domingo, 8 de setembro de 2024

(238) A Idade do “mal radical”, sermão de Chris Hedges

Chris Hedges, pastor presbiteriano ordenado, jornalista vencedor (2002) de um Prémio Pulitzer, autor de vários livros na coleção dos mais vendidos (bestsellers) do The New York Times, professor em várias universidades (NYU, Princeton U., Columbia U.), proferiu domingo, 13 de outubro de 2019, na Igreja Presbiteriana de Claremont, em Claremont, Califórnia, o seguinte sermão:  


“Foi Immanuel Kant quem cunhou o termo "mal radical". Era o privilégio de colocar o interesse próprio de cada um acima dos interesses dos outros, reduzindo efetivamente aqueles ao seu redor a meros objetos a serem manipulados e usados ​​para os seus próprios fins. Hannah Arendt, que também usou o termo "mal radical", percebeu que ele era muito mais grave do que isso de o reduzir ao tratamento dos outros como objetos. O mal radical, escreveu ela, tornava supérflua a existência de um grande número de pessoas. Elas deixavam de possuir qualquer valor. A partir da altura em que não podiam ser utilizadas pelos poderosos, elas eram simplesmente descartadas como lixo humano.

Vivemos numa era de maldade radical. Os arquitetos deste mal estão a destruir a terra e a conduzir a espécie humana à extinção. Estão a despojar-nos dos nossos direitos civis mais básicos e das nossas liberdades. Estão a orquestrar a crescente desigualdade social, concentrando a riqueza e poder nas mãos de uma meia dúzia de oligarcas globais. Estão a destruir as nossas instituições democráticas, transformando os cargos eleitos num sistema de suborno legalizado, atulhando os nossos tribunais com juízes que invertem os direitos constitucionais, de modo a possibilitar que as grandes corporações possam investir todo o dinheiro que quiserem em campanhas políticas, disfarçado como direito de petição ao governo ou como uma forma de garantir a liberdade de expressão. A sua conquista do poder vomitou demagogos e vigaristas, incluindo Donald Trump e Boris Johnson, cada um deles só por si representando a distorção de uma democracia fracassada. Estão a transformar as comunidades pobres da América em colónias militarizadas, onde a polícia realiza campanhas letais de terror e usa o instrumento contundente do encarceramento em massa como uma ferramenta de controle social. Estão a financiar e a travar guerras sem fim no Médio Oriente e a desviar discricionariamente metade de todos os gastos para um exército inchado. Estão a colocar os direitos da corporação acima dos direitos do cidadão.

Arendt viu o mal radical de um capitalismo corporativo, no qual as pessoas se tornaram supérfluas - trabalho excedente, como disse Karl Marx - empurradas para as margens da sociedade onde elas e os filhos não são mais considerados como tendo qualquer valor, valor sempre determinado pela quantidade de dinheiro produzido e acumulado. Mas, como o Evangelho de Lucas nos lembra, "o que é valorizado pelos seres humanos é uma abominação aos olhos de Deus".

Quem são aqueles que nos sacrificam no altar do capitalismo global? Como é que conseguiram acumular o poder de nos negar uma voz, de insistir que a Terra é uma mercadoria inerte que eles têm o direito de explorar até que o ecossistema que sustenta a vida entre em colapso e a espécie humana, juntamente com a maioria das outras espécies, se extinga?

Esses arquitetos do mal radical estão aqui desde o começo. São os proprietários de escravos que amontoavam homens, mulheres e crianças nos porões dos navios e os vendiam em leilões em Charleston e Montgomery, separando as famílias, retirando-lhes os seus nomes, idioma, religião e cultura. Eles usavam chicotes, correntes, cães e patrulhas de escravos. Eles orquestraram o holocausto da escravidão e, quando a escravidão foi abolida, depois de uma guerra que deixou 700.000 mortos, usaram o empréstimo de condenados (1) - outro nome para a escravidão - juntamente com os códigos de linchamento e os códigos negros (2), para realizarem um reinado de terror que ainda hoje continua nas nossas cidades desindustrializadas e nas nossas prisões. Corpos pretos e castanhos, quando estão nas ruas das nossas cidades decadentes, não têm qualquer valor para os nossos senhores donos de corporações, mas presos em gaiolas, cada um deles gera 50 ou 60 mil dólares por ano. Algumas pessoas dizem que o sistema não funciona. Estão errados. O sistema funciona exatamente como foi projetado para funcionar.

Esses arquitetos do mal radical são as milícias brancas e as unidades do Exército que roubaram a terra, dizimaram as manadas de búfalos, assinaram os tratados que rapidamente foram violados e realizaram uma campanha de genocídio contra os povos indígenas, prendendo em acampamentos os poucos que permaneceram como prisioneiros de guerra. São os pistoleiros, agentes da Baldwin-Felts e da Pinkerton que mataram, às centenas, trabalhadores americanos que lutavam para se organizarem, forças do mesmo tipo que hoje supervisionam o trabalho servo de trabalhadores na China, Vietnam e Bangladesh. São os oligarcas, J.P. Morgan, Rockefeller e Carnegie, que pagaram para esses rios de sangue e que hoje, como Tim Cook, da Apple, e Jeff Bezos, da Amazon, acumulam fortunas surpreendentes à custa da miséria humana.

Conhecemos esses arquitetos do mal radical. Eles são o DNA do capitalismo americano. Podemos encontrá-los nas secretárias da Goldman Sachs. O índice de mercadorias da empresa financeira é o mais negociado no mundo. Esses investidores compram futuros de arroz, trigo, milho, açúcar e gado e aumentam os preços das mercadorias no mercado global até 200%, para que os pobres da Ásia, África e América Latina não possam mais comprar alimentos básicos, e morrerem de fome. Centenas de milhões de pessoas passam fome para alimentar essa mania com lucro, esse mal radical que vê os seres humanos, incluindo crianças, como nada valendo.

Esses arquitetos do mal radical extraem o carvão, o petróleo e o gás, envenenando o ar, o solo e a água, exigindo enormes subsídios dos contribuintes e bloqueando a transição urgente para as energias renováveis. São as grandes corporações proprietárias de fazendas industriais, incubadoras de ovos e fazendas leiteiras, onde dezenas de bilhões de animais sofrem abusos horrendos antes de serem desnecessariamente abatidos, parte de uma indústria de agricultura animal que é uma das principais causas multifatoriais da catástrofe climática. Eles são os generais e fabricantes de armas. São os banqueiros, os gestores de fundos de risco e os especuladores globais que saquearam US $ 7 triliões do tesouro dos EUA após os esquemas de pirâmide e fraudes que eles mesmo executaram, que implodiram a economia global em 2007-2008. São os capangas da segurança do estado que nos tornam na população mais espiada, observada, monitorada e fotografada da história humana. Quando o governo nos observa 24 horas por dia, nós não podemos usar a palavra "liberdade". Esse é o relacionamento entre o senhor e o escravo.

A cultura corporativa serve um sistema sem rosto. É, como Hannah Arendt escreveu, "o governo de ninguém e, por essa mesma razão, talvez a forma menos humana e mais cruel de governo". Por ele, ele não vai parar por nada. Qualquer pessoa ou movimento que tente impedir os seus lucros será obliterado. Esses arquitetos do mal radical são incapazes de reforma. Apelar ao melhor da sua natureza é uma perda de tempo. Eles não têm natureza melhor. Eles manipularam o sistema, dominam as eleições pelo dinheiro corporativo, pelos tribunais e pela imprensa, um vasto espetáculo burlesco com fins lucrativos, e é por isso que eles passam tanto tempo focados em Trump. Não há como votar contra os interesses da Goldman Sachs ou da Exxon, Shell, BP e Chevron, que juntamente com as outras 20 principais empresas de combustíveis fósseis contribuíram com 35% para o total mundial de todas as emissões de dióxido de carbono e metano relacionadas com a energia - 480 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente desde 1965.

Conhecemos esses arquitetos do mal radical. Eles estiveram e sempre estarão connosco.

Mas quem são aqueles que resistem? De onde vêm eles? Que forças históricas, sociais e culturais os criaram?

Eles também são conhecidos. Eles são Denmark Vesey, Nat Turner, John Brown, Harriet Tubman e Frederick Douglass. Eles estão Touro Sentado, Crazy Horse e Chief Joseph. São Elizabeth Cady Stanton, Susan B. Anthony e Emma Goldman. Eles são "Big Bill" Haywood, Joe Hill e Eugene V. Debs. Eles são Woody Guthrie, Martin Luther King Jr., Malcolm X, Ella Baker e Fannie Lou Hamer. Eles são Andrea Dworkin e Caesar Chavez. Eles são aqueles que desde o princípio lutaram contra, muitas vezes para serem derrotados por esse mal radical, mas sabendo que foram chamados para o desafiar, mesmo à custa das suas próprias reputações, segurança financeira, maledicência social e, por vezes, das próprias vidas.

Os arquitetos do mal radical estão a espremer, a sugar, até que chegue ao fim o último programa de serviço social financiado pelos contribuintes, da educação à Previdência Social, porque vidas que não aumentem os seus lucros são consideradas supérfluas. Deixem morrer os doentes. Muitos dos pobres - 41 milhões de pessoas, incluindo crianças - vão para a cama com fome. Deixem que as famílias sejam postas na rua. Deixem os jovens formados não terem um emprego significativo. Deixem aumentar o sistema penitenciário dos EUA, que conta já com 25% da população encarcerada do mundo. Deixem a tortura continuar. Deixem as espingardas de assalto proliferarem para alimentar a epidemia de tiroteios em massa. Deixem as estradas, pontes, represas, barragens, redes elétricas, linhas ferroviárias, metropolitanos, serviços de autocarros, escolas e bibliotecas desmoronarem ou fecharem. Deixem aumentarem as temperaturas, os padrões climáticos, os ciclones e furacões monstruosos, as secas, as inundações, os tornados, os incêndios, as calotas polares derreterem, os sistemas de água envenenados e o ar poluído piorar até que a espécie morra.

Muitos na igreja são cúmplices desse mal radical, falhando em nomeá-lo e em denunciá-lo, assim como nós deixamos de ver nos milhares de homens, mulheres e crianças que foram enforcados a própria crucificação, como apontou James Cone. É essa cumplicidade e silêncio, que nos condena. É por isso que W.E.B. Du Bois chamou à "religião branca" um "fracasso miserável".

Os negros não precisavam ir ao seminário e estudar teologia para saber que o cristianismo branco era fraudulento”, escreveu Cone em “A Cruz e a Árvore dos Enforcados”. “Quando adolescente no Sul, onde os brancos tratavam os negros com desprezo, eu e outros negros sabíamos que a identidade cristã dos brancos não era uma expressão verdadeira do que significava seguir Jesus. Nada do que os seus teólogos e pregadores pudessem dizer, nos convenceria do contrário. Ficamos imaginando como é que os brancos poderiam viver com sua hipocrisia – em tão flagrante contradição com o homem de Nazaré. (Eu ainda continuo a pensar nisso!) O flagrante endosso do cristianismo conservador branco ao linchamento como fazendo parte da sua religião e o silêncio dos cristãos liberais brancos sobre o linchamento colocou ambos fora da identidade cristã. Não consegui encontrar um sermão ou um ensaio teológico, nem mesmo um livro, opondo-se ao linchamento, escrito por um proeminente pregador liberal branco. Não é possível existir uma comunidade que possa apoiar ou ignorar o linchamento na América, e que continue a pensar que possa representar em palavras e ações aquele que foi linchado por Roma.”

Falhámos em denunciar os fascistas cristãos que nos vendem um Jesus mágico que nos tornará ricos, um Jesus que abençoa a América acima de todos os outros países e a raça branca acima das outras raças, um Jesus que transforma a barbárie da guerra numa cruzada sagrada, pelos hereges que eles são. E também falhámos em enfrentar o mal radical do capitalismo corporativo. Não vamos mais uma vez fazer da nossa fé um fracasso miserável.

Desafiar o mal não pode ser defendido racionalmente. Há que dar um salto para a moral, que está para além do pensamento racional. É recusar a atribuir um valor monetário à vida humana ou ao mundo natural. É recusar a ver-se alguém como supérfluo. É reconhecer a vida humana, na verdade toda a vida, como sagrada. E é por isso que, como Arendt ressalva, as únicas pessoas moralmente confiáveis ​​não são aquelas que dizem "isso está errado" ou "isso não deve ser feito", mas aquelas que dizem "eu não posso fazer isso".

Aqueles que pertencem a uma tradição religiosa, qualquer tradição religiosa, têm a responsabilidade de combater esta última interpretação do mal radical, que está rapidamente a garantir que a nossa espécie e muitas outras espécies, não terão futuro nesta terra. É nosso dever religioso colocar os nossos corpos na frente da máquina, como muitos de nós fizemos nos protestos organizados pela Rebelião da Extinção (Extinction Rebellion) na semana passada em todo o mundo.

"A lei, como atualmente é reverenciada, ensinada e aplicada, está a tornar-se num atrativo para a ilegalidade", escreveu Dan Berrigan. “Advogados, leis, tribunais e sistemas penais estão quase imóveis diante de uma sociedade abalada, que está a tornar a desobediência civil um dever civil (ouso dizer religioso). A lei está a alinhar-se cada vez mais com formas de poder cuja existência é cada vez mais questionada. ... Então, se eles obedecerem à lei, [as pessoas] estão a ser forçadas, no presente momento crucial, a desobedecer a Deus ou a desobedecer à lei da humanidade.”

No presente período histórico, não repitamos os nossos pecados do passado. Afirmemos a nossa fé afirmando o nosso desafio, a nossa disposição para nos envolvermos em atos de desobediência civil sustentada contra as forças do mal radical. Que as gerações futuras digam de nós que tentámos, que não fomos cúmplices de nossa colaboração ou silêncio. Haverá um custo. A história mostra-nos isso. Todas as batalhas morais têm um custo, e se não houver um custo, a batalha não será moral. Aceite tornar-se um pária. Jesus, afinal, também era um pária. Somos chamados por Deus para desafiar o mal radical. Esse desafio é a forma mais elevada de espiritualidade.”

  • Após a Guerra Civil, os estados do Sul, impedidos legalmente de recorrerem à escravatura, contornaram a lei através da implementação de legislação que permitia o empréstimo (convict leasing) por parte do estado, de trabalhadores negros que se encontrassem presos, independentemente da idade (https://eji.org/history-racial-injustice-convict-leasing).

Note-se que muitas destas leis já vinham sendo aplicadas mesmo antes da Guerra Civil, inclusivamente nos estados do Norte. Desde a Idade Média existem leis cuja finalidade era a de “resolver” o problema dos mendigos, pobres, vagabundos e desempregados. Nos casos vertentes, acrescentou-se apenas a cor, desde que não fosse branca.~


https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/238-a-idade-do-mal-radical-62521

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