* Henrique Raposo
Foto Arquivo “A Capital”
Escreveu milhares de crónicas a
criticar o modo de ser dos portugueses – os “indígenas” —, os quais, diz, só
sabem viver do favorzinho. Mas não seria ele próprio um superindígena?
Republicação de um perfil de Vasco Pulido Valente, que morreu esta sexta-feira
aos 78 anos, da autoria de Henrique Raposo e que foi publicado em fevereiro de
2018 no Expresso
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21 FEVEREIRO
2020 17:34
V
asco Correia Guedes ainda nasceu
no século XIX. O calendário cronológico marcava novembro de 1941, mas o
calendário moral e social de Portugal ainda estava em Oitocentos. Portugal era
uma máquina do tempo, uma ficção reacionária conhecida por “salazarismo”. Era
este oitocentismo que dava a Portugal aquele ambiente exótico que impressionava
os visitantes anglo-saxónicos. E repare-se que o exotismo do atraso era mais
moral do que material. Na Lisboa de 1954, aquilo que mais impressionou a
escritora Mary McCarthy não foi a pobreza material, os pés descalços e o rosto
tisnado do marçano, mas sim as relações sociais marcadas por um snobismo que
parecia de facto congelado no século XIX e imune à americanização e à
democratização das sociedades europeias. O que espantava americanos, ingleses e
até espanhóis era a brutal distância entre os senhores doutores e o povo. Era
como se os senhores portugueses não fossem de facto portugueses, mas
estrangeiros destacados para esta terra estranha e bárbara e com a incumbência
de colonizar e educar estes pobres indígenas conhecidos por “portugueses”.
Havia uma separação moral e
emocional entre a elite e o tal indigenato que se desbarretava à passagem dos
senhores doutores. Vasco Correia Guedes, futuro Vasco Pulido Valente, era um
filho desta elite. Do lado paterno, os Correia Guedes eram uma família conotada
com as direitas e até com o regime. Do lado materno, os Pulido Valente eram a
realeza do reviralho republicano. Criado nesta gaiola dourada, Vasco nunca se
demarcaria da patine snobe e cínica em relação a Portugal. Não era por acaso
que “os indígenas” era a sua expressão de eleição para descrever os
portugueses. Não era por acaso que desprezava esta finisterra com frases que
copiavam a boutade de Byron, “lusian slave, the lowest of the low”.
No Areeiro ou na Avenida da
Liberdade, as reuniões familiares do jovem Vasco eram retratos do século XIX:
avós com damas de companhia, três ou quatro criadas orientando o dia a dia de
amplas divisões, longas mesas de dez metros com tampos de mármore e pés
dourados, a formalidade e o fausto dos jantares em dias especiais, patriarcas
como Francisco Pulido Valente que não deixavam as mulheres falar, mordomias,
privilégios e cunhas com diferentes graus de importância. Vasco estava no
centro do Portugal oitocentista que apodrecia ao sol do século XX.
O nacionalismo bacoco e abstrato do
salazarismo (do Minho a Timor) escondia a ausência de capital social, isto é, a
ausência de comunhão entre as diferenças classes. Numa palavra, não havia
patriotismo. Os diferentes grupos sociais acabam por olhar uns para os outros,
não como diferentes classes de um corpo comum, mas sim como espécies diferentes
sem qualquer chão comum. Esta era uma sociedade radicalmente desigual,
radicalmente snobe. No Alentejo, as famílias terratenentes diziam que “os
feitores sabem como lhes hão de falar [aos trabalhadores], nós não”. De
esquerda ou de direita, os filhos da elite não se davam com os filhos do povo.
A distância era total, quase palpável; os garotos nem sabiam falar uns com os
outros. Se por acaso conversassem ou brincassem, essa interação também era
regida pela frieza: o filho do caseiro tinha de tratar o filho do patrão não
por “João” mas por “menino João”. Era por isso que o “menino João” podia abusar
da criada no quarto dos fundos: esse abuso era como se não existisse, pois era
cometido fora do perímetro da classe.
Como salientou Filomena Mónica, uma
retratista bem mais realista de Portugal do que Vasco Pulido Valente, quase
todos os homens da elite deste tempo perderam a virgindade com as criadas da
casa. E o pior é que muitos revelavam uma total ausência de culpa. Este
sistemático abuso sexual das mulheres pobres é um indicador de pobreza muito
mais poderoso do que as métricas habitualmente utilizadas para descrever a
pobreza deste Portugal. Antes de ser a sujeição à mortalidade infantil, à fome,
à tuberculose e à malária, ser pobre é sobretudo ter como único ganha-pão o
trabalho de criada ou ceifeira numa casa ou herdade que pode ser uma masmorra
sexual; ser pobre é não ter direito à privacidade ou à intimidade, é ser um
espaço anónimo onde a privacidade dos outros pode entrar sem pedir licença, é
nem sequer conhecer as palavras (violação, abuso sexual, sexo com
consentimento) que permitem contestar esse abuso. Ser pobre é ter a intimidade
sexual à mercê da bondade de estranhos.
A pobreza material e moral do
salazarismo era abjeta, mas não foi o despertador político do jovem Vasco. “Fui
muito protegido”, reconheceu na velhice. Era a mãe, Maria Helena Pulido
Valente, que dava pela porta da cozinha roupa e comida a algumas famílias
miseráveis. Em resultado desta e de outras proteções, Vasco nunca se confrontou
a fundo com o trauma clássico desta geração: a descoberta indignada da pobreza
e o voraz sentimento de culpa que se segue, raiz da mente revolucionária. Não
esteve sozinho nesta distância. Com honestidade desarmante, António Barreto
confessou que a sua revolta interior contra o regime começou na dificuldade que
era “arranjar miúdas” e não na pobreza das criadas ou camponeses. Da mesma
forma, a revolta de António-Pedro Vasconcelos não começou em “O Capital”, mas
sim em “A Filosofia na Alcova”.
Este impulso libertário ou
libertino até era visível em figuras mais velhas e católicas, como Bénard da
Costa e Alçada Baptista. Por outras palavras, a revolução sexual foi aqui mais
importante do que a revolução socioeconómica. Não era por acaso que Vasco
venerava Philip Larkin, o poeta da ode à revolução sexual (“sexual intercourse
began/ in nineteen sixty-three/ (...) between the end of ‘Chatterley’ ban/ and
Beatles’s first LP”) e da transformação da família no grande inferno (“They
fuck you up, your mum and dad”). Também não era por acaso que um dos livros da
sua vida era o agora justamente esquecido “Calendário Privado” (1958) de
Fernanda Botelho, uma história de emancipação sexual de uma rapariga da classe
privilegiada de Lisboa; a libido de Aninhas, a personagem central, foi um dos
heróis antissalazaristas de Vasco. Note-se ainda que foi aqui que começou a
rutura com o PCP. Este espírito liberal ou libertino era contrário aos “bons
costumes” do salazarismo mas também do comunismo; Cunhal olhava para esta
libertação sexual como uma corrupção burguesa.
Com Francisco Sá Carneiro e Diogo
Freitas do Amaral, três rostos do Governo da AD, o sexto governo provisório, de
1980/81. Pulido Valente foi secretário de Estado da Cultura
Foto Arquivo
“A Capital”
No despertar político de Vasco,
temos ainda de ponderar mais três fatores. Em primeiro lugar, a revolta contra
a ditadura salazarista nas faculdades, na política, na sociedade em geral. Em
segundo lugar, o desejo de fugir à guerra do ultramar. António Barreto e
Medeiros Ferreira, por exemplo, exilaram-se para escapar à guerra. A solução de
Vasco foi diferente: a cunha, um favor em forma de atestado médico que surgiu
de forma natural e sem qualquer pedido expresso por parte da família. A lógica
snobe da sociedade funcionou de forma natural, óbvia e automática: na cabeça
dos examinadores médicos, o neto do professor Pulido Valente não podia ir à
tropa. Em terceiro lugar, importa invocar a herança familiar: os seus pais,
Maria Helena e Júlio, eram da elite do PCP e, acima de tudo, o avô Pulido era
uma das grandes figuras da velha oposição republicana. Francisco Pulido Valente
era uma lenda médica, intelectual e política. Nesta Lisboa de finais de 50 e
inícios de 60, Vasco só podia ser o neto do doutor Pulido Valente. Não
surpreende assim a sua troca de apelidos.
Na formação da sua persona, Vasco
substituiu os apelidos paternos (Correia Guedes) pelos apelidos maternos
(Pulido Valente). Em 1960, aos 19 anos, ainda demonstrava alguma esquizofrénica
heráldica: um Vasco Correia Guedes ainda aparecia como editor na ficha técnica
do “Quadrante” (jornal da Faculdade de Direito), mas um tal de Vasco Pulido
Valente já assinava artigos. A dupla identidade não durou muito. No ano
seguinte, Vasco Correia Guedes passou a ser o pseudónimo privado da figura
pública conhecida por Vasco Pulido Valente (V.P.V.). Na velhice, afirmaria que
fez esta mudança porque Vasco Correia Guedes tem uma fonética desagradável. É
verdade, mas é impossível não ver uma motivação política e social na mudança de
nome. Um amigo de infância garantiu à imprensa que Vasco passou a utilizar o
apelido da mãe “porque era mais bem”. A tese faz sentido. O apelido Pulido
Valente era uma marca registada, abria portas convenientes (jornais e revistas)
e fechava outras desagradáveis (tropa). Contudo, seria injusto justificar a
mudança de apelidos apenas com a questão social. Ao trocar de apelido, Vasco
fez uma homenagem à pessoa que mais o influenciou na sua visão ideológica e
histórica e na sua forma de pensar. Ele poderia ter mantido o nome Correia
Guedes, que remetia para um avô ligado à direita liberal da monarquia e para
tios ligados ao statu quo. Optou porém pelo avô Pulido Valente, um republicano
que conspirou contra a monarquia e que conspirava contra Salazar. Não, não
podia haver dúvidas: ele, Vasco, era de esquerda; ele, o neto do professor
Pulido Valente, não era das direitas.
Francisco Sousa Tavares e Mário
Soares, em 1984. Vasco Pulido Valente, Sousa Tavares e outros intelectuais viam
em Soares e no PS a charneira da democracia, o centro vital entre os
revolucionários à esquerda e aquilo que ainda via como a “reação” à direita
Rui Ochôa
De resto, este pendor para a
esquerda nunca o abandonou. Isso via-se por exemplo no seu indefetível
soarismo. Ao contrário do que diz muitas vezes, V.P.V. não tinha uma visão
iconoclasta da história de Portugal. Com uma ou outra exceção, a sua visão estava
inserida no mainstream de centro-esquerda e soarista que nos apascenta. Como
todos os soaristas, venerava o bocejo que é considerar Soares como o grande pai
da integração europeia de Portugal. Como todos os soaristas, laborava no
equívoco que é considerar Salazar um mero títere da Igreja. Como quase toda a
gente à esquerda, era incapaz de reconhecer sem ambiguidades que o país cresceu
económica e socialmente entre 1950 e 1973. Se queremos encontrar uma visão mais
realista e, por isso, mais iconoclasta da história recente de Portugal temos de
procurar a obra de Rui Ramos, António Barreto, António de Araújo, Bruno Cardoso
Reis, Luciano Amaral, Rita Almeida de Carvalho, Nicolau Andresen Leitão, entre
outros.
Mais do que uma influência
política, Francisco Pulido Valente foi uma influência epistemológica. Vasco
herdou de Francisco uma forma de pensar e até de escrever. O positivismo lógico
era a grande referência de Francisco, e este espírito wittgensteiniano passou
para Vasco quase por osmose. É verdade que este positivismo teve os seus
efeitos negativos na mundivisão de Vasco (efeitos, esses, que merecem um ensaio
à parte), mas nesta época foi uma ferramenta fundamental para a grande odisseia
da sua juventude: a revolta intelectual contra a vulgata marxista, que era a
intocável língua franca desta geração. Como explicou Orwell, o comunismo foi o
grande criador do pós-verdade: a morte de milhares ou milhões de pessoas às
mãos dos algozes comunistas defendidos por José Saramago e Eduardo Prado
Coelho, entre outros, era escondida atrás de palavras como “revolução” ou
expressões como “remoção burocrática de populações”.
Contra esta imprecisão marxista,
Vasco herdou de Francisco o culto da precisão analítica e do respeito pelos
factos. Até na escrita de Vasco são evidentes as marcas de Francisco. Olhe-se
por exemplo para o artigo “As Modernas Ideias na Patologia da Tuberculose
Pulmonar”, publicado pelo austero Francisco na Revista da Faculdade de Medicina
de Lisboa em 1925: “Houve, é certo, uma revolução; profunda nas palavras,
bastante superficial nos factos. Mas, em suma, alguns factos novos foram
revelados e há novas maneiras de encarar os antigos, e de tudo isto queria
dar-lhes sucinta notícia, só no que às questões fundamentais diz respeito,
porque para o mais não teria eu tempo, nem V. Exas. paciência”. Este tom cru e
áspero de Francisco seria a imagem de marca de Vasco Pulido Valente.
Vacinado pelo avô contra a
imprecisão marxista, V.P.V. adquiriu um espaço mental raro na sua geração para
ler e compreender os grandes críticos da desonestidade intelectual do comunismo
como Popper, Camus e sobretudo Orwell. Que tipo de desonestidade é esta? Um
exemplo: Prado Coelho viu na violência do PREC um daqueles momentos históricos
em que “o fundo anónimo das massas se ergue, se crispa, se levanta e invade o
palco político, desmantela as suas estruturas, escancara as suas feridas (...)
é esse o fundo anónimo, essa lava negra, que emerge, que alastra, que destrói,
que contamina (...) Não há esquerda sem a loucura desse projeto da loucura de
massas”.
O que é a “lava negra” da história?
Será o conjunto de prisões e torturas levadas a cabo pelos militares afetos ao
PCP? O que é o “fundo anónimo das massas” e porque é que se “crispa”? Será que
é a forma como o PCP passou a controlar grande parte da imprensa e da RTP,
criando um efetivo clima de censura? Este estilo vago e pseudopoético é a forma
clássica de esconder a violência e a tirania. Era por isso que o estilo seco,
contido e rude de V.P.V. não era uma mera questão estética, era antes de tudo
uma questão ética. Para V.P.V., a tentativa de asfixia dos sindicatos e dos
ministérios por parte do PCP era um avanço ditatorial, não era “o fundo anónimo
das massas a erguer-se”; a expulsão de jornalistas não afetos ao PCP era uma
demonstração de intolerância, e não de uma jovial “loucura”. Neste anos 60 e
70, V.P.V. foi assim o nosso Orwell ou Camus, ou seja, foi aquele intelectual
que tentou quase sozinho restabelecer a ligação entre a esquerda e a liberdade,
entre a esquerda e um módico de tolerância e de honestidade. Não é possível
sublinhar em demasia esta coragem de V.P.V., porque também não é possível
sublinhar em demasia a esmagadora hegemonia que a vulgata marxista tinha sobre
as cabeças desta geração.
Vasco Pulido Valente igual a si
próprio, numa fotografia que podia ser uma crónica
Foto António
Pedro Ferreira
Em 2018, vivemos tempos de absoluta
dispersão pós-moderna, há literalmente centenas de narrativas no ar com
aparente igualdade moral e epistemológica; em 1967 ou 1977, respirava-se em
Portugal um clima de absoluta concentração da validade moral e epistemológica
numa única narrativa, o comunismo, o marxismo, a vulgata. Se hoje em dia é
preciso coragem para defender uma crença clássica (ex.: catolicismo) no meio da
dispersão e do ‘engraçadismo’ pós-moderno que coloca a sofisticação intelectual
apenas e só no cesto da descrença e do cinismo, naquela época era preciso
coragem para atacar a crença hegemónica — o marxismo. Nos anos 60, 70 e mesmo
80, recusar a vulgata marxista implicava ser ostracizado nas aulas, nos cafés,
na carreira intelectual. Este cerco afetava até pessoas que estavam
alegadamente à direita, como Alçada Baptista ou Marcelo Rebelo de Sousa. Nos
anos 70, depois do 25 de Abril, a linguagem das colunas do atual Presidente era
quase cem por cento marxista (uma vez cata-vento, sempre cata-vento). Sem
contarmos com aqueles que continuaram marxistas ou radicais até aos nossos
dias, repare-se nesta lista: António Barreto, Medeiros Ferreira, Filomena
Mónica, João Carlos Espada, Teresa de Sousa, José Manuel Fernandes, Henrique
Monteiro, Vítor Cunha Rêgo, Helena Matos, Pacheco Pereira, Nuno Crato, Durão
Barroso, Zita Seabra, Saldanha Sanches, Luís Marques, Pina Moura, José
Magalhães, Esther Mucznik, Manuel Villaverde Cabral, João Vieira Lopes, Carlos
Gaspar, Manuel Falcão, Joaquim Vieira, António Costa Pinto, Vital Moreira,
Jorge Coelho, Francisco George, José Lamego, Mário Soares, magistrados como
Sousa Ribeiro e Maria José Morgado e até banqueiros como António Domingues. A
lista (não muito exaustiva) causa espanto, porque mostra a hegemonia absoluta
da vulgata marxista na forma de pensar desta geração.
V.P.V. foi o pioneiro da rebeldia
contra esta prisão mental. O seu lugar na história na geração que fez a
transição do Estado Novo para a democracia deve-se a esta coragem precoce. Na
imprensa dos anos 70, antes (“Cinéfilo”) e depois (“Diário de Notícias” e
“Expresso”) do 25 de Abril, as colunas de V.P.V. eram especiais porque ele era
o único grande cronista sem qualquer rasto do linguajar marxista. Foi ele que
abriu espaço a uma linguagem política clássica, republicana e, sim, liberal
(leia-se “liberal” no sentido de “democracia liberal”, por oposição a
“democracia popular”). Quem acredita na liberdade deve muito ao colunismo
político de V.P.V. desta época.
A FORÇA DO PCP
Nos anos 60 e 70, antes do 25 de
Abril, a pressão ideológica do PCP junto das elites culturais (universidades,
escolas, editoras, jornais, revistas) era tão grande que muitos intelectuais
viam ali uma segunda ditadura: à ditadura política de Salazar, juntava-se a
ditadura cultural de Cunhal, do PCP, do neorrealismo, a marquise estética do
marxismo. Alçada, Bénard, Alexandre O’Neill, Jorge de Sena, Eduardo Lourenço,
Vergílio Ferreira e Sophia de Mello Breyner, entre outros, sentiam-se presos
numa tenaz de ferro: de um lado, a opressão do salazarismo; do outro, a
opressão do PCP. Neste ambiente, a revista “O Tempo e o Modo” foi um símbolo
deste combate de dupla face contra Salazar mas também contra a asfixia do
neorrealismo na literatura e no cinema (ver “Nós, os Suicidas do Catolicismo”,
retrato de Bénard da Costa publicado a 13 de maio de 2017 nesta revista). A
legitimação do cerco que era montado a todos os escritores que recusassem o
neorrealismo foi escrita pelo próprio Cunhal.
Num texto intitulado “Cinco Notas”,
que seguia à risca a ortodoxia estalinista de Andrei Jdanov, Cunhal deixou
claro que não se podia dar méritos artísticos aos criadores que não estivessem
ao lado da “classe ascendente” e que se limitassem a “falar de si e dos seus
mesquinhos problemas”; não estar ao lado do “proletariado” e da sua vanguarda
só podia ser sintoma de uma evidente “desorientação, degeneração, corrupção,
anarquia, egoísmo, devassa sensualidade, pavor do futuro”. Na prática, isto
significava o seguinte: criticar Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes só podia
ser um sintoma de fascismo; elogiar Agustina e Fernanda Botelho também só podia
ser um sinal inequívoco de fascismo. O PCP acabou por criar o “fascismo do
antifascismo” (Sophia) através deste cerco mental que destruía qualquer
honestidade intelectual na apreciação das obras. Agustina, Botelho, Nemésio,
Sena, Vergílio Ferreira, Ruben A., entre outros, foram gozados, diabolizados ou
silenciados pelo “meio” literário. É neste quadro que a coragem de V.P.V. volta
a entrar na escala da lenda. No “Quadrante” e na “O Tempo e o Modo”, defendeu
escritores que a intelligentsia considerava pestíferos (Vergílio Ferreira,
Agustina, Botelho) e atacou outros que eram considerados sagrados (os
neorrealistas, sobretudo Urbano Tavares Rodrigues). Quem acredita na
honestidade intelectual também deve bastante a este colunismo literário de
V.P.V..
Como acabámos de ver, V.P.V. lutou
contra o neorrealismo em defesa de um módico de honestidade intelectual: a
filiação partidária e ideológica do escritor não deve entrar na análise que
fazemos ao seu trabalho. Contudo, a luta contra o neorrealismo também lhe
deixou um vício intelectual que está ligado ao meio social daquela Lisboa
minúscula e oitocentista: o snobismo. Neste sentido, há que olhar com redobrada
atenção para uma experiência fundamental da juventude de V.P.V., uma
experiência ainda mais antiga do que “O Tempo e o Modo” — a revista “Almanaque”
(1959-1961).
A “Almanaque” era dirigida por
Cardoso Pires e contava com a colaboração de Sebastião Rodrigues, Abel Manta,
Luís de Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, José Cutileiro, Alexandre O’Neill e
Vasco Pulido Valente. A revista tinha uma atitude relaxada de bon vivant que
chocava de frente com a fria austeridade dos neorrealistas. O neorrealismo
defendia que um livro ou autor só poderia ser considerado sério ou sofisticado
se estivesse comprometido com a consciencialização social e revolucionária.
Contra esta obtusidade comunista, a “Almanaque” assumia-se como um roteiro de
curiosidades da vida urbana, uma espécie de “Time Out”. Apostava na fruição da
vida, não na austeridade comunista; abordava temas como roupa, comida, carros e
até automobilismo. Se Cardoso Pires foi aqui a referência estilística de Vasco,
Sttau Monteiro foi a referência para o desenvolvimento da pose do intelectual
aristocrático que não se deixava dominar pela estética da alfaia agrícola.
Apoiado por Cardoso Pires, Sttau
Monteiro fez escola contra as mulheres, gostos, hábitos, roupas e penteados do
típico intelectual neorrealista, essa figura que fazia questão de andar
entrapado, mal penteado e, se possível, com mulheres feias e sem maquilhagem.
Um intelectual neorrealista nunca teria um Alfa Romeo — seria pecado. Sttau
Monteiro tinha esse Alfa Romeo e não escondia o prazer que isso lhe dava. Por
outras palavras, V.P.V. aprendeu com Sttau que se podia ser de esquerda e gozar
a vida ao mesmo tempo; ser antissalazarista não tinha de implicar o abandono do
lado fino e galante da vida, copos, mulheres, bons restaurantes, viagens; ser
antissalazarista não tinha de ser sinónimo da vida de caserna do PCP. Era por
isso que Vasco elogiava outro romance medíocre, “Angústia para o Jantar”
(1961), de Sttau Monteiro, considerando que este foi o livro que matou o herói
neorrealista. Segundo V.P.V., “Angústia para o Jantar” fazia a apologia “do
aristocrata comprometido na ação por exigência estética ou moral e
simultaneamente imune à vulgaridade da plebe”.
Ao recusar os excessos do
neorrealista, V.P.V. entrou no extremo oposto, o extremo da petulância snobe
que recusa colocar os pés no pó da vulgaridade. Se o neorrealista sacrificava
militarmente a sua vida privada num excesso de comprometimento com a realidade,
V.P.V. respondeu com o culto da alienação aristocrática, snobe, dândi. Se o
neorrealista queria juntar-se aos “indígenas” para os liderar na revolução,
V.P.V. recusou qualquer contacto com a vulgaridade desses “indígenas”. Já no
século XXI, na placidez da velhice, V.P.V. descreveu assim o ar que respirava
no “Almanaque”: “O importante foi o desenfreado snobismo que Luís Monteiro
levou para o ‘Almanaque’ e a ajuda que o José Cardoso Pires e José Cutileiro
ardentemente lhe deram. O ‘Almanaque’ execrava intelectuais (...)
principalmente o dinheiro que eles não ganhavam. O ‘Almanaque’ execrava tudo o
que a seguir se adorou até aos anos 80 (...) O engagement do aristocrata, do
homem frio, não passava da superfície. No resto permanecia à parte, fiel às suas
origens ou à sua natureza. Um vírus subversivo dentro do seu mundo.”
Ao falar de Sttau Monteiro, V.P.V.
falou de si mesmo. Até se pode dizer que este é o seu epitáfio, o resumo da sua
persona. Está ali tudo. Está ali a recusa dos mitos da esquerda marxista —
facto que acabou por defini-lo enquanto rebelde da esquerda durante décadas e
décadas. Está ali a figura de um homem antissalazarista com raízes na esquerda,
sem dúvida, mas que tinha uma pose snobe, nunca escondendo uma certa repulsa
pelo povo e pelo igualitarismo democrático; uma espécie de Gore Vidal das
Avenidas Novas cujo compromisso era mais estético do que ético ou cívico, cujo
comprometimento não passa da superfície. Está ali o intelectual que não permite
que a realidade exterior penetre no seu escudo defletor, no seu halo
aristocrático. Num poema central de meados do século XX, T. S. Eliot escreveu
“human kind cannot bear very much reality”. Durante toda a carreira, V.P.V.
utilizou esta ideia para criticar dezenas de políticos e intelectuais e os
portugueses em geral; autointitulou-se o realista-mor de um país de irrealistas
e sonhadores que recusavam ver a realidade. Sucede que o próprio V.P.V. também
nunca suportou muita realidade. Aliás, ele foi muitas vezes o grande
irrealista.
Carlos Almeida, Medeiros Ferreira,
Valentim Alexandre e António Barreto. António Barreto e Medeiros Ferreira
exilaram-se para escapar à guerra. A solução de Vasco foi diferente: um favor
em forma de atestado médico
Foto
Particular De Arquivo
AMOR E ÓDIO
Vasco sentia ao mesmo tempo
admiração e repulsa pelo avô Francisco. E, como tantas vezes acontece, esta
relação de amor-ódio criou uma obsessão intelectual que acabou por estar na
origem do “O Poder e o Povo” (1976), o único grande livro de fundo de V.P.V.
(“Glória” é um pastiche queirosiano). Já depois do PREC, afirmou o seguinte
numa entrevista ao Expresso: “Eu tive uma educação republicana, tive um avô que
era um herói da República, que eu achava ao mesmo tempo um homem detestável e
um homem amável, assim como achava aquela educação detestável e amável. E quis
saber [através de “O Poder e o Povo”] quem eram aquelas pessoas que ao mesmo
tempo me repeliam e me atraiam tanto.”
Já sabemos qual é o lado admirável
de Francisco (o rigor). Mas qual era o seu lado detestável? A intransigência
ideológica típica dos republicanos. O fanatismo de Francisco não é um pormenor,
porque explica a conclusão de “O Poder e o Povo” e a sua sequela, “A República
Velha”: os republicanos dominaram através dos instrumentos típicos da violência
revolucionária, sobretudo o terror popular. E o curioso é que V.P.V. viu a
sombra do avô na ação de Álvaro Cunhal durante o PREC. “E depois veio o 25 de
Abril e comecei a ouvir coisas que já tinha ouvido”, dizia Vasco. “Quem é
Álvaro Cunhal senão Afonso Costa? Dizem as mesmas coisas.” Contra este novo
Afonso Costa moscovita, V.P.V. foi um dos poucos intelectuais que apoiaram
Mário Soares. Ao lado de Medeiros Ferreira, Vítor Cunha Rêgo, António Barreto e
Francisco Sousa Tavares, V.P.V. viu em Soares e no PS a charneira da
democracia, o centro vital entre os revolucionários à esquerda e aquilo que
ainda via como a “reação” à direita; o PS era o “partido governamental” que
geria o empate do 25 de Novembro, impedindo a guerra civil entre a sociedade
organizada em redor do PCP e a sociedade organizada em redor do PSD. Todavia, a
relação com Soares entrou em rota descendente.
Ao longo destes anos de ligação aos
socialistas (1974-1978), V.P.V. tentou desenvolver um pensamento de esquerda
liberal, isto é, uma esquerda assente no indivíduo e não nas massas, uma
esquerda que defende a sociedade liberal e não a sociedade socialista, que não
permite a destruição da liberdade individual no altar da igualdade, que parte
da tolerância cética e não da intolerância idealista, que trata a direita como
uma adversária legítima dentro do mesmo chão comum e não como uma inimiga que é
preciso expulsar ou menorizar, que desconfia do poder terapêutico do Estado e
que, por isso, defende um Estado social assente na ideia do seguro individual
(Estado como garantia e não o Estado como prestador). V.P.V. ficou sempre ao
lado daquela desconfiança liberal que parte do pressuposto de que o Leviatã não
é pessoa de bem até prova em contrário.
Para V.P.V., ser de esquerda era o
mesmo que defender a liberdade individual contra o Estado salazarista
omnipresente; na sua mundividência, a palavra “direita” significava centralismo
estatal e, em consequência, a “esquerda” só podia ser sinónimo de liberdade
individual, descentralização e desmantelamento do Estado salazarista que
asfixiava os portugueses. O soarismo devia portanto edificar um “Estado que
nunca houve”, um Estado descentralizado que não tratasse os portugueses como
crianças e servido por funcionários contratados pela competência e não pela
fidelidade canina a um chefe partidário. Soares, porém, fez ouvidos moucos. Foi
esta a grande traição histórica de Soares, segundo V.P.V.: construiu o novo
mundo em cima dos pilares do antigo. Com a habitual impetuosidade, Francisco
Sousa Tavares fixou o tom desta crítica: “Nunca perdoámos a Mário Soares a sua
destruição dos valores e dos homens com H grande (...) em favor de legiões de
oportunistas do aparelho partidário (...) Soares, por erro de cálculo ou
deformação da visão política, que sempre o fez sacrificar uma linha de
coerência de doutrina ou a contemporizar com influência perniciosa.”
Para este grupo de intelectuais
(Francisco Sousa Tavares, V.P.V., Barreto, Medeiros Ferreira, Cunha Rêgo) era
inaceitável que Soares fosse incapaz de criar um Estado independente dos
caciques e, acima de tudo, era inaceitável que Soares não fosse capaz de
liderar uma esquerda com um mínimo de responsabilidade financeira e com um
mínimo de civilidade no trato com a direita. A rutura de V.P.V. com o PS e até
com a esquerda portuguesa foi confirmada no prefácio do livro “O País das
Maravilhas”, a coletânea de crónicas escritas entre 1973 e 1979. Sem qualquer
margem para dúvidas, este é o seu melhor livro de crónicas (tem um estilo com
substância e não apenas a pose neoqueirosiana das décadas seguintes) e o
prefácio é porventura o texto mais revelador da sua carreira. Depois de uma
década a tentar mudar aquilo que era a sua casa (a esquerda), levantou a
bandeira branca: “A experiência de escrever o ‘País das Maravilhas’, semana a
semana, ensinou-me toda a extensão da intolerância e má-fé daquilo que em
Portugal se chama ‘Esquerda’ (...) Dela recebi invariavelmente insultos e
sermões. Nunca qualquer ténue desejo de compreender e argumentar. Vindo da
Esquerda, o ‘País das Maravilhas’, exceto por alguma dispensável publicidade,
não me trouxe senão amargura.”
Esta derrota de V.P.V. e dos seus
aliados não foi uma derrota qualquer. Até pode ser vista como um dos momentos
definidores do novo regime: mostrou como até o PS era demasiado poroso à
vulgata marxista e ao radicalismo que recusava ver na direita um adversário
legítimo; mostrou como até o PS tendia a tratar a direita como o “outro”, como
o “inimigo”; mostrou que a linguagem marxista de Cunhal e não a linguagem
liberal de V.P.V. era a língua franca do novo espaço público; mostrou que a
esquerda portuguesa era incompatível com a liberdade individual.
A saída do PS e a posterior
participação na AD de Sá Carneiro criaram dois mitos sobre V.P.V. que importa
desfazer. O primeiro mito diz que V.P.V. era um vira-casacas oportunista. O
segundo mito diz que o neto do doutor Pulido Valente passou a ser de direita.
Ambos estão errados. Quando abandonou o PS a caminho da AD, V.P.V. não passou a
ser conservador, conservador-liberal, democrata-cristão ou libertário.
Continuou a ser de esquerda. Radicalmente materialista, V.P.V. nunca acreditou
em Deus ou em qualquer noção de justiça exterior à matéria visível e
mensurável; foi sempre um crítico radical e muitas vezes injusto do catolicismo
e da Igreja. Visceralmente individualista, continuou a desprezar a família e
qualquer conceito de comunidade orgânica; tinha uma alergia forte ao povo
bairrista e católico do Norte, a base eleitoral da AD. Nunca foi um grande
pensador institucional do regime. Apesar de inclinações liberais, gozou e
criticou sempre a direita quando esta tentou apresentar projetos liberais
(“cretinismo liberal”). E nunca escondeu o desprezo pelo político de direita
que apresentou de facto o único programa liberal e conservador de toda a
democracia (Lucas Pires).
Se queremos ver uma verdadeira
conversão à direita e até ao catolicismo, temos de olhar para o seu amigo Vítor
Cunha Rêgo, para João Carlos Espada, Zita Seabra, José Manuel Fernandes, Helena
Matos. V.P.V. foi sempre um normalíssimo liberal de esquerda. Ou melhor, seria
normalíssimo nos EUA ou Inglaterra. Em Portugal, país onde a “esquerda” era
sinónimo de “marxismo”, um liberal de esquerda corria e corre o risco de ser
visto como um perigoso “neoliberal”. Ainda hoje, basta pensar que se alguém
apresentar em Lisboa uma proposta parecida ao Obamacare (Estado social enquanto
garantia) é de imediato apelidado de “direitista” ou “neoliberal”.
Também é um erro de perceção
considerar que V.P.V. foi um mero oportunista na forma como trocou Soares por
Sá Carneiro. Empurrada e acompanhada pelos aliados do costume (Francisco Sousa
Tavares, Medeiros Ferreira, Cunha Rêgo, Barreto), a mudança de V.P.V. foi
coerente por duas razões. Em primeiro lugar, V.P.V. percebeu que a sua ideia de
governança (mais realista, mais liberal ou, se quisermos, mais perto da
subsidiariedade social-democrata) só teria espaço no PSD devido à contaminação
marxista do PS. Em segundo lugar, V.P.V. apoiou a AD devido ao medo que sentia
em relação à velha tenaz. Ele considerava que a direita tinha de ser canalizada
para o interior do regime; os sectores conservadores da sociedade tinham de
chegar ao poder através das regras do jogo democrático; a III República não
podia continuar a ser uma coutada das esquerdas, pois existia o risco de a
direita procurar um contragolpe para fazer ouvir a sua voz — tal como fizera em
1926.
O seu trabalho historiográfico foi aqui fundamental. V.P.V. não queria
que a III República tivesse o mesmo fim da I República. Recorde-se que o
fanatismo dos “democráticos” de Afonso Costa e Francisco Pulido Valente impediu
a entrada das direitas no centro do regime; visto que a direita que aceitava as
regras do jogo não formou um bloco para rivalizar com Afonso Costa dentro das
regras do jogo, a direita que não aceitava as regras do jogo impôs o fim do
jogo em 1926. Até à vitória eleitoral da AD (1979), V.P.V. viveu sempre
assustado com o contragolpe da direita. Se vislumbrava a sombra do avô em
Cunhal, também via a sombra de Brito Camacho na fraqueza de PSD e CDS. O seu
apoio a Sá Carneiro foi assim mais do que coerente. Resultou do velho temor em
relação à tenaz autoritária, revolucionários de um lado, reacionários do outro.
Em paralelo, era evidente que V.P.V. admirava o carisma de Sá Carneiro, um
carisma que se erguia contra a tenaz. Sá Carneiro era o grande adversário do
radicalismo esquerdista, mas também era o grande adversário da velha direita
reacionária que odiava Snu e aquela relação “irregular”.
Camarate mudou tudo. Foi a segunda
derrota política de V.P.V. em menos de uma década. Se não conseguira emancipar
a esquerda da vulgata marxista, também não conseguiu emancipar a direita, que
desde Camarate vive órfã do seu político carismático. O cavaquismo que se
seguiu foi bem criticado por V.P.V., porque representou a negação da política
através da tecnocracia, porque representou — até hoje — a menoridade moral e
intelectual da direita perante a esquerda, porque determinou — até hoje — que a
esquerda tem as ideias enquanto a direita faz as contas. Ora, se tivesse
mantido a crítica a Cavaco nestes termos políticos e ideológicos, os anos 80 e
90 de V.P.V. teriam sido proveitosos. Infelizmente, não resistiu à tentação e
caiu no seu instinto primordial: o incansável snobismo que se consubstanciou
num inaceitável desprezo pelo “homem de Boliqueime”.
Miguel Esteves Cardoso e Paulo
Portas, as caras de “O Independente”. O orgulhoso snobismo do jornal teve um
sucesso estrondoso. Esteves Cardoso, anos mais tarde, fez um mea culpa
Foto Arquivo
“A Capital”
A ELITE E OS INDÍGENAS
Lido à distância, o boçal snobismo
do “Independente” é ainda mais estranho: como é que a velha soberba snobe, com
aquele traço de lorde oitocentista, ainda foi a tempo de ser a base do
(alegado) renascimento da direita portuguesa dos anos 80 e 90? Como é que os
(alegados) renovadores da direita portuguesa se limitaram a dar uma roupagem
pop e pós-moderna aos velhos tiques snobes? E o que assusta é que este
orgulhoso snobismo do “Independente” teve um sucesso estrondoso, revelando como
as elites dos anos 80 e 90 não tinham mudado muito em relação às elites de
1950. Há um ponto de ligação entre o “Almanaque” dos anos 50/60 e de esquerda e
o “Independente” dos anos 80/90 e de direita. Na verdade, como tem dito António
de Araújo, a grande clivagem da sociedade portuguesa não é ideológica ou
religiosa, é social ou socialite; a clivagem não é entre direita e esquerda,
crentes e não crentes, é entre as pessoas que alegadamente têm pedigree e as
pessoas que alegadamente não têm esse pedigree. Elites versus “indígenas”.
Felizmente, o Miguel Esteves
Cardoso da velhice e das entrevistas (que me parece mais interessante do que o
Esteves Cardoso da meninice e das crónicas) já fez um espantoso mea culpa:
“Fomos muito pirosos nisso (ataque a Cavaco e a cavaquistas). Ao princípio,
achávamos graça à meia branca, era uma espécie de bullying armado em snobe, de
que me arrependo. É muito foleiro, mas éramos novos. Era desagradável o que
fazíamos (...) Hoje arrependo-me imenso. E gozar com a condição social da
pessoa, com o gosto da pessoa, não é nada conservador (...) Cavaco nunca pôs um
processo, nunca chateou, nunca mandou uma carta, mesmo quando foi muito
maltratado, foi impecável (...) Essas pessoas com que gozávamos, como o Macário
Correia, acabavam sempre por ganhar, porque eram superiores.”
Se quiser ser digna de respeito, se
quiser ser lida e ouvida, a direita deve reconstruir as suas bases a partir
desta autocrítica. Ser conservador não é o mesmo que ser snobe. Será que a
direita em 2018 está disponível para seguir o Miguel Esteves Cardoso da
velhice? Julgo que há sinais nesse sentido. Um mea culpa semelhante da parte de
V.P.V. é que nunca deu sinais de vida. V.P.V. mantém até ao fim um certo
orgulho no desdém que lançava sobre Cavaco primeiro-ministro e sobre Cavaco
Presidente. Este desdém era da ordem do patológico e do bocejante: era
patológico na sua virulência quase taberneira, era bocejante porque foi
repetido durante dezenas de anos em centenas de colunas idênticas. O neto do
doutor Pulido Valente e sobrinho do juiz Correia Guedes sentia uma patológica
necessidade de sublinhar as origens geográficas e sociais do primeiro-ministro
e do Presidente: o “camponês de Boliqueime” era “um político de província” com
a “subtileza do saloio”; o “menino de Boliqueime” era a encarnação dos vícios
do arrivismo: pequenez intelectual, ressentimento social, fome de poder e um
“desagradável exterior”. Note-se que Cavaco não foi o único alvo: Manuel Alegre
era um “lírico de província”, Francisco Lucas Pires encarnava a patética
“audácia provinciana”, Passos Coelho era “o menino de Massamá” (repare-se no
bocejo: “menino de Boliqueime”, “menino de Massamá”) e, claro, José Sócrates
era o “Zézito da Covilhã” ou o “tiranete da Beira”. Ao contrário de António
Barreto, V.P.V. nunca foi capaz de desenvolver um discurso que contemplasse o
lado positivo da ascensão social na política, na economia, nas letras. Aquele
que ascendia só podia ser “arrivista” ou “pato bravo”.
O desprezo por Cavaco Silva ou
pelos “empresários do Ferrari do Vale do Ave” só era suplantado pelo desprezo
por José Saramago. Podemos e devemos criticar o espírito sanguinário de
Saramago durante o PREC. Até podemos afirmar que não apreciamos o seu estilo
literário. O que não podemos fazer é tratar um Nobel como um “trolha ou
tipógrafo semianalfabeto”. Saramago venceu o Nobel da Literatura, mas V.P.V.
fazia questão de salientar que estávamos perante uma “criatura” que “não
estudou”, sem a “escolaridade obrigatória”. O ridículo desta argumentação
chegou ao humor involuntário quando V.P.V. afirmou que a importância que os
portugueses davam a Saramago era a prova inequívoca da “saloiice portuguesa”:
“Que Saramago fosse o único escritor de língua portuguesa a receber essa mais
do que duvidosa distinção não o acrescenta em nada, não acrescenta em nada a
língua portuguesa. Só a patriotice indígena (de resto, interessada) a pode
levar a sério” (“Saramago”, in “Público”, 27 de junho, 2010). A má-fé deste
raciocínio é inequívoca e cristalina. O único “saloio” nesta discussão é o
próprio V.P.V.. Durante décadas fez questão de desprezar ou parodiar as origens
humildes de um político e de um escritor.
O snobismo poderia ter sido uma
alavanca literária, mas V.P.V. nunca teve o talento e a subtileza para filtrar
literariamente os seus preconceitos. Ou seja, não seguiu Orwell. Como qualquer
representante da elite imperial inglesa, Eric Blair (nome verdadeiro de Orwell)
era racista, antissemita e transpirava snobeira. O cheiro do proletariado
incomodava-o. Os seus “Diários” são claros a este respeito. Quando escrevia
nestas páginas privadíssimos e confessionais, não escondia o desprezo pelos
pobres. Todavia, Blair tinha consciência da perversidade destes impulsos e, em
consequência, educou-se contra eles. Essa educação chama-se George Orwell. O
famoso “O Caminho para Wigan Pier” é uma estrada de Damasco que Blair/Orwell
impôs a si mesmo com o objectivo de domar o seu snobismo. Não, não é
hipocrisia, é literatura.
José Cardoso Pires e José Saramago,
na Marcha pela Paz, em Lisboa, em 1983. Pulido Valente desprezava o Nobel da
Literatura e considerava que a importância que o país lhe dava era a prova
inequívoca da “saloiice portuguesa”
Rui Ochôa
Em Portugal, esta lição orwelliana
foi seguida por José Cutileiro, e não por V.P.V.. Através das crónicas do
pseudónimo A. B. Kotter, “Bilhetes de Colares”, Cutileiro fez a catarse
orwelliana da soberba. Estas crónicas forçam o convívio da base e do topo da
sociedade portuguesa, forçam o contacto entre um ex-comando da Amadora (o
secretário pessoal de Kotter) e um conjunto de amigos do eixo Lisboa-Cascais.
Através deste fictício lorde inglês radicado entre nós, Cutileiro perfura a
sobranceria do topo e a chico-espertice da base com o mesmo bisturi irónico.
Por exemplo, constata que é impossível compreender o incómodo sentido pela
elite portuguesa perante a ascensão de um self made man. No lado oposto, aponta
o dedo à permanente desresponsabilização do Zé Povinho. Esta igualdade de
tratamento cria uma espécie de catarse social através do riso. Rimo-nos das
manias dos pelintras e dos snobes, rimo-nos da meia branca da base e da
afetação nasal do topo, rimo-nos das Vanessas e das Caetanas. Este riso
partilhado descobre um espaço comum, uma ponte entre betos e chungas, um
respeito mútuo entre queques e arrivistas que deixam de ser queques e
arrivistas pela ação do humor: passam a ser simples compatriotas, passam a ser
portugueses. Cutileiro procurou assim neutralizar a carga explosiva das
diferenças de classe. Vasco, ao invés, alimentou sempre essa carga, viveu para
ela. Muitas vezes, V.P.V. assemelhava-se à mãe de Kotter, a fascista italiana
que largava farpas como “Portugal é Upper Morocco”. Nas crónicas de Cutileiro,
estas boutades são o momento humorístico de uma atmosfera já bastante cómica.
Nas crónicas de Vasco, boutades como “Portugal é o Marrocos de Cima” eram a
própria substância do pensamento, ou pseudopensamento.
V.P.V. nunca se adaptou ao país
democrático e igualitário que perfurou aquela Lisboa pequenina e oitocentista
do salazarismo, acabando por se refugiar numa espécie de exílio oitocentista.
Fechou-se em casa para ler romances oitocentistas, de Austen a Eça. Exilou-se
em Benfica ou na Avenida de Paris para se defender do “Marrocos de Cima”, da
vulgaridade do povo do Sul que votava Cunhal, da vulgaridade do povo do Norte
que ia à missa, da americanização da sociedade, da “vulgaridade democrática”,
da meritocracia. V.P.V. nunca se adaptou bem à ideia de que o estatuto numa
sociedade democrática é conquistado e não herdado. Esta fuga da realidade
provocou comparações absurdas (comparou o turismo algarvio ao nazismo e as
eleições autárquicas às invasões napoleónicas) e criou uma grelha de análise
desfasada da realidade. Isto não seria um problema se não estivéssemos a falar
do autoproclamado realista da imprensa portuguesa.
Numa das entrevistas da velhice,
até teve a candura ou coragem para reconhecer que gostava da pequenez da
capital dos anos 50 e 60. A elite lisboeta, segundo Vasco, era um mundo
“familiar, quase doméstico” em que toda a gente se conhecia pelo nome. E, de
facto, V.P.V. continuou a ser “o Vasco” para meia Lisboa. A candura desta
entrevista faz sentido, porque a tal claustrofobia salazarista tinha os seus
benefícios para um jovem privilegiado como Vasco. Como vimos, teve as cunhas
certas nas alturas certas (não ir à tropa, participar em jornais e revistas,
bolsa da Gulbenkian). E a cunha mais significativa foi aquela que ele próprio
colocou na PIDE em 1972.
Depois de voltar de Oxford
(1968-72), V.P.V. concorreu a uma posição docente no Instituto de Ciências
Económicas e Financeiras (futuro ISEG). Devido à demora da resposta, certamente
retardada pela PIDE, V.P.V. resolveu enviar uma carta à polícia política. Nessa
missiva, constatou que o seu provimento ao lugar de segundo assistente do
Instituto de Economia de Lisboa estava atrasado, o que podia resultar de más
informações prestadas à PIDE em relação ao seu perfil político; V.P.V. declarou
que abandonara há sete anos toda a atividade política, e que essa atividade até
tinha sido escassa; afirmou ainda que esteve sempre integrado nos princípios da
Constituição de 1933 e apresentou duas testemunhas abonatórias: o tio Correia
Guedes, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, e António Martinha,
antigo diretor dos serviços de censura. Martinha garantiu à PIDE que V.P.V.
iria manter um bom comportamento e o juiz Correia Guedes declarou que o
percurso político do sobrinho devia ser visto à luz de uma péssima influência
familiar (o lado materno).
Pouco depois, V.P.V. foi ouvido na
António Maria Cardoso, onde declarou que já não se revia naquilo que tinha
escrito na “O Tempo e o Modo” e no “Quadrante” e que, por isso, não via razões
para a PIDE travar a sua colocação no Instituto. Em fevereiro de 1973, a
polícia política dirigiu um ofício à Direção-Geral do Ensino Superior e
Belas-Artes com a seguinte mensagem: não via razões para que V.P.V. não pudesse
ser docente naquele instituto. Esta história, revelada pelo jornal “Portugal
Hoje” no dia das eleições de 5 de outubro de 1980, e confirmada pelo próprio em
entrevista (28 de junho de 2016), é reveladora. É óbvio que é uma mentira, é
óbvio que V.P.V. nunca abandonou aquilo que escreveu no passado, é óbvio que a
carta é um mero expediente para conseguir um emprego e que não prejudicou
ninguém, e também me parece óbvio que devemos evitar julgamentos moralistas
precipitados: aquela e outras humilhações perante o regime faziam parte do
próprio ar que se respirava. Não pactuar com nada implicava o exílio. Mas não
era preferível haver democratas não exilados e infiltrados na própria estrutura
do Estado? Contudo, é evidente que podemos registar a hipocrisia: na criação da
sua persona pública com pedigree de esquerda, Vasco socorreu-se do nome Pulido
Valente, mas, nos corredores do poder, não hesitava em recorrer ao nome Correia
Guedes quando dava jeito.
Como é óbvio, V.P.V. não estava
sozinho nesta hipocrisia. Na verdade, toda esta geração está marcada por uma
radical hipocrisia: a juventude que escrevia contra o sistema no “Grafia”, “Via
Latina”, “Quadrante” e na “O Tempo e o Modo” era a mesmíssima juventude que
tinha todas as armas sociais para ser beneficiada por esse sistema — até porque
sabiam que a PIDE dificilmente tocava nos filhos da elite, até porque sabiam
que a PIDE só era implacável à partida com os miseráveis e as miseráveis que se
alistavam no PCP. E, quando deixou de ser a juventude, quando passou a ser o
próprio statu quo, esta geração começou a criticar a meritocracia no exato
momento em que gente nova — fora deste circuito fechado lisboeta — começou a
aparecer na política, na imprensa, nos livros. V.P.V. passou a vida a criticar
o modo de ser dos portugueses, os tais “indígenas” que, segundo ele, só sabem
viver do favorzinho. Sucede que V.P.V. foi, ele mesmo, um superindígena.
Personalidade. Vasco Pulido Valente
não é adepto do pessimismo, mas sim do cinismo. O Portugal de Vasco Pulido
Valente não tem momentos de verdadeiro desespero e tragédia, não há abismo, dor
e violência
Foto Arquivo
“A Capital”
ERA UMA VEZ EÇA
Após Camarate, ao longo dos anos
80, 90, 2000 e 2010, esta miopia snobe encontrou na patine queirosiana a
justificação intelectual. Por outras palavras, uma certa vulgata queirosiana
passou a ser a narrativa de V.P.V..
Eça foi um escritor extraordinário
que criou personagens e emoções universais, o choro e vergonha de Afonso, a
ambiguidade de Gonçalo, o desejo de Amaro. O erro da narrativa de V.P.V. está
na transformação dos livros de Eça em oráculos eternos e infalíveis sobre o
nosso século XIX e até sobre a nossa (alegada) identidade. O erro não é
exclusivo de V.P.V.. Aliás, esta eternização de “As Farpas” ou de “Os Maias”
parece-me o erro central da nossa elite. Daqui nasce o vício intelectual que é
vermos Portugal e os portugueses apenas e só através das personagens moles e
cobardes de Eça, como o Conde de Abranhos ou o Conselheiro Acácio; daqui nasce
a enorme patine neoqueirosiana que é hegemónica em Portugal e que teve em
V.P.V. o seu ponto alto; uma patine que cria uma distância irónica e cínica
entre o escritor e o país e que assenta na presunção de que Portugal foi, é e
será sempre uma choldra imutável e irreformável. Ora, como bem explicou
Filomena Mónica, a imagem do século XIX deixada por Eça “não é verdadeira”. O
que, do ponto de vista de Eça, não tem qualquer importância. Eça “não era, nem
se pretendia, um sociólogo. E a um romancista não se exige a fotografia de um
período”. Antes de tudo, gostar de Eça passa por libertá-lo da responsabilidade
de ser o grande sociólogo e oráculo objetivo de uma alegada identidade
portuguesa que alegadamente ficou plasmada para sempre nos seus livros.
Esta visão queirosiana tem dois
grandes erros. O primeiro é a incapacidade de aceitar a evolução positiva do
país. Como Rui Ramos e Filomena Mónica já demonstraram, as crónicas e romances
de Eça são injustos para a evolução notável que o país conheceu entre 1851 e
1908. V.P.V. incorreu na mesma injustiça para o período 1950-2000. Se até era
compreensível que os seus complexos de esquerda o impedissem de constatar as
melhorias verificadas entre 1950 e 1974, já não era compreensível a cegueira em
relação às melhorias registadas na democracia. O que é trágico é que V.P.V.
perdeu no terreno que ele próprio escolheu: os factos. Se olhasse com respeito
para os factos, nunca poderia ter mantido durante décadas a narrativa “isto vai
de mal a pior”. Para desarmarmos esta narrativa, só temos de passar cinco
minutos no site da Pordata criado por António Barreto: em todos os indicadores
mensuráveis, a vida política, social, económica, cultural e educativa dos
portugueses melhorou durante o tempo de vida de V.P.V.; quando em 1941 o
pequeno Vasco nasceu em Lisboa, ainda havia portugueses a morrer de malária nos
campos do Sado e do Baixo Mondego. Moral da história? Nas colunas do
autoproclamado realista-mor do reino, os factos foram sempre vencidos pela
pós-verdade do snobismo (contra o cavaquismo) e pelo spleen queirosiano (contra
a democracia em geral).
Repare-se que esta vulgata
queirosiana de V.P.V. não era muito diferente da vulgata neorrealista: tal como
os neorrealistas, V.P.V. só concebia um povo português pobre, passivo, mole,
alquebrado, estático, sem iniciativa — os tais “indígenas”. Claro que isto
impedia a criação de um discurso marcado pela esperança e pela redenção
coletiva através do sucesso e da melhoria das condições de vida. Era e continua
a ser uma narrativa que deixa o país num vórtice perpétuo, é como se Portugal
fosse o James Belushi de “Groundhog Day”, um país preso no mesmo dia medíocre
que se repete todos os dias, um Purgatório sem saída, um Purgatório onde a
escadaria até ao Paraíso é uma impossibilidade genética.
O segundo grande erro da vulgata
queirosiana é ainda mais profundo. Ao contrário do que se pensa, V.P.V. não é
adepto do pessimismo, mas sim do cinismo. O Portugal de V.P.V. não tem momentos
de verdadeiro desespero e tragédia, não há abismo, dor e violência. Não há
portugueses enquanto vítimas de violência e, sobretudo, não há portugueses
enquanto fautores da violência. A falácia dos brandos costumes vem daqui: vem
do mainstream queirosiano simbolizado por V.P.V., vem do próprio Eça. Quando se
olha de longe, não se compreende como é que Eça nunca escreveu romances sobre o
período caótico e violento que o país viveu antes do seu tempo (1800-1850). É
um vazio incompreensível que durou até hoje, diga-se. Podemos imaginar uma
Rússia sem a “Guerra e Paz” de Tolstoi? Não. Podemos imaginar uma Espanha sem o
“3 de Maio de 1808” de Goya? Não. Mas podemos imaginar um Portugal com um
deserto de reflexão sobre aquele período trágico e violento. Esta amnésia em
relação à nossa violência é uma exigência do spleen queirosiano. Se não tem
força ou engenho para ser um caso de sucesso económico, o português mole e
cobarde de Eça também não tem coragem e engenho para ser um homem de barba rija
e violento. No fundo, o português criado por Eça e mantido ao longo de dois
séculos por intelectuais como V.P.V. tem de ser uma figura desinteressante. E a
violência, como se sabe, é interessantíssima. Escrever sobre portugueses
violentos ou vítimas de violência seria incorrer numa heresia à luz da
queirosianismo.
Onde está a tradição de livros
sobre as invasões, sobre as guerras civis, sobre a primeira guerra colonial
(Afonso Costa), sobre a segunda guerra colonial (Salazar)? Onde estão os livros
sobre a figura do negreiro português, o maior traficante de seres humanos da
história? Onde estão os livros sobre a violência doméstica ou sobre o suicídio
alentejano? V.P.V. pactuou com este silêncio cómodo. Como historiador, escreveu
apenas dois livros minúsculos e menores sobre este período (um sobre as
invasões, outro sobre a guerra civil). Como cronista, manteve sempre a
narrativa da brandura e cobardia do povo português. Isto porque escrever sobre
estes homens, sobre estes violadores e negreiros, sobre estes soldados e
guerrilheiros, sobre estes suicidas e aventureiros, implicava rasgar a grande
falácia queirosiana, implicava assumir que o português pode ser uma personagem
interessantíssima, implicava reconhecer que Portugal não está destinado ao
Purgatório onde nada de passa.
Ao longo de milhares de crónicas,
V.P.V. ajudou a perpetuar este mito da condição desinteressante e branda dos
portugueses, não teve a coragem para descer até ao inferno ou infernos do país.
Na sua cabeça, um livro negro e violento sobre Portugal como “Longe do Mar” de
Paulo Moura, “Caderno de Memórias Coloniais” de Isabela Figueiredo, “Meças” de
Rentes de Carvalho ou “Hoje Estarás Comigo no Paraíso” de Bruno Vieira Amaral é
tão estranho como a luminosidade otimista da Pordata ou “Portugal, Retrato Social”
de Barreto. É assim o cinismo queirosiano de V.P.V.: exige um ramerrame
pachorrento onde nada se passava, exige um purgatório sem acesso ao paraíso da
prosperidade e, sobretudo, sem acesso à catarse coletiva que se esconde no
inferno. Um país sem acesso à esperança do paraíso até pode sobreviver. O mesmo
já não se passa com um país sem acesso ao seu inferno, à consequente catarse
que une através da dor. Essa catarse da violência que sofremos e que infligimos
aos outros é o sopro patriota que nos redime, que nos une, que nos salva do
nacionalismo dos Salazares, da revolução dos Cunhais, do ressentimento dos
miseráveis e da soberba dos snobes.
Texto originalmente publicado a 18-02-2018
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