso não sei que perguntas foram feitas. Sei que o excerto da RTP só os mostra a comentar a “manifestação” do Chega da manhã.

A cobertura da RTP das comemorações do 25 de Abril durou 21min42s e terminou com o improviso — que “não estava no guião”, diz a voz off — dos deputados a cantaram a Grândola, Vila Morena enquanto Rebelo de Sousa e Santos Silva saem do hemiciclo.

Há uma coisa óbvia a dizer sobre este telejornal da RTP: fiquei com uma visão clara, ampla e plural sobre o que aconteceu.

Outra é que Ventura falou duas vezes, num total de 33 segundos, coisa que mais nenhum deputado conseguiu.

E a terceira é que o Chega só juntou 200 pessoas para protestar em frente ao Parlamento — longe da “maior manifestação de sempre” que anunciara —, mas a produção populista que inventou para o dia ocupou cinco dos 20 minutos de cobertura da RTP.

Ventura falou 33 segundos, mas muitos outros segundos foram sobre o que ele fez, sobre as críticas ao que ele fez, sobre as consequências negativas para o país do que ele faz.

Na CNN-Portugal, talvez o extremo oposto da RTP, como foi? O noticiário das 21h começou com...?

Exacto: com o protesto do Chega.

A seguir, vi o jornal da meia-noite, para ver se a CNN manteria o alinhamento. É um noticiário interminável. O protesto do Chega surge à 1h32, depois de um primeiro e longo bloco sobre o 25 de Abril, depois do anúncio da candidatura de Joe Biden à presidência dos EUA e depois da guerra na Ucrânia.

Há dias disse que a principal responsabilidade pela ascensão do Chega é do Chega, que se comporta sem respeito e sem urbanidade, com má-criação, misoginia, mentiras, ameaças e gestos ordinários — e com isso atrai eleitores frustrados e infelizes, mais os saudosistas do salazarismo, e tem a atenção dos media.

Disse que uma parte da responsabilidade também é dos políticos, à esquerda e à direita. Faltou dizer que também é dos jornalistas.

Este exemplo é uma amostra minúscula e não representativa do problema. Seria necessário o tal doutoramento — e o levantamento sistemático dos segundos e do espaço editorial dedicado ao Chega nestes cinco anos — para saber se é de facto desproporcionado o tempo de antena dado ao partido.

Mas é inútil enxotar o problema para o “outro”. Seja o “outro” quem quer que seja.


Redactora principal

https://www.publico.pt/2023/04/29/politica/opiniao/culpa-tambem-jornalistas-2047851


terça-feira, 25 de abril de 2023

Manuel Loff . Discurso em nome do PCP, na sessão de celebração do 25 de Abril na AR

«Praticamente meio século depois do 25 de Abril, a democracia está sob ameaça»

 * Manuel Loff


Senhor Presidente da República,

Senhor Presidente da Assembleia da República,

Senhor Primeiro-Ministro,

Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo,

Senhor Representante dos Capitães de Abril, Senhoras e Senhores convidados,

Senhoras e Senhores deputados,

“Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.” É assim que no Preâmbulo da Constituição da República se descreve o que foi o 25 de Abril. Ao contrário da grande maioria dos processos democratizadores que lhe foram contemporâneos, desde a Grécia e a Espanha até à América Latina, a libertação de Portugal em 1974 da longa ditadura fascista de 48 anos foi, não uma transição mais ou menos arrancada a ferros de dentro de uma ditadura em fase degenerativa, mas uma Revolução, exatamente como são descritas as grandes mudanças políticas da modernidade, justamente porque nela se rompeu definitivamente com o passado, se abriu as portas aos anos de maior participação política e social que os portugueses alguma vez viveram e porque dela saiu uma mais arrojadas democracias do mundo, em que, em simultâneo, se rompia com séculos de sangrentas ilusões imperiais e de opressão social e política.

A Revolução portuguesa que hoje aqui comemoramos, contudo, não é feita simplesmente memória. Muito pelo contrário: quando dizemos “25 de Abril sempre!” estamos a dizer que não renunciaremos em cada dia que passa ao que se conquistou em Abril – direitos, liberdades e garantias cívicas que não aceitaremos nunca mais ver restringidas, direitos sociais como os de uma educação, um SNS e uma Segurança Social públicas, que assegurem o bem estar de todos e não apenas de alguns, como continuará a ocorrer se não cumprirmos o que acordámos quando aprovámos a Constituição de 1976. O direito a defender publicamente os nossos direitos enquanto cidadãos e trabalhadores, a nos manifestarmos livremente para o fazer. O direito a defender a paz contra a guerra, hoje como há 50 anos. O direito a dizer, hoje como então, “Fascismo nunca mais!”

Retomar a memória de uma das mais extraordinárias e generosas revoluções da história, retomar a memória da resistência e do que ela permitiu conseguir, tem hoje, em 2023, um papel muito prático: reforça a capacidade de resistência e de exigência de mudança, porque se já foi possível conseguir o que, há 50 anos, a maioria achava ser impossível ou inviável conseguir, significa que se pode voltar a conseguir o que o novo pensamento único dos nossos dias nos quer convencer ser impossível realizar.

Praticamente meio século depois do 25 de Abril e das melhores esperanças que nele depositaram milhões de portugueses, milhões de democratas por todo o mundo que sentiram a nossa Revolução como sua, a democracia está sob ameaça. Em todos os lugares, a começar por Portugal, onde reiteradamente se não cumprem as naturais, justíssimas, expectativas de quem espera que a democracia seja sempre acompanhada de bem estar e de justiça social, de direitos universais à saúde, à educação, à habitação, ao trabalho com direitos e garantias, de salários e pensões dignos, do direito a uma infância feliz longe do espetro da pobreza, a uma velhice com dignidade e qualidade de vida. Sempre que algum ou todos estes direitos se não concretizam nas nossas vidas, alimenta-se a descrença na democracia e esta estará sempre ameaçada. Sempre que o autoritarismo patronal precariza impunemente a vida de quem trabalha, chantageia os trabalhadores para impedir que se sindicalizem, que defendam, que exerçam os seus legítimos direitos, a democracia, mais do que ameaçada, é atacada. Não podemos andar a lamentar a baixa participação eleitoral e fingir não perceber a que esta se deve. Não pode quem tem responsabilidades de governo comemorar o 25 de Abril, a Revolução e a democracia e ao mesmo tempo deixar degradar a condição de vida dos portugueses depois de se terem enterrado incontáveis recursos públicos no apoio aos grandes grupos económicos e financeiros ou a cativar dinheiro do Estado, de todos nós, para lograr as chamadas “contas certas”, as mesmas que nunca estarão certas sem se assegurar condignamente o funcionamento dos serviços públicos de que se faz para todos nós a democracia no dia a dia.

A democracia está há anos ameaçada, de novo, pelo fascismo de cuja sombra nos julgávamos ter libertado por todo o mundo há 80 anos, ou, justamente, há 49 anos em Portugal. É ilusório julgarmos que o assalto da extrema-direita fascista está a fazer ao poder deixa incólume a democracia. O exemplo da luta que os democratas brasileiros tiveram de travar para, graças à extraordinária persistência humana do Presidente Lula da Silva que aqui esteve presente esta manhã, derrotar o que foi a maior ameaça, absolutamente real, contra a democracia brasileira desde o fim da ditadura civil-militar, diz bem dos perigos que a extrema-direita representa. Violência e ameaças sobre adversários políticos, ataque aos direitos sociais e cívicos, assassinato de ativistas. Importa, pois, que quando se celebra a democracia e a liberdade não se desvalorize o significado desta ameaça, trivialize a mentira, a manipulação, o racismo, o branqueamento dos crimes e da violência fascista e colonial do passado, o oportunismo descarado ao fingir defender hoje o que no passado sempre rejeitou.

Permitam-me que me dirija diretamente a todos e todas as cidadãs do meu país e a todas as pessoas que, independentemente da sua nacionalidade, aqui constroem o seu futuro. O 25 de Abril foi feito para todos nós que aqui estamos 49 anos depois. Foi feito pelos militares de Abril cansados de guerra a quem devemos o ato fundador do resgate deste país da ditadura, da guerra e do colonialismo. Foi feito por gerações de resistentes, e os comunistas em primeiro lugar, que deram o melhor de si, e tantas vezes a própria vida, para conseguir liberdade e direitos, uma sociedade justa com os valores que a Constituição de Abril consagrou. O 25 de Abril tem agora de continuar a ser feito por nós, por quem acredita nesses valores que permanecem, sabemo-lo hoje melhor do que nunca, a solução para os problemas estruturais do nosso país. As multidões saem por estes dias à rua para celebrar a Revolução fazem-no com a força inesgotável dos valores de Abril. Fazem-no recordando que não há democracia sem justiça social, exigem respeito pelos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos jovens, de todos independentemente da sua origem étnica e identidade de género, dos reformados que trabalharam para o bem estar das gerações que se lhes seguiram e que hoje têm direito à solidariedade de quem trabalha e ao respeito do Estado. A Grândola de Zeca Afonso, a “terra da fraternidade” onde “o povo é quem mais ordena” tem de ser cada uma das nossas cidades e aldeias de um país verdadeiramente democrático.

Viva o 25 de Abril!

Fonte: https://www.pcp.pt/nao-renunciaremos-em-cada-dia-que-passa-ao-que-se-conquistou-em-abril

sábado, 22 de abril de 2023

José Pacheco Pereira - Derrubar o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (I e II)


* José Pacheco Pereira

Opinião  -  Derrubar o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (I), por José Pacheco Pereira 15 de Abril de 2023

Misturam-se coisas sérias com trivialidades, porque o que conta é criar uma ecologia tóxica, e não a relevância do que se “denuncia”. O que conta é a repetição, o estilo e o DR

1. Este é um artigo que escrevo por alguma coisa parecida com o dever. Preferia não o fazer. Exactamente porque vivemos na ecologia tóxica em que vivemos, é fácil fazê-lo dizer aquilo que ele não diz. Mas vale a pena correr esse risco.

2. Não se indignem com a palavra estuporar. É sólido português e nem sequer é um plebeísmo, só caiu em desuso porque hoje falamos com cada vez menos palavras, ficando com isso cada vez mais pobres. Mas é mesmo o que eu quero dizer com a exacta palavra. Vivemos hoje um momento em que para obter ganhos políticos contra o Governo se cria um ambiente tóxico de radicalização em que vale tudo desde que daí possa vir prejuízo para o actual Governo socialista de António Costa. O efeito principal não será sobre os governos, que vão e vêm, será sobre a democracia. É ela que, pelo caminho, está a ser estuporada pelo “vale tudo” actual e pela incompreensão de que há hoje um efeito de ampliação com mecanismos de desgaste no interior das democracias que são novos. Fazer o que está a ser feito é hoje muito mais perigoso do que no passado.

3. É fácil insinuar que o que me preocupa é a sorte do Governo e que isso é situacionista. Não é verdade. Não me esqueço de que o Governo é um governo medíocre, com raras excepções, porque há excepções. Muito do que hoje facilita a corrosão da democracia deve-se ao Governo e às suas asneiras, que nem sequer percebe o mal que está a fazer e a permitir que se faça. É este segundo aspecto que me interessa, o do “permitir que se faça”, porque hoje o situacionismo é participar e alimentar neste ar tóxico em que estamos envolvidos. O Governo e a sua sobrevivência são o menor problema.

4. Dito isto, também não esqueço um aspecto fundamental da democracia que é a forte legitimação de um governo que tem uma maioria absoluta. Enquanto não houver eleições que mudem o peso relativo político dos partidos e dêem a outros a legitimidade do poder, não são as sondagens que são critério, nem sequer a nuvem de “casos e casinhos”, desde que a justiça funcione para os “casos”, a liberdade de escrutínio para os “casinhos”, e não haja perturbação no funcionamento das instituições, como não há. Os apelos à dissolução da Assembleia e ao derrube do Governo são mais um elemento da radicalização. Não há comparação possível entre as “trapalhadas” de um governo com escassa legitimidade política, ainda por cima herdada, e as de um governo com uma sólida maioria parlamentar, com uma oposição frágil e dividida. Se houvesse dissolução da Assembleia na actual situação, não teria qualquer precedente válido. Deste ponto de vista, o Presidente tem actuado correctamente.

5. O problema é que, com o objectivo de se derrubar o Governo a todo o custo, está a estragar-se a democracia. É um truísmo perigoso achar que a democracia aguenta tudo. Não estamos a falar do dever do escrutínio nem de análise, que é sempre bem-vinda, estamos a falar de campanhas políticas e politizadas usando a comunicação social. A comunicação social teve uma enorme viragem à direita que começou durante o Governo Passos-Portas-troika e se radicalizou com a maioria absoluta do PS. Onde antes a esquerda tinha a hegemonia, hoje o dinamismo político encontra-se à direita que ocupa a parte de leão, por exemplo, do comentário político na televisão, na rádio e nos jornais. O efeito de repetição e a saturação de temas, motivos e, acima de tudo, alvos são hoje definidos à direita, mas esse é apenas o pano de fundo de um processo que tem outra dimensão e, acima de tudo, outros métodos. São esses métodos que estão a estuporar a democracia criando uma elevada toxicidade na acção política.

6. O pretexto parte muitas vezes de “casos” reais, mas que são inseridos num fluxo que não é nem informativo, nem comunicacional, mas politicamente instrumental. O clima é persecutório. Deixou de haver a presunção da inocência, e os desmentidos, mesmo quando revelam mentiras e manipulações grosseiras, ou quando significam a conclusão judicial pelo arquivamento por falta de provas ou a absolvição, raramente são noticiados ou são remetidos para um fundo de página. Há alvos a abater, que uma vez abatidos passam a mira para outros alvos. Há técnicas de saturação que misturam coisas sérias com trivialidades, porque o que conta é criar uma ecologia tóxica, e não a relevância do que se “denuncia”. Tudo é, aliás, tratado do mesmo modo, porque resulta tratá-lo do mesmo modo. O que conta é a repetição, o estilo e o tom.

Há críticas com razão? Certamente que há, mas a duplicidade de critérios, o andar para trás e para a frente, tem uma única constante: o alvo

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7. Toda uma panóplia de técnicas de manipulação, duplos critérios, sanha persecutória, sugestões de ilegalidade quando não existem ilegalidades, interpretações ad terrorem, ataques contra as pessoas e seus familiares, mecanismos em círculo vicioso – ou falou de mais e não devia ter falado, ou falou de menos e devia falar mais, ou não falou e devia ter falado, ou falou mas não disse nada, ou está silencioso porque tem culpa – e o arsenal clássico da sugestão da falsidade e da omissão da verdade. E não é só o que se diz, é também o que se cala, omite ou minimiza. E é o tempo da fala – falou hoje mas devia falar ontem, falou ontem mas devia ser hoje, foi com aquele pretexto mas devia ser com outro, etc. –, é um labirinto sem saída. No meio disto tudo há críticas com razão? Certamente que há, mas a duplicidade de critérios, o andar para trás e para a frente, tem uma única constante: o alvo. E a escolha e o modo de tratamento do alvo são puramente políticos.

8. A politização panfletária de quase toda a comunicação social tem efeitos perversos no próprio funcionamento da democracia, gerando um ambiente de permanente excitação, em que predomina o pathos e perde o logos.

(Continua...)

O autor é colunista do PÚBLICO

Daniel Oliveira - Cada vez menos inteligentes

* Daniel Oliveira

A meteorologia foi das primeiras a usar inteligência artificial (IA) para modelos de previsão. E, no entanto, como explica João Gabriel Ribeiro, diretor da “Shifter”, mesmo sendo uma ferramenta indicada para o fazer, a IA “não seria capaz de perceber se está a chover ou o significado da chuva de um modo geral” além do que pode ser traduzido em dados, através de um modelo prévio. Como a IA “nunca se molhou” nunca saberá mais do que a “descrição do que é estar molhado”. Por isso, conclui: “Aquilo que conhecemos por IA é cada vez menos similar à nossa inteligência.” Há, no temor de a nossa inteligência ser substituída por máquinas, algum desrespeito por ela. Se perguntarmos ao ChatGPT como resolver os problemas da habitação ou da inflação ele vai dar as respostas que mais encontra no espaço público, por serem as mais prováveis. Só parecem neutras porque são plausíveis. Não as vai pôr em causa ou verificar se as soluções resultaram. Num processo opaco, até para quem o concebeu, pode oferecer-nos o erro sem se socorrer do mecanismo mais humano da inteligência: a dúvida. O que a IA faz é replicar a nossa mediania com a arrogância do acesso quase ilimitado a bases de dados.

Quem acha que o jornalismo pode ser substituído por isto é porque assumiu que ele dispensa a incerteza para oferecer a resposta provável, mesmo que seja falsa. Pode ser assustador fotografias geradas por IA vencerem concursos, mas, para se falar de arte, o fundamental continua a ser o mesmo de sempre, dependente da inteligência humana e muito para lá da técnica: ter alguma coisa improvável para dizer. Os professores não receiam que a IA simule a capacidade de pensar diferente, de pôr em causa, de inovar. Receiam que chegue para replicar a formatação que a escola impõe a adolescentes desmotivados da sua criatividade para se alinharem com a mediania. Claro que temos de treinar capacidades básicas. As que nem as calculadoras deveriam substituir. Mas se a máquina pode tomar o lugar do aluno, a escola obstinada com a memorização não andará a ser pouco exigente com os jovens cérebros? Se a escola treina para repetir, qualquer computador a substituirá. Se a inteligência humana pode ser vencida pela inteligência artificial, quando esta dá os primeiros passos, é porque lhe andamos a dar pobre uso.

A tecnologia oprime em vez de libertar porque a sociedade assim está organizada. Para vencer os perigos da máquina não se destrói a máquina, mas as relações de poder que a põem ao serviço da opressão. Seremos dominados pela IA porque, neste capitalismo, estamos reduzidos a ser produto e produtores. O problema não é tecnológico, é político

Não quero parecer otimista. Não podia estar mais longe do deslumbramento tecnológico que mais não é do que o deslumbramento pela desumanização da vida. Não tenho qualquer ilusão sobre a nossa capacidade de dominar o monstro de Frankenstein porque não tenho qualquer ilusão quanto à capacidade deste capitalismo nos libertar da condição de produtos e produtores. Seremos dominados porque já o somos. Não deixámos que os algoritmos das redes sociais controlados por ditadores da estupidificação geral determinassem o rumo das democracias? Não permitimos a complexificação desregulada de um sistema financeiro que nos atira para crises sucessivas? Não estamos a entregar o monopólio estatal da criação de dinheiro ao submundo das criptomoedas? Não foi por desistência dos Estados que o desenvolvimento da IA tenha acontecido, ao contrário do que era habitual, sem financiado e enquadramento público?

Recordo-me da clonagem da ovelha “Dolly” ter levado a um debate transversal e à imposição de limites. Nada a ver com um abaixo-assinado a pedir seis meses de espera para avaliar os riscos da IA, que conta com o nome de Elon Musk, envolvido no financiamento inicial da OpenIA e que está a preparar uma startup rival. Quem tem recusado a transparência e a regulação do Twitter está preocupado com a distopia de uma tecnologia sem freio ou com o seu lugar nessa distopia?

Não sou nem tecnoentusiasta, nem ludita. Sei que a tecnologia tende a reforçar as relações de poder que existem. Para vencer os perigos da máquina não se destrói a máquina, destroem-se as relações de poder que a põem ao serviço da opressão. Não foram as plataformas de distribuição e serviços que transformaram a proposta de uma economia colaborativa em instrumento de promoção do empreendedorismo escravo. Foi a castração do papel regulatório dos Estados e a perda de poder de sindicatos e trabalhadores. A tecnologia serve para oprimir em vez de libertar porque a sociedade assim está organizada.

Li, num texto de Francisco Mendes da Silva, que, segundo um estudo da Universidade de Oxford e do Future of Life Institute, os investigadores da IA acham que o seu trabalho tem, em média, 10% de probabilidades de conduzir a Humanidade à extinção. O que quer dizer que há muita gente convencida que está a trabalhar para o fim do mundo. E, na realidade, são otimistas. As alterações climáticas estão a correr mais depressa para a nossa extinção e chamamos histéricos aos jovens que as tratam como uma questão de vida ou de morte. E nada fazemos para controlar a ganância de banqueiros ou regular o faroeste das redes sociais com as regas que tínhamos como óbvias em sociedades democráticas. Se caminhamos para a extinção, o problema não é tecnológico, é político.

https://expresso.pt/opiniao/2023-04-20-Cada-vez-menos-inteligentes-6000469d

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Livros rejeitados pelos críticos

2023 04 21
 
QUANDO OS ESPECIALISTAS E A CRÍTICA ERRAM FEIO
OS AUTORES RECUSADOS
Umberto Eco em seu livro de conferências 'A Memória do Vegetal e Outros Escritos sobre Bibliofilia' conta histórias ótimas de erros cometidos pelos editores ou especialistas contratados por eles, a fim de selecionar autores e livros de talento.
Eis a lista, para nosso escrutínio pessoal.
-- em 1851, 'Moby Dick' foi recusado na Inglaterra mediante a seguinte avaliação: 'É longo, de estilo antiquado e não vai funcionar".
-- em 1856, 'Mme. Bovary' de Flaubert foi recusado com uma carta: 'Cavalheiro, o senhor sepultou seu romance num cúmulo de detalhes que são bem desenhados mas supérfluos ".
-- Em 1862, Emily Dickson foi rejeitada com o argumento de que "todas as suas rimas são erradas".
-- Em 1901 Henry James teve 'A Fonte Sagrada' rejeitada com o veredito: " não venderia 10 exemplares".
-- Em 1916 James Joyce teve 'Dedalus' rejeitado com o seguinte argumento: "No final do livro tudo se desintegra... tudo explode em fragmentos meio úmidos como polvorim molhado" (bizarro!).
-- Em 1920 Scott Firzgerald tem seu 'Este lado do Paraíso ' rejeitado: "A história não chega a uma conclusão ".
-- em 1931 'O Santuário de Faulkner é rejeitado: " Meu Deus, se publicarmos isso acabaremos na prisão ".
-- Em 1945, 'A Revolução dos Bichos' foi rejeitada: "Impossível vender histórias de animais nos Estados Unidos".
-- Em 1955, 'Lolita' de Nabokov foi rejeitado com a recomendação de que deveria ser 'sepultado por mil anos', pois embora fosse de bela escritura continha cenas nauseantes que só deveriam ser contadas a um analista.
Gostou? Tem muito mais no curioso livro de Eco que definitivamente coloca em cheque tanto os 'especialistas' quanto a crítica literária, incentivando os autores a persistirem e a nós leitores nos tornarmos independentes da 'opinião institucionalizada'.
Recomendamos!

Humberto Eco - A Memória do Vegetal e Outros Escritos sobre Bibliofilia

António Guerreiro - O algoritmo diabólico,

Crónica Acção Paralela  -  

* António Guerreiro  

21 de Abril de 2023

A ideia de que se começa pela junk fiction e se evolui na exigência até que um dia se chega ao Joyce é uma piedosa invenção que até os “agentes culturais” difundem com alegria.

Através de artigos e reportagens que, nos últimos tempos, surgiram na imprensa (inclusivamente neste jornal), ficámos a saber que os jovens, por meio do TikTok, contribuíram de maneira significativa para o aumento das vendas de livros, provocando algum entusiasmo na indústria editorial. Este fenómeno não tem fronteiras e há já algum tempo que foi identificado em vários países. A sua história vem de trás, mas acelerou e ganhou mais força com o lançamento, em 2017, do TikTok, uma rede social que está a meio caminho da plataforma de conteúdos do tipo Netflix.

Esta rede vinda da China instaura uma mistura complexa que se situa entre o privado e o público e revelou-se muito apta para a produção de tendências e de códigos tribais, na medida em que oferece um uso mais passivo do que as outras redes sociais e potencializa a lógica da “viralidade”. Tornou-se assim um instrumento poderoso na relação dos jovens – os seus utilizadores preferenciais – com o mundo. O algoritmo do TikTok tem a fineza de identificar com sofisticação analítica os interesses de cada um, os medos e obsessões, categorizando assim uma personalidade nos seus aspectos mais privados, fornecendo-lhe o que se adapta a ela, quase entrando na intimidade dos utilizadores. É um algoritmo capaz de encadear uma série ultrapersonalizada de vídeos (TikTok é uma rede que incita a criar vídeos e a fazer deles o motor da máquina) e recomenda-os “para ti”, de maneira ininterrupta. Tem, por isso, um forte poder adictivo.

De um modo geral, as reportagem e artigos sobre o TikTok enquanto factor adjuvante da indústria do livro têm um tom optimista e de entusiasmo: porque se vendem mais livros e porque os jovens são incitados à leitura. É certo que em nenhum momento alguém diz que os influencers do TikTok e outras redes promovem a leitura de grande ou mesmo da pequena literatura. Mas a ideia, por mais que ela já tenha sido desmentida em muitos estudos, de que se começa pela junk fiction e se evolui na exigência até que um dia se chega ao Joyce, é uma piedosa invenção que até os “agentes culturais” difundem com alegria. Até parece que não há pelo menos uma pequena questão a atravessar-se no caminho: o livro, que desde a invenção da imprensa foi visto como um medium glorioso que alimenta o nosso poder reflexivo e, por isso, é um factor de liberdade e emancipação, encontra-se assim projectado num mundo organizado pelos algoritmos.

É verdade que seria muito ingénuo manter hoje uma concepção do livro que herdámos do Iluminismo. Essa concepção pertence ao passado. Mas a cegueira em relação às consequências da algoritmização é ainda mais escandalosa quando se trata do medium-livro e deve fazer reflectir sobre os efeitos que isso tem sobre as espécies bibliográficas e o património literário que – em princípio não há quem não concorde – é preciso divulgar e preservar para termos um “espaço público” que não seja conformado a uma paradoxal e totalitária algoritmização da liberdade que vira o liberalismo contra si mesmo.

À primeira vista, o TikTok parece uma coisa simples, uma rede que cumpre com a eficácia que nenhuma outra jamais alcançou as exigências de uma economia da atenção – o bem mais precioso e mais disputado do nosso tempo. Mas, como observou um ensaísta francês, Chistian Salmon, num texto publicado na revista Slate (online), a coisa é muito complexa e dela se pode dizer o que Marx dizia de uma simples mesa quando se transforma em mercadoria: um objecto “cheio de subtilezas metafísicas e argúcias teológicas”.

O escritor, cineasta e ensaísta Alexander Kluge (cuja monumental Crónica dos Sentimentos podemos ler na tradução portuguesa que saiu em dois volumes, na BCF Editores) tem-se empenhado em alertar contra as “novas sereias”, essas “criaturas míticas que ocupam os perigosos recifes de Silicon Valley” (os seus alertas estavam virados para esse centro industrial da alta tecnologia, do capitalismo algorítmico, muito antes do aparecimento do TikTok).

As sereias de hoje, que têm o enorme poder de adivinhar os nossos desejos, são, diz Kluge, um “novo alfabeto” – um alfabeto binário. Recordemos que Alphabet é o nome da holding proprietária da Google. E onde há um algoritmo (que nós, os leigos, não sabemos como trabalha) é preciso que exista sempre um contra-algoritmo. E o contra-algoritmo que Kluge reclama é um poder poético, que vem também da teoria. É combinando tudo o que as artes podem produzir que se podem criar contra-algoritmos: “A arte é o advogado dos contra-algoritmos”, afirmou Kluge, certamente a pensar na sua formação de advogado.

Livro de recitações

 “A mulher de João Galamba”
Nome de uma figura assim referida, nos últimos dias, pela generalidade dos media.

À “mulher de César”, que atravessa os tempos e sobrevive como um espectro até ao nosso tempo, junta-se agora a “mulher do João Galamba”. A bem dizer, nem quis saber o que se passava com esta mulher e porque é que teve direito a uma efémera celebridade por via de uma afinidade conjugal. Mas no nosso tempo só quem é completamente impermeável a um certo arejamento é que não sente alguma estranheza e incomodidade na utilização deste genitivo objectivo. Não interessa se há razões para ele ser utilizado. Novos hábitos linguísticos tornam já exótica esta fórmula repetida: “A mulher de João Galamba”. Ah, a gramática dos novos tempos!

https://www.publico.pt/2023/04/21/culturaipsilon/cronica/algoritmo-diabolico-2046556



sábado, 15 de abril de 2023

Bárbara Reis - Boaventura e a nova palavra: ‘extractivismo intelectual’,

 OPINIÃO COFFEE BREAK -   por Bárbara Reis 

 15 de Abril de 2023

Nunca tinha ouvido “extractivismo intelectual”. É uma expressão nova para um problema velho. Vantagem em relação ao assédio sexual? É mais fácil de provar.

Dizem-me que na academia há pessoas nervosas com o caso Boaventura de Sousa Santos porque imaginam que a sua vez chegará em breve. Provavelmente é o que vai acontecer. Tem sido esse o padrão noutros países.

Enquanto esperamos — por novos testemunhos ou novos casos —, seria útil olhar para as acusações relativas à sua prática académica tout court, pelo menos as destacadas no livro Sexual Misconduct in Academia (Routledge, 2023).

Num capítulo desse livro, três antigas investigadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra — a belga Lieselotte Viaene, professora na Universidade Carlos III, Espanha; a portuguesa Catarina Laranjeiro, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e a norte-americana Miye Nadya Tom, professora na Universidade de Nebraska, EUA — acusam o sociólogo e director emérito do CES de aproveitamento intelectual.

Não sei se é uma acusação mais grave do que a de assédio sexual. Mas é uma mancha terrível que nenhum académico quer. Fere — e pode destruir — o próprio corpo de trabalho, a essência do que se faz numa profissão.

Também não sei se é verdade. Boaventura pode ter agido sempre de forma correcta em relação aos direitos autorais dos outros, pode ter agido bem só às vezes ou o aproveitamento intelectual pode ter sido o seu padrão.

Muitos académicos dizem que este é um velho problema da academia, cheio de armadilhas, falhas de comunicação, traições e vaidades, e que provoca atritos diários. Dizem também que são conhecidos, nas várias áreas, os investigadores que têm por hábito atrair para si os créditos dos outros.

Há em todas as profissões. Editores de jornais que acrescentam o seu nome à assinatura de notícias escritas pelos colegas jovens. Arquitectos donos de ateliers que registam a autoria de projectos só com o seu nome. Investigadores que se sentem injustiçados quando vêem o seu nome relegado para os agradecimentos no livro para o qual trabalharam meses.

O que parece óbvio é que, olhando para as duas questões éticas em debate, é mais fácil provar o aproveitamento intelectual do que o assédio sexual. É difícil e trabalhoso, mas é realista esperar uma conclusão taxativa, sem ambiguidade e sem margem para dúvida.

Falo do “extractivismo intelectual”, expressão que desconhecia até esta semana e que é usada pelas investigadoras no ensaio que deu origem a esta tempestade.

Percebe-se a origem: há o uso sistemático dos recursos naturais e há o uso sistemático dos recursos intelectuais. Recursos dos outros, bem entendido, em regra, os mais fracos. A expressão vem da crítica moderna ao colonialismo e ao uso que os impérios coloniais fizeram dos recursos naturais das colónias.

Boaventura, dizem as investigadoras, “poderá ser visto como um especialista em extractivismo intelectual”. Na prática, acusam-no de duas coisas: 1) publicar artigos e capítulos de livros usando o trabalho feito por jovens assistentes do CES a quem não pagou ou pagou mal e; 2) assinar textos sozinho, sem reconhecer os assistentes como co-autores e relegando-os para a página dos agradecimentos ou as notas de rodapé.

As investigadoras dizem que “esta má conduta explica como os professores-estrelas conseguem escrever por ano dezenas de artigos e capítulos de livros assinados só com o seu nome, ao mesmo tempo que dão conferências e masterclasses pelo mundo fora”. Uma alta produtividade só possível graças ao “extractivismo intelectual”.

Antes da questão técnica (como provar), a questão ética (as boas práticas). Falei com académicos experientes, incluindo catedráticos e directores de projectos com financiamentos de milhões de euros. Há regras simples, conhecidas e consensuais.

Por exemplo: se um iestigador assistente fez um mestrado ou um doutoramento sob a orientação do mestre e se partes desse trabalho aparecem num texto do mestre no qual o assistente não é identificado como co-autor, o mestre está a apropriar-se do trabalho do assistente. É o “extractivismo intelectual”.

Claro que à volta de alguns mestres célebres há jovens investigadores que “disputam o direito a levar a mala”. Sabem que a associação a um mestre com fama internacional cria currículo e ajuda a conseguir um contrato numa universidade. Estou a citar um académico que, há uns anos, num jantar do CES em Coimbra, viu com espanto jovens assistentes citarem à mesa, em voz alta, passagens de artigos de Boaventura, num esforço de lisonja ao chefe, ali sentado, que muito o impressionou.

Estou também a pensar na frase que otro académico me disse ontem: “Boaventura era um passaporte para uma vida boa.” Não há nada de errado em ser-se discípulo, seguidor e intérprete de um guru. O aprendiz vai mais longe, mas também leva consigo as ideias do guru, que assim vão mais longe também. Os dois ganham.

Isto ajuda a explicar algumas coisas, mas é lateral à tempestade.

De regresso à técnica. Como dizem os americanos, não é preciso um cientista espacial. As investigadoras falam em “inúmeras histórias”. Pois bem, veja-se uma a uma. Basta seguir o paper trail, ou seja, percorrer os documentos que mostram o historial de cada texto.

Hoje os bastidores dos textos têm uma pegada informática automática, inalterável e fácil de reconstituir.

Pode começar-se por perguntar quem se sente lesado. Seria o mais simples, pois cada investigador mostraria o que fez e o que, do seu trabalho, foi usado nos textos publicados por Boaventura. Muito, pouco, nada? E, a seguir, como foi registada a autoria.

Se ninguém se chegar à frente, pode analisar-se artigo a artigo, procurar os nomes nos agradecimentos e notas de rodapé. Isso implica contactar as pessoas, comparar e cotejar os textos. Há quem queira participar e quem não queira. Os que querem têm as provas.

Se foi publicada a tese de mestrado ou de doutoramento, é só comparar. Há bons softwares. Há partes iguais num artigo do mestre? São grandes ou pequenas?

Claro que, em ciência, vale o que se publica. Mas mesmo nos eventuais casos de assistentes que não publicaram, é possível provar a sua participação.

Imagine que um texto foi escrito a quatro ou seis mãos. Se foi no Google Docs — muito usado, pois permite várias pessoas escreverem e editarem um mesmo texto, acessível online e guardado numa nuvem —, basta ver o registo das acções. Tudo fica como marca de água: x escreveu o bloco tal no dia tal, à hora tal; y idem aspas; x de novo, etc. Se foi por email, há registo dos envios.

Explica uma académica: “Quando os jovens investigadores que orientamos são muito bons, incentivamo-los a publicar. A regra é assinarmos juntos: o jovem em primeiro lugar, o mestre em segundo. Sem o mestre, o trabalho não existiria (é o mestre que consegue financiamento para o projecto e é o mestre que guia o processo intelectual). Mas sem o investigador, não haveria aquele trabalho. Além disso, interessa ao jovem assinar em co-autoria com um mestre, pois é isso que lhe vai abrir portas, é um selo de qualidade. Nestes casos, a co-autoria é justa e correcta para os dois.”

Diz outra académica: “Quando não é assim, é porque o trabalho de equipa é só fachada.”

A questão é simples: dá trabalho, mas é possível reconstituir os projectos e os “bastidores” dos textos e ver quem fez o quê.

Outra coisa: tal como no assédio, é preciso que os que se sentem lesados avancem, contem as suas histórias e mostrem os seus papéis. O ar ficará mais limpo.

Redactora principal

https://www.publico.pt/2023/04/15/sociedade/opiniao/boaventura-nova-palavra-extractivismo-intelectual-2046172 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

José Pacheco Pereira - Um “pide” moderno

*  José Pacheco Pereira 

1 de Abril de 2023,  

As mais poderosas forças do mundo, boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo sentido e sem controlo.

PBX DR

Este é um artigo inútil. Nada do que aqui está, seja o que escrevi, seja o que “acontece” no que escrevi, muda alguma coisa. Se não achasse que é minimizar uma das figuras mais criativas da literatura, Dom Quixote de la Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura, podia usar a classificação comum de “quixotesco”. Mais: não só não muda nada, como vai ser cada vez pior. As mais poderosas forças do mundo, boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo sentido e sem controlo. O controlo é do domínio da pura ficção. Quem quer usá-las usa e infelizmente há muita gente a querer usá-las, a começar por aqueles que deviam ter consciência dos seus riscos. Há pouca coisa realmente mais apocalíptica nos dias de hoje do que isto. O que é “isto”?

Imaginemos um “pide” moderno, e há muitos “pides” modernos. Senta-se para o trabalho diante de um conjunto de ecrãs, ligados a várias bases de dados, usando quer programas comuns e motores de busca vulgares, quer especializados. Qualquer serviço pidesco pode hoje comprar, num mercado mais especializado, programas e motores de busca usados por polícias e ladrões, serviços de informação nacionais e internacionais, que procuram não só na superfície da Rede mas também na sua parte “negra”. Eu já os vi a funcionar e garanto-vos que nem imaginam o que encontram, dados e contexto.

O “pide” moderno é jovem, como os últimos recrutamentos da PIDE em vésperas do 25 de Abril, e nem sequer precisa de ser um nerd nem um hacker, mas apenas de saber usar os seus instrumentos, que tem diante dos olhos. A maior parte do que recolhe é legal, qualquer um o pode fazer, mas alguma parte está na fronteira do abuso e outra é mesmo ilegal. Se houvesse uma suspeita fundamentada de crime, podia ser autorizado, por um juiz, o acesso aos metadados ou a escutas, mas eu estou a falar da vigilância sobre as pessoas comuns e não sobre criminosos.

O “pide” moderno começa a registar os meus dados. Sai de casa – horas. Ele sabe onde moro e pode contar o tempo entre a saída e o próximo sinal recebido por causa do pequeno-almoço, a factura. A factura está cheia de informação que o Estado, através do fisco, se arroga de ter: na factura bastava o valor global, mas está muita outra coisa. Está o que comi e bebi, está se tomei o pequeno-almoço sozinho ou acompanhado.

Depois passo por um multibanco, e levanto dinheiro e faço pagamentos. Durante o dia todo, os cartões de crédito registam um rasto de acções que, acompanhado pelas facturas, já permitem saber muitas coisas. Quando Monica Lewinsky comprou uns livros para dar a Clinton, um deles, Vox, de Nicholson Baker, uma ficção em que há uma relação de “sexo telefónico”, isso interessou ao procurador que perseguia Clinton. A livraria recusou-se, e bem, em mais um acto quixotesco, a dizer que títulos de livros tinham sido comprados. Eu podia, como faço quase todos os dias, também ir a uma livraria, e mesmo sem comprar o Vox (que já tenho e li) alguns títulos podem sobressaltar o “pide”, que não é muito de livros, mas pode ir ver os resumos à Rede – por exemplo, o Agente Secreto, de Conrad, levantou-lhe as sobrancelhas tratadas, quando foi a um destes barbeiros tão modernos como o “pide”. Ou uns fanzines anarquistas com títulos bombásticos ou o Mapa ou a Batalha, já para não falar no Avante!. Ele aí ganha o dia, para colmatar a falta de material das redes sociais, em si mesmo uma falta suspeita, de quem não tem Facebook, nem Instagram, nem qualquer outro fluxo de fotografias de almoços, pequenas e grandes fúrias, boatos e calúnias, nem sequer frases crípticas como “que farei quando tudo arde”, suspeita de incendiário que cita um tipo com nome nas ruas Sá de Miranda. Será que ele pensa incendiar alguma coisa na Rua Sá de Miranda? Embaixada, escritório, loja? O “pide” procura na Rede o que é que há na Rua Sá de Miranda de Lisboa, Porto, Coimbra. Que trabalheira, tanta Rua Sá de Miranda. Ou será uma escola secundária, ou será uma pessoa?

Depois, vêm os dados do almoço e do jantar, o que comeu, com quantas pessoas comeu. Uma é suspeito, duas é ainda mais suspeito, três começa a conspiração. A seguir chegam os dados da farmácia e, mais importante ainda, da Via Verde. Onde entrou e onde saiu, quanto tempo demorou. Parou numa área de serviço para ter um encontro, ou para entregar sub-repticiamente um pacote? Acede-se então às câmaras de vigilância. Saiu no Porto, será que a Rua Sá de Miranda onde “tudo arde” é no Porto? Bom, há ali umas instalações universitárias, e perto está o Jardim da Arca de Água e, como ele comprou o Ambientalista Céptico, será que vai envenenar os patos? O “pide” toma nota para posterior investigação. E por aí adiante.

A questão é simples: se houver uma deriva autoritária (e em muitos aspectos estas tecnologias “empurram” para essas derivas), o “pide” moderno não precisa de qualquer lei especial, só acesso. O “pide” lastima-se mentalmente pelo facto de os humanos ainda não terem chips como os cães e passa em revista os mil e um argumentos de eficácia que justificariam os chips. O problema é que os cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha médica e o número fiscal metido no corpo.

Os cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha médica e o número fiscal metido no corpo

Como nos defendemos? Deixando de lado, ir para uma zona sem rede, não usar multibanco nem telefone, não ter conta bancária, etc., etc., e mesmo assim tudo imperfeito, não há defesa possível. Este é o mundo onde nascemos e onde vamos morrer, e nesta matéria é mau, muito mau, destruiu duzentos anos de luta pela privacidade, pela individualidade e por direitos dos cidadãos face ao Estado. Pode tudo ser mitigado, mas de forma pouco eficaz.

O “pide” anotou: atenção, ele está denunciar os nossos métodos, e vai à ficha electrónica e classifica-o como “libertário tecnológico”, partidário do general Ludd, ou um seguidor do Unabomber. Perigoso.

O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2023/04/01/opiniao/opiniao/pide-moderno-2044611