quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Carlos Coutinho - Fátima (em árabe فَاطِمَة ٱبْنَت مُحَمَّد)

Carlos Coutinho

2024 09 04
 
MAL sabia a filha mais nova de Maomé, uma muçulmana dos quatro costados, Fátima (em árabe فَاطِمَة ٱبْنَت مُحَمَّد, mas em termos romanizados Fāṭimah bint Muhammad) que o seu nome haveria de identificar um catolicíssimo e imponente santuário no luso distrito da Leiria que até papas e bispos aos molhos já teve em exercício litúrgico, nas peregrinações anuais e nas mensais, somando todas muitos milhões de devotos, uns calçados e outros descalços, uns em pé e outros a rastejar ou mesmo de joelhos.

   A Senhora que veio cá chama-se Maria e teve pelo menos um filho que morreu crucificado no Gólgota, mas revirginou-se para se exceder em pureza e poder vir dez vezes à Cova da Iria, dentro de um manto branco absolutamente virginal e etéreo, como tudo que sai do céu. 

   Mergulhou em voo vertical de olhos abismados pelo azul celeste e poisou no ramo cimeiro de uma azinheira, porque não trazia sapatos que pudessem pisar o chão pedregoso da charneca insada de sardaniscas, lacraus e formigas abusadoras.

   Escolheu sempre os dias 13, por serem os do azar e, talvez, por pensar que com o azar dos outros podia ela bem, mas na quarta partida, por se ter distraído a folhear a agenda, só cá apareceu no dia 9, coisa de que papas e bispos guardaram para si e impuseram como segredo teológico, por que se estava em 1917 e havia guerras por todo o lado. Até em certos conventos.

   Como sempre, a S.ª D. Maria não resistiu a falar de profecias inverosímeis aos três pastorinhos analfabetos que passaram a ir ao seu encontro em traje domingueiro e penteadinhos a rigor. Diz quem viu que, numa das “aparições” o Sol tremeu, como se tivesse entrado em pânico ou o acometesse um orgasmo cósmico. Com o tempo, o santuário de Fátima legitimou os fabulosos negócios da água benta vendida ao garrafão e em frasquinhos popularuchos, aliviado de impostos e sempre enriquecendo mais os cofres do banco do Vaticano.

   Enfim, a S.ª D. Maria pode ainda gabar-se de glórias e milagres às dúzias, mas a verdade é que estará sempre muito longe de possuir uma biografia palaciana, mundana e celestial como a da verdadeira Fátima, a que nasceu em Meca e foi morrer a Medina, tendo vivido menos de 30 anos e dado à luz dois filhos que foram califas. A sua mãe chamava-se Cadija e fora a primeira esposa do primeiro escolhido de Alá, Maomé. Quanto a ela, apenas se casou com Ali, que foi o quarto califa para os sunitas e o primeiro para os xiitas.

   Antes, no entanto, passou por grande pobreza, azar que só despareceu quando a comunidade a que pertencia pôde comprar terras e propriedades, em resultado das primeiras conquistas sob comando de Maomé. Presenteou Ali, o marido, com três filhos. A saber, Haçane, o segundo imã xiita depois de seu pai e, por um curto período, também o califa dos muçulmanos; e Huceine, o terceiro imã xiita, cujo martírio em Carbala deixaria uma impressão indelével tanto na psique xiita quanto na história islâmica como um todo; e Moḥassen (ou Moḥsen, morto muito jovem). Fátima também deu à luz duas filhas, Umm Cultum e Zainabe.

   Os relatos conhecidos dizem que em seus últimos dias, Maomé juntou Ali, Fátima e seus dois filhos sob seu manto e disse-lhes: “Deus deseja remover a impureza de vocês, ó povo da casa [AHL AL-BAYT], e purificar-vos completamente você” (Q 33:33). Isso confirmou o estatuto sagrado de todos os cinco membros da casa de Maomé e, como resultado disso, eles são muitas vezes designados como o Povo da Capa (ahl al-kisāʾ, também conhecido em árabe como al khamsa e em persa como panj tan, sendo que ambos significam simplesmente “os Cinco”).

   Quando Maomé estava no seu leito final, em 632, Fátima e Ali cuidaram dele, enquanto a liderança da comunidade estava sendo decidida noutro lugar pelos associados de Muhammad Abu Bakr (falecido em 634), Umar Ibn AL-Khattab (falecido em 644) e seus aliados. Assim, foi implicada nos eventos que levaram à divisão entre os ramos sunita e xiita. Morreu jovem, um ano depois do pai. Diferem as opiniões quanto ao local onde ela foi enterrada.

    Para alguns Fátima foi enterrada no cemitério de Baqi, perto da casa de Muhammad; outros dizem que ela foi enterrada no terreno de sua mesquita continuando muito reverenciada pelos muçulmanos, especialmente pelos xiitas. Entre os outros nomes pelos quais ela é conhecida estão al-Zahra, “a Radiante”, al-Mubaraka, “a Abençoada” e al-Tahira, “a Pura”. 

   De acordo com as hagiografias xiitas medievais, seu casamento com Ali foi celebrado no céu e na Terra, descendendo todos os imãs xiitas desse casal. Também houve sempre quem dissesse que, por causa de sua pureza, Fátima não menstruava, como acontece s outras mulheres. Além disso, ela será a primeira a entrar no paraíso após a ressurreição e, como à Sr.ª D. Maria no Cristianismo católico, intercederá por aqueles que a honram e a seus filhos e descendentes, os imãs. 

   Embora o nome de Fátima não seja mencionado no Alcorão, os comentários xiitas apontam passagens que acreditam conter referências ocultas a ela, como Q 55:19, onde os dois oceanos de água que fluem juntos são interpretados como o reencontro de Ali e Fátima após uma disputa.

   Fátima deriva da raiz f–t–m, que significa “separar” ou “desmamar uma criança”. De acordo com uma tradição – da qual existem  algumas variantes –, a sabedoria de nomeá-la Fátima lucidez suprema está no facto de seus “descendentes” (dhurriyya), os xiitas e os devotos (muḥibb) de Fátima, serem separados de (fuṭima) o Fogo. Há também a crença de que uma das qualidades de Fátima é ser separada de todo o mal. O Profeta teria dito em várias ocasiões que Fátima mantém seus filhos e seus amigos e seguidores fora do alcance do Diabo. 

   De acordo com um hadith registado pelo imã al-Ṣādiq, Fátima tem nove nomes diante de Deus: Fátima, al-Ṣiddīqa, al-Mubāraka, al-Ṭāhira, al-Zakiyya, al-Rāḍiya, al-Marḍiyya, al-Muḥaddatha e al- Zahrāʾ. O facto de tais nomeações haverem sido fornecidas por Deus e consideradas atributos de Fátima afirma a sublime nobreza desses nomes. 

   Nas tradições esotéricas, a virgindade das deusas e as manifestações terrenas do sagrado feminino não se restringem à virgindade física. Possuem também conotações transcendentes e metafísicas, como ser inatingível, impecável, prenhe de possibilidades ocultas; ou, noutro nível, indeterminação e impenetrabilidade. Nesse mesmo sentido, a virgindade é vista como condição básica para a realização da plena recetividade feminina (qābiliyya), no sentido de estar pronta para suportar o peso do Verbo Divino e do Espírito Santo. A recetividade da Virgem Maria (Maryam) para levar a Palavra Divina, tanto na tradição cristã quanto de acordo com o Alcorão pertence a esta categoria. 

   A sunna e a literatura hadith enfatizam a virgindade de Fátima ao lado da de Maria. É por esta razão que ela recebe o título de batūl (comparável a virgem, embora também signifique uma mulher que não menstrua

   O nome Fátima é muito comum entre as mulheres muçulmanas. Na África negra utilizam-se as variantes Fatimata, Fatoumata e Fatou.

   A hamsá, ou Mão de Fátima, é um talismã usado por alguns muçulmanos que acreditam que ele pode afastar o mau-olhado. Também é usado como talismã no Judaísmo, por vezes adornado com estrelas da David, já que a mãe de Jesus era uma judia de Nazaré, tal como o Filho. Segundo a tradição judaica, esta é a mão de Miriam, irmã de Moisés e Arão, profetas que conduziram o Povo Escolhido, o povo judeu, do Egito até à Terra Prometida.

   De notar que Medina, a cidade que Fátima escolheu para ir morrer, tornou-se especialmente ilustre ao fornecer a um abutre português que viria a ser ministro das Finanças o nome com que subscreveu a cativação de várias verbas estabelecidas no Orçamento do Estado, gerando penúrias de que ainda estamos a sofrer.

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