quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Crónica de Carlos Coutinho: PODE o ponto de vista explicar tudo, evidentemente

* Carlos Coutinho

PODE o ponto de vista explicar tudo, evidentemente. Homero, que não escreveu nem um único verso da “Odisseia”, embora o culpem disso há três milénios, é citado como havendo deixado para a posteridade os versos que a contemplação do mar lhe inspirava, neles pondo a sua ideia de humanidade: “Os homens são como as ondas /Quando uma geração floresce, a outra declina.”

   Virgílio, logo a seguir, no seu latim puríssimo, também cedeu à inspiração produzida pelas imagens: “Enquanto os rios correrem para o mar, os montes fizerem sombra aos vales e as estrelas fulgirem no firmamento, deve durar a recordação do benefício recebido na mente do homem reconhecido."

   Petrarca, o italiano inventor do soneto como poema de 14 versos, definia-o como “a forma perfeita” da poesia. E escreveu:   “Amor, comigo noutro tempo estavas / Entre estas margens do pensar amigas / E p'ra saldar nossas razões antigas / Comigo e o rio arrazoando andavas: / Floras, frondes, sombras, ondas, antros, cavas.” 

   Também Gil Vicente pôs por escrito: "Vi venir serrana, gentil, graciosa, cheguei-me per'ela com grã cortesia.”

   Já o Zé Gomes Ferreira confessava: “Do que sou /ao que penso /paira um voo / suspenso… // Mas tão subtil /que nem ata / o pântano vil / à nuvem de prata. // (Homem: não tenhas vergonha / de ser pântano como eu. / o pântano é que sonha / a nuvem do céu).”   

   Ora, o velho Casc, numa das suas crónicas mais citadas, confessa que se ajoelhou maravilhado e frisa: “Nem um único exemplar da curial pilosidade púbica se contorcia nas proximidades da grande ranhura erótica, embora o suave cômoro venusino iniciasse curialmente, com absoluto langor imaginário, a maciíssima planura abdominal que uma cratera apagada vesuvianamente definia lá longe.” 

  Nas artes plásticas a coisa também não difere muito. Botticelli, por exemplo, quase enlouqueceu enquanto pintava “O Nascimento de Vénus”, porque o corpo da deusa ia ficando excessivamente perfeito, e Picasso, para esquartejar um cavalo e um toiro na “Guernica”, teve de os acompanhar de outros fragmentos vivos. Até de humanos gritantes.

2024 09 09

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DOS múltiplos e interessantíssimos efeitos nunca bem explicados que são produzidos pelas imagens, como aleguei no meu apontamento de anteontem, recordo um fragmento de “A Epopeia de Gilgamesh” na versão de um grande poeta português já falecido, Pedro Tamen, que se serviu da tradução de António Ramos para nos lembrar que, muito antes de Homero e Virgílio, alguém grafou em tabuinhas de barro, 1 500 anos antes da “Ilíada” – ou “Odisseia”, como queiram –  que em Uruk vivia Gilgamesh e que “ninguém prevaleceu contra ele, pois ele é forte como uma estrela do céu". 

   E sentenciou:
   "Vai a Uruk ter com Gilgamesh e exalta a força desse selvagem. Pede-lhe que te dê uma cortesã, uma prostituta do templo do amor; regressa com ela, e o seu poder de mulher dominará esse homem. Quando ele descer para beber nos poços, ela estará nua; e quando ela vier fazer-lhe mal, há-de abraçá-la; e então os animais bravios haverão de rejeitá-lo”. 

   As tabuinhas foram encontradas e traduzidas seguidamente para aramaico, tendo o escriba depositado o seu trabalho no palácio de Assurbanípal, “o Rei do Mundo” que, de facto, só era rei da Assíria, o que dá para pensar que, “quando os deuses criaram Gilgamesh”, o que fizeram foi, afinal, “o último grande rei do império assírio, um temível guerreiro que devastou o Egito e Suso” e que também “juntava livros numa biblioteca fabulosa” com “narrativas históricas sobre o seu tempo, poemas, textos religiosos científicos”, como e os considerava, após ter esquadrinhado “os arquivos das cidades onde essa cultura florescera, como Babilónia, Uruk ou Nippur”, filas e filas de “tabuinhas esbranquiçadas, em forma de pequenas almofadas cobertas de minúsculas incisões, de desenho tão apertado que evocam um formigueiro emaranhado e fervilhante”.

   Ou seja, “quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo perfeito. Shamash, o glorioso Sol, dotou-o de beleza; Adad, o deus da tempestade, dotou-o de coragem; os grandes deuses fizeram perfeita a sua beleza, que ultrapassava todas as outras e que aterrava como um grande touro selvagem. Dois terços o fizeram deus e um terço, humano. Em Uruk ele construiu muralhas, uma grande fortaleza e o bendito templo Eanna, para Anu, o deus do firmamento, e para também para Ishtar, a deusa do amor.”

   Todavia, também diz o supra-referido escriba que “Gilgamesh andou por terras estrangeiras, através do mundo, mas até regressar a Uruk ninguém encontrou que pudesse resistir aos seus braços. Porém, os homens de Uruk murmuravam em suas casas”, que “Gilgamesh toca o sino para se divertir, a sua arrogância não tem limites, nem de dia nem de noite. Nenhum filho é deixado com seu pai, porque Gilgamesh os tira a todos, mesmo às crianças. E, contudo, o rei deveria ser um pastor para o seu povo. O seu desejo não deixa uma só virgem para aquele que ama – nem a filha de um guerreiro, nem a mulher do nobre; contudo, ele é o pastor da cidade, sábio, gracioso e resoluto.”

   Daí que também eu tenha alguns segredos a preservar até não sei quando – por exemplo, não voltarei a certos lugares que foram muito importantes para mim nos últimos anos. 

      Momentos do pastor "dois terços divino e um terço humano"

2024 09 10 

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