? Carlos Coutinho
ALGUMA vez alguém havia de ter sorte na sua encomenda. Ontem foi o meu furão de alimentos citáveis que cheirou e abocanhou delícias como esta que Jorge Luís Borges guardou na sua coletânea de contos que intitulou como “Livro de Areia” e que tem uma particularidade tão antiborgesiana quanto misteriosa, “porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim”. Foi, de resto, o que facultou a Albano Martins a grande oportunidade dar vazão ao seu voraz apetite de sempre pôr os pontos no is, escrevendo:
“Há, na praia, um livro aberto onde se contam as histórias que ali tiveram seu fim e seu princípio. Cada grão de areia é uma letra dessa história. Levo para casa um punhado dessa areia.”
Já Sophia de Mello Breyner Andresen sonetava na mesma altura de modo bem diverso. Assim:
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Nada disso obstou, no entanto, a que Lisboa fosse afogada por turistas, como antes acontecera a Veneza, bem como à sua herdeira Barcelona, e se prepara para o litoral algarvio. É o sobreturismo (overtourism, para os anglofalantes) de que ontem falava António Guerreiro numa assustada e assustante crónica jornalística, informando que na cidade dos doges “o ratio atual, segundo dados oficiais, é de 73,8 turistas por cada habitante”.
Na página o lado, também no “Público”, numa saborosíssima prosa com que não estou de acordo em menos de 10% das asserções, Ana Cristina Leonardo discorre sobre o uso do gerúndio no Brasil e no Alentejo, onde os respetivos falantes locais se arrogam no direito de mexerem no nosso idioma como lhes dá mais jeito.
Só que mexem também noutras coisas, mas disso evita a cronista falar. E sempre vai dizendo com algum excesso que “temos uma língua abastardada, desrespeitada” e que os brasileiros ultrapassam os 220 milhões, bem como “aqui no monte os avós queixam-se”, desabafando da seguinte forma: “Os meus netos no infantário já falam brasileiro.”
https://www.facebook.com/carlos.coutinho.
Sem comentários:
Enviar um comentário