* Hugo Dionísio
7 de setembro de 2024
As eleições ocorridas na Turíngia e Saxónia, vistas como um referendo à governação Scholz/Baerbock e uma amostra do que aí virá em 2025, confirmaram a erosão do governo alemão, demonstrando que a “maldição de Zelensky” está bem viva. Quanto maior a proximidade com o ex-Presidente da Ucrânia e momentâneo ditador delegado, maior a probabilidade de queda de um governo. Trata-se de uma tendência quase inexorável.
Contudo, quase 80 anos depois do fim do terror nazista, vem o centro neoliberal pregar o medo do fascismo, como sua bandeira preferida. Enquanto amedrontam os seus povos com a AFD desta vida, apoiam o Banderismo na Ucrânia, o Milei na Argentina e golpistas de extrema direita na Venezuela. E com isto os apanhamos: a luta do centro neoliberal contra a extrema direita não passa de um torpor oportunista, em que uma casta privilegiada que se considera civilizada, não quer ser exclusiva por outra casta mais trauliteira.
E enquanto acenam com os perigos da “extrema direita”, eliminando quem lhe poderia dar realmente combate, não impedem, no entanto, a sua própria autodestruição, como acontece com o executivo de Sholz/Baerbock. Esta é também a história de muitos outros governos conotados com o centro neoliberal. Mas esta suscetibilidade autodestrutiva, constitui apenas a face visível – na Alemanha – de uma dinâmica social ainda mais profunda e que se identifica por toda a União Europeia, vivida ao longo de todo o século XXI, e que se impõe, a meu ver, através de 4 processos aceleradores críticos, criados/utilizados para produzir o efeito político que hoje observamos. Essa dinâmica, a não ser travada, conduzidaá, propositada e inexoravelmente, a uma nova farsa fascista, neofascista, como lhe queiram chamar.
O primeiro processo crítico acelerador do projeto neoliberal, na Europa, coincidiu com a “Guerra ao Terror” de Bush, em que embarcou toda a OTAN, na sequência de atentados em Espanha, Inglaterra ou França, traduzida na invasão do Afeganistão e Iraque, construção da Primavera Árabe e destruição da Líbia e Síria. É nesta sequência que se impõe um processo de sobrevigilância e centralização da informação e inteligência a partir de Washington, atribuindo aos EUA o poder de analisar, monitorizar e coordenar esforços ao nível da segurança e criar, nas populações, as condições subjectivas para a acessíveis do que viria em seguida: a vigilância em massa de todos os seus passos, a propósito da manutenção de sua segurança.
Outro momento crítico foi a crise financeira de 2008, que impôs o “Estado de Austeridade Permanente”, estabelecendo as leis para a ideia de que o amanhã, afinal, não será melhor do que o ontem – apenas para alguns -, acelerando o processo de destruição do estado social e operando uma maior transição de valor, entre classes, de que há memória na história recente e que se havia operado nos EUA e no Reino Unido, logo após o inominável “Consenso de Washington”. É com a crise de 2008 que o Consenso de Washington se torna, finalmente, política oficial da União Europeia. Ao longo deste tempo, os “investidores” americanos ocuparam posições dominantes em setores importantes, por toda a Europa.
O terceiro momento crítico foi o Covid-19, com a introdução do “Grande Reset” de Davos e toda a ideologia do “novo normal”. Individualismo exacerbado, narcisismo, migração interna, das regiões mais pobres para as mais ricas e imigração de fora, para dentro do bloco ocidental, desenraizamento da população da sua terra natal, cultura e língua, desaparecimento da malha social que confere coesão às sociedades. A “Uberização” destruiu as fronteiras econômicas restantes que resistiam. Uma empresa na Califórnia, opera no ocidente, a partir dos EUA, sem intermediários, sem gastar um tostão em logística local. Passando por cima de leis e de toda a soberania nacional, recolha dados, vendas, classificações e recolha de ganhos. Por outro lado, o Covid-19, acompanhado de toda a lógica de submissão a recolhimentos impostos, contenção dos movimentos e vacinação obrigatória, criou as condições subjetivas para a submissão acrítica a um modelo de governação.
Como se já não fosse suficiente, com a operação Ucrânia, varre-se dos países centrais da “Ordem Baseada em Regras” a última réplica de soberania: as forças armadas. Voltou a “interoperacionalidade” e, com ela, a uniformização do padrão OTAN, o que equivale a dizer, padrão EUA, comprado nos EUA, feito sob licença dos EUA. Estratégia e tática militar passam a ser desenvolvidas em Washington, em que os estados europeus não passam de postos avançados da “Ordem Baseada em Regras”.
Informação e inteligência; economia e finanças; organização social e política; defesa e segurança; São as dimensões que foram sendo centralizadas e consolidadas em cada um dos momentos críticos. Cada um destes 4 momentos representou um salto evolutivo na força com que os EUA dominam a Ordem Baseada em regras. Para o novo século, o espaço vital tem de estar consolidado, coordenado a partir de um centro reconhecido, criando um bloco, em que as relações são definidas para um todo orgânico. Tudo para preparar o confronto entre blocos. Os resultados econômicos e sociais deste processo de aprimoramento, direcionado à Europa e feito para o secundário, determinaram uma perda relativa de poder, sentido pelas populações e estes, não a saber explicar, canalizam essa frustração para quem a verbaliza como ninguém: a extrema direita . Perante a impotência, promessas adiadas e contradição entre discurso e prática, provenientes do centro neoliberal, a solução está em quem se mostra resoluto e eficaz, mesmo que brutal.
Façamos uma comparação histórica pertinente, para sabermos do que estamos a falar. O período em que nasce o fascismo no ocidente (sim, nos EUA havia apartheid para os negros e fascismo, mesmo com supostas eleições), a riqueza estava distribuída da seguinte forma: entre os anos 20 e 40 do século XX, após o “Primeiro Terror Vermelho nos EUA”, os 10% mais ricos ficavam com uma parcela situada entre 43% e 49% do rendimento em cada ano, os 1% mais ricos, ficavam com 19% a 22%, já os 50% mais pobres ficavam com uma parcela que ia de 14% a 15%. O World Inequality Report não possui dados agregados para a Europa, mas na França, os resultados também não eram muito diferentes dos que vemos para os EUA. No fundo, os EUA representavam a tendência das economias mais avançadas.
A primeira conclusão que retirar daqui é segura: o período de crescimento do fascismo no mundo ocidental coincide com um período de agravamento das desigualdades, de concentração de rendimento, de enorme concentração de riqueza e consequente agravamento das condições de vida e de trabalho. A resposta do sistema para esta crise e reivindicação para o aumento do poder dos trabalhadores que se organizavam em poderosos sindicatos, coincidiu com a criação do fascismo, o corporativismo (que defende a paz social por oposição à luta dialética) e a repressão. Referimo-nos ao termo “crise” quando assistimos a um agravamento das contradições resultantes da disparidade na distribuição de rendimento entre os mais ricos e os mais pobres
A derrota do nazi-fascismo mudou tudo! Nos EUA, logo em 1945, os 50% mais pobres passam a agregar mais rendimento do que os 1% mais ricos (15,8% para 14,2%), enquanto os 10% mais ricos, desceram para 35,3%. É esta diferença, de quase 15% perdidos pelos 10% mais ricos, que se explica o fortalecimento da classe média americana e a construção do chamado sonho americano. Sem esta transferência, os EUA exclusivamente se tornaram na superpotência que foram, nem foram derrotados a URSS. Isto explica também a entrada em cena do Macartismo (o “segundo Terror Vermelho” de 1950 a 57), deriva fascizante que “limpou” sindicatos e organizações de classe nos EUA.
Até aos anos 70 do século XX, a situação dos trabalhadores americanos continuava a melhorar e os dados atestam-no. Em 1970, a riqueza controlada pelos 50% mais pobres atingiu o seu ponto alto (21,1%) e a dos 10% mais ricos (e 1% mais ricos também) atingiu o seu ponto mais baixo (34% e 10,1%, respectivamente). ). Os dados não puderam ser mais claros: o período de ouro dos EUA coincide com o período em que a distribuição da riqueza produzida foi mais justa; foi também o período com mais liberdade, democracia, engajamento político e melhores condições de vida.
Na França não foi diferente, uma vez derrotado o fascismo nazista e, logo a partir de 1945, os 10% mais ricos atingiram o seu ponto mais baixo (31,4%), o 1% mais rico 8,5% e os 50 % mais pobres passam de 14,6% em 1934 para 20,5% em 1945. É pena não termos dados da Alemanha, mas se estes não falam por si…
Esta relação, nos EUA, mal ou bem, contínua até ao final da URSS e, em 1995, tudo se voltou a inverter de volta ao período anterior à segunda guerra mundial. O “Consenso de Washington” ocorrido em 1989, que decretou a mundialização do neoliberalismo segundo a “escola de Chicago”, coincide com o ano em que os 1% mais ricos voltam a concentrar mais de 14% do rendimento anual, o que já não sucedia desde os anos 50. A partir de 1989 foi sempre a concentrar, até aos dias actuais, em que: em 2022, os 10% mais ricos atingiram 48,3% do rendimento anual, os 1% mais ricos 20,9% e dos 50% mais pobres, apenas 10,4%. Refira-se, a este propósito, que desde que existe registo, nunca os 50% mais pobres tiveram ficado com tão pouco rendimento anual. O mínimo que obtivemos, nos EUA, havia sido de 11% por volta de 1850!
Voltando às eleições alemãs. Estamos precisamente a viver o período da história ocidental moderna, em que a redistribuição da riqueza produzida (se falarmos da riqueza existente é pior ainda) está num dos níveis mais baixos de sempre. Na Europa, a situação ainda não é tão grave como nos EUA, mas estes 4 aceleradores críticos que identifiquei (Guerra ao Terror, Crise Soberana; Covid-19; Guerra Fria 2.0), produzindoão, necessariamente, o mesmo efeito de concentração da riqueza que já está a degradar e destruir o estado social europeu, construído à custa de uma redistribuição que, mal ou bem, ainda mantém alguns padrões de justiça.
Embora não tenham produzido grandes alterações na quantidade de riqueza prejudicada pelos 50% mais pobres, nos principais países europeus registados no World Inequality Report, é da chamada “classe média” que se ouvem muitas das queixas. Em países como a Suécia, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Países Baixos e outros, a tendência é, embora de forma mais tênue do que nos EUA, nos finais do século passado, para os 50% mais pobres perderem terreno para os 10 % mais ricos. Ou seja, paulatinamente, vão-se desenvolver as relações económicas que produzirão uma realidade material típica do período em que se formou o fascismo.
Daí que seja hora de desfazer um dos mais importantes mitos, ou dogmas, que a narrativa oficial propaga sobre o fascismo: a principal característica do fascismo não é a repressão, mas, ao invés, a influência da concentração da riqueza e a sua entrega a uma cada vez menor quantidade de pessoas. Cada vez menos pessoas têm mais poder económico, como o que compram poder político e fazem o sistema político, mesmo aqueles que se apelidam de “democráticos”, funcionar segundo os seus termos. O Lobbying, o financiamento de campanhas e Think Thanks ou até da própria academia, são alguns dos meios mais usados para interferir e moldar as políticas soluções preconizadas.
Ao invés do processo de concentração da riqueza, já a repressão pode acontecer em qualquer sistema, quando você estiver em crise ou sentindo-se ameaçado. A não ser nos casos psicopatológicos, a repressão é uma resposta orgânica justificada com um ataque externo ou interno. Só alguém mesmo muito alheado ou alienado da realidade acredita que não existe repressão nos EUA e, mais recentemente, intensificada na União Europeia. Todos os sistemas estatais têm um aparelho repressivo ao seu dispor e à sua utilização – dos meios coercivos – depende do nível da ameaça. Num estado fascista, o poder repressivo está ao serviço das camadas mais ricas da população.
O mesmo se passa com as eleições. Não é uma existência de eleições que determine a natureza fascizante ou democrática de um sistema. O que determina a sua natureza democrática é a abrangência das suas políticas. Se abrangem os interesses da maioria, ou não. Uma escolha entre iguais, como acontece nos EUA, não é democracia, é sufragismo. No final será o complexo militar industrial e Wallstreet quem manda. Outra característica da democracia consiste na susceptibilidade de alterar a política económica, quando esta não serve os interesses da maioria. Eleições estereis, pouco participadas em que governam partidos minoritários, como acontece crescentemente na Europa, não se explicam através da democracia. Esses partidos minoritários governam porque a base econômica que servem, eles permitem fazê-lo, mesmo em minoria. Em resumo, é possível haver fascismo com eleições. E nunca observarei um fascista assumir que o é.
Se o estado em que os EUA já se encontram explicados o surgimento de um Trump, uma “resposta” impotente para acabar com os exércitos de sem abrigo, junkies e de gente a viver em carros, roulottes ou tendas; na União Europeia, esse processo não é distinto e, embora mais tardio, está agora a produzir-se. Também na Europa está a surgir a resposta do sistema à crise que resulta do aprofundamento da contradição na redistribuição da riqueza. Quanto maior a contradição, quanto mais injusta a redistribuição, mais o sistema produzirá os agentes demagógicos, reacionários, que encantarão as massas mais pobres, com a culpabilização dos também mais pobres: emigrantes, refugiados e outros, para aqui trazidos, precisamente, pelos que mais riqueza acumulada.
Não é admissível, portanto, que alguém responsável e conhecedor das dinâmicas sociais e em posse de informação confiável, fique admirado com o envio eleitoral para a “extrema direita”. Mais grave se torna quando os representantes políticos do centro neoliberal, que se situam, inclusive, entre o Wokismo e o ultraliberalismo (partidos wokistas eurosocialistas e sociais democratas acusam Maduro de cometer fraude, mas decidem Milei um jogador limpo!), uma vez mais, tal como nos anos 20 e 30 do século XX, surgem a criar as condições materiais, por sucumbirem às dinâmicas de concentração da riqueza, seja por corrupção, encantamento ou medo de serem destruídos (e que razão têm), conforto, por sua vez e uma mais uma vez, o surgimento da oportunidade fascista (seja o caso da AFD ou não). O momento em que os super-ricos usam a repressão estatal para proteger o processo de concentração da riqueza.
Assim, ninguém pode admirar que as massas trabalhadoras descontentes, empobrecidas, vítimas da rapina, muita dela exercida a partir de Washington, votem na “extrema direita”. Depois de ondas de revisionismo históricas para comparar o fascismo ao comunismo (e socialismo) e a URSS à Alemanha nazista, foi o próprio centro neoliberal que legitimou a extrema direita. Se compararmos partidos aceitos, que nunca promoveram o ódio e a discriminação (caso dos partidos comunistas), com partidos que fazem a doutrina do ódio e da discriminação como suas bandeiras, acabamos de normalizar os últimos últimos.
Cresce que, ao contrário do voto nos partidos progressistas (em sentido económico, marxista), que rejeitam e denunciam o wokismo enquanto apresentam desviante à direita, os partidos da “extrema direita”, ao contrário, não comportam qualquer perigo para a base económica que sustenta o centro neoliberal. Nenhum regime fascista alterou o processo de concentração de riqueza, ao invés, reforçou-o. Também hoje, a “extrema direita” defende apenas e tão só o aprofundamento do modelo económico existente e que, como demonstração, proporcionou o seu próprio desenvolvimento.
E aqui chegou, se demonstra que o revisionismo histórico não é inocente. Ele visa criar uma fuga, uma alternativa ao centro neoliberal, sem que o poder real, o poder da riqueza acumulada, na economia, transite de mãos. Assim, os grandes concentradores ganham tempo, enganando as massas uma vez mais, prendendo-as na repressão fascista. Quando derrubado o golpe fascista, o desvio fascizante ou a deriva extremista neoliberal, as massas voltam a ser enganadas com o centro neoliberal, na medida em que não o identificam como pertencendo à mesma base econômica que alimenta o estado fascista. E assim perpetuar sua exploração, circulando entre formas mais ou menos agressivas de um mesmo remédio.
Para já, as eleições alemãs apenas confirmaram este ciclo vicioso. E a prisão neste ciclo, uma vez mais, em processo de geração histórica, esconda a maior das conquistas do globalismo neoliberal, federalista, financeirizado: a formatação do conhecimento a um ponto em que os especialistas, competentes em sua área, são incapazes de olhar para além de coisas que ensinamos. Neste sentido, o fascismo não é mais uma especialização, um aprofundamento em relação ao estágio atual do neoliberalismo globalista. O próprio belicismo, seja dos EUA (e que não termina com Trump), seja no centro neoliberal (para já), constitui também uma das consequências do processo de “fascização económica” da vida política. Resultado de uma cada vez mais tendências para a apropriação de riqueza, nem que seja pela via da guerra.
Quando ouço economistas, competentes (não estou a ironizar), com canais concorridos, criticam o ocidente por estar a sucumbir, entre outras razões, por praticar exercícios elevados, percebe-se que a herança ideológica neoliberal é de facto pesadíssima. Nenhum desses economistas competentes é capaz de olhar para além do esquema neoliberal que lhe ensinaram. Apenas reproduzam o que lhe ensinaram, sendo meros instrumentos da lógica de acumulação e pilhagem ocidental.
A incapacidade de sonhar e almejar o que hoje se considera impossível, constitui a herança mais pesada dos últimos 100 anos, que os EUA tiveram para nos entregar. As eleições alemãs, na sua divisão entre sonhadores, situacionistas e aprofundadores, demonstram esta tensão latente. Demonstram que existe quem sonhe, mas as forças do medo, do ódio e da reação, são mais fortes que nunca. O neoliberalismo constitui o seu alimento preferido.
Neoliberalismo: uma antecâmara do fascismo! Eis o que se esconde por trás das eleições alemã
https://www.brasil247.com/blog/neoliberalismo-a-antecamara-do-fascismo
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