terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Viriato Soromenho Marques - A EUROPA À BEIRA DE UMA GUERRA IRRACIONAL

«A EUROPA À BEIRA DE UMA GUERRA IRRACIONAL! MAS SEREMOS CAPAZES DE A IMPEDIR?»

 * Maria João Caetano

2025 12 14 

O filósofo Viriato Soromenho Marques aponta o dedo aos EUA e à Europa pela forma como trataram a Rússia e subestimaram Vladimir Putin. E espera que no meio da escalada a que temos vindo a assistir, os líderes políticos de hoje tenham a inteligência que outros tiveram no passado e saibam dar um passo atrás. Até porque, os desafios que a nossa civilização enfrenta vão muito além da possibilidade de uma guerra: "A guerra nuclear será um ataque cardíaco. Por outro lado, a esclerose generalizada, que é um processo de morte, mas mais lento, é a crise ambiental"

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«Eu fiz as contas. No dia 12 de janeiro do próximo ano, a guerra na Ucrânia, a tal operação especial, como dizem os russos, terá mesma duração da guerra da Alemanha com a Rússia na Segunda Guerra Mundial. São 1.418 dias. De 22 de junho de 1941, quando Hitler invade a União Soviética até 8 de maio de 1945." No dia 12 de janeiro de 2026, completam-se 1.418 de guerra da Ucrânia. "E não me parece que neste momento a Rússia esteja esgotada", diz. "Tudo indica que este esforço de guerra está a acontecer com economia de meios e com economia de baixas", diz Soromenho Marques. Podemos estar numa escalada que obrigue a Rússia ou a desistir ou então a passar para a fase seguinte, com as armas nucleares, antecipa. "A verdade é que não temos nenhum exemplo de uma guerra nuclear anterior entre potências nucleares. O meu receio é que ninguém saiba controlar esta escalada».

Foi no passado dia 12, numa noite de inverno, fria e chuvosa, que um grupo de "corajosos", como lhe chamou Viriato Soromenho Marques, se juntou no auditório da Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva para o debate "Guerra e paz: respostas, causas e soluções de hoje", o último dos três debates do ciclo "Uma ideia de harmonia", comissariado pela jornalista Alexandra Carita. Na mesa estava também Tatiana Moura, diretora da plataforma masculinidades.pt e investigadora do CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Mas foi o filósofo e professor da Universidade Nova de Lisboa que, inegavelmente dominou a conversa.

Em 1983, em plena Guerra Fria, Viriato Soromenho Marques era um jovem a fazer inter-rail e passou algum tempo em casa de um amigo em Witten, na Alemanha. A estadia coincidiu com muitas manifestações pela paz devido à crise dos "euromísseis". "Nessa altura, a tensão entre o Pacto de Varsóvia e a NATO tinha crescido de forma exponencial. Novos mísseis estavam a ser colocados, quer no lado do lado soviético, quer do lado norte-americano e europeu", recorda o filósofo que tem atualmente tem 68 anos. "Só que nessa altura existia uma literacia sobre guerra nuclear que hoje está completamente ausente", diz, lembrando, por exemplo, que a mãe do amigo, que era dona-de-casa, "saía da sua vida e ia para a rua protestar"; ou ainda que havia uma canção "muito medíocre" que nesse verão foi um sucesso na Alemanha, intitulada "Besuchen Sie Europa (solange es noch steht)" - "Visita a Europa enquanto ela ainda lá está", que falava precisamente dessa ideia de que "isto vai acabar tudo em breve".

Terá sido esta vivência que o despertou para o problema da guerra na Europa. Depois dessa viagem, Viriato começou a pesquisar e a fazer entrevista e, em 1985, publicou o livro "Europa, o risco do futuro: a incerteza estratégica dos anos 80". O livro foi publicado duas semanas antes de Gorbachev ter tomado posse, iniciando o caminho para o fim da Guerra Fria.

"Isto que está a acontecer agora [na Europa], para mim, tem 42 anos. Isto não começou no dia 24 de fevereiro de 2022", diz, concluindo: "Para mim, isto é um pesadelo, porque eu, nessa altura, já era ambientalista e olhava para estas duas grandes ameaças. Por um lado, o ataque cardíaco. A guerra nuclear será um ataque cardíaco. Por outro, a esclerose generalizada, que é um processo de morte, mas mais lento, que é a crise ambiental", diz, introduzindo aqui um tema que é essencial no seu pensamento. Mas já lá vamos. Para entender o que se passa hoje na Europa o professor recua, precisamente, até à Guerra Fria e ao modo como esta terminou. E talvez, até, recuar um pouco mais, e perceber porque é que existem guerras.

 

AS GUERRAS SÃO EVITÁVEIS?

 

"Em toda guerra existe violência, mas nem toda violência é guerra. Isto é importante porque a violência pode ser exercida pelo indivíduo, está relacionada, individualmente, com a agressividade. Mas a condição fundamental para a guerra é a existência de uma entidade artificial, que é o estado - uma estrutura que é uma pessoa coletiva, uma estrutura sem paixão, que decide do uso da violência bélica", explica Viriato Soromenho Marques.

É por isso que para perceber as guerras é preciso entender o conceito de estado soberano. "A guerra e a paz entre nações está também associada à teoria do contrato social, que se parece um pouco com a física atómica", diz. "Temos os indivíduos que são pequenos átomos e que depois se organizam em moléculas que são sociedades." Na ordem política e na ordem legal, existe um poder de sanção. Mas, neste aspeto, "a analogia com a sociedade das nações é imperfeita. Porque na sociedade das nações não existe esse poder de sanção, é um direito imperfeito. Isto é, podem existir tribunais internacionais. Há tratados. Há uma Organização das Nações Unidas. Mas não existe um poder comum capaz de aplicar a sanção. As grandes potências não são sancionáveis."

Thomas Hobbes, pensador doa séculos XVI XVII, dizia que "os príncipes e os Estados estão permanentemente em estado de natureza, ou seja, preparados para a guerra. E não há nenhum tratado, não há nenhuma lei internacional que leve os príncipes a dormir descansados. É por isso que têm exércitos permanentes. Porque há uma desconfiança permanente".

O professor cita ainda o general prusso Carl von Clausewitz ("uma espécie de Newton da guerra"), que no século XIX escreveu a obra "Vom Krieg - Da Guerra", que é, nas suas palavras, "o grande livro contemporâneo sobre a guerra": "A guerra é uma ação em que a violência é usada como instrumento de objetivos políticos". Clausovitz diz mais: "A guerra é a continuação da política por outros meios" - uma frase que já todos ouviram. O que é que isto significa? "A guerra tem apenas uma gramática, a política tem a lógica. E deve ser a política que comanda a guerra. Evidentemente que para fazer a guerra é preciso tecnologia, é preciso treino, etc. Mas isso é a gramática. E no limite, se fosse possível, atingir esses objetivos sem a violência, não haveria guerra. Mas sem a violência não há coação. Agora, o que pode acontecer é que, perante ameaça do uso da força militar, um Estado pode recuar e conceder. Clausevitz considera que quando a diplomacia falha é muito improvável que se consiga retomá-la sem o sucesso das armas."

"Na guerra existe uma lógica essencialmente de custo-benefício. O pensamento estratégico militar é um pensamento de custo-benefício. É um pensamento instrumental. A ideia de uma guerra com as luvas brancas não existe", afirma o filósofo. Não existe guerra sem danos colaterais e sem crimes de guerra. O que os políticos que tomam a decisão de iniciar ou entrar numa guerra fazem é tentar avaliar se vale ou não a pena. Isto, dito assim, pode parecer cruel, mas não é novo. "Os aliados, que venceram a Alemanha nazi, também cometeram imensos crimes. Hamburgo foi destruída em julho de 1943 e 40 mil pessoas foram mortas com bombas de fósforo. Antes das bombas atómicas, que foram crimes de guerra também, porque visaram populações civis, tivemos 700 mil japoneses que foram vítimas de bombardeamentos convencionais pela aviação americana. Isso são crimes de guerra", sublinha.

 

UMA GUERRA IRRACIONAL – EM QUE TODOS SAEM DERROTADOS

 

"Hoje em dia, a guerra que podemos ter será uma guerra absolutamente irracional", diz Viriato Soromenho Marques. Porquê? Segundo Clausevitz, a guerra é até 1945, tinha violência, mas tinha racionalidade. "Ou seja, havia sofrimento, mas havia a possibilidade da vitória. Os povos perdiam milhões de vidas, mas atingiam o objetivo e havia vitória. Hoje, é uma das características da guerra contemporânea, é a possibilidade de uma guerra em que todos saem derrotados".

Durante os 40 anos da Guerra Fria, houve um consenso entre os dois lados, explica o professor. A crise dos misseis de Cuba em outubro de 1962, em que o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear, "fez com que tanto Krushov como o Kennedy percebessem o que seria a irracionalidade da guerra", diz Soromenho Marques. "O que Kennedy fez a seguir a outubro de 62 foi fundamentalmente um processo de construção da paz, em colaboração com a União Soviética: a criação do telefone vermelho, a proibição de testes nucleares e outras ideias que ele tinha para a frente, de cooperação alargada com a União Soviética e com os países que estavam no Pacto de Varsóvia e que o assassinato impediu. No discurso que fez em Washington em 10 de junho de 63, Kennedy dizia o seguinte: 'Enquanto defendem os seus próprios interesses vitais, as potências nucleares devem evitar os confrontos que levam o adversário a optar entre uma retirada humilhante ou uma guerra nuclear. "Adotar esse tipo de atitude, ou seja, querer insistir numa escalada em potências nucleares, na era nuclear, seria apenas uma prova da falência da nossa política ou de um desejo coletivo de morte'."

Ronald Reagan, que foi presidente dos EUA durante a Guerra Fria, "acolheu positivamente, com entusiasmo, Gorbachev", diz o professor, contando algo que percebeu ao ler as memórias do presidente: "Em novembro de 1983, Reagan foi um dos primeiros americanos a ver até o filme 'The Day After' [filme ficção científica que imagina o que aconteceria após uma guerra nuclear]. E ele ficou aterrorizado com o que viu. É interessante que em janeiro de 84 ele faz um discurso que causou surpresa. Enquanto o discurso do ano anterior tinha sido o discurso do "Guerra da Estrelas", vamos criar um sistema no espaço, o discurso de janeiro de 84 dizia que temos de evitar a autodestruição".

 

O FIM DA UNIÃO SOVIÉTICA: UMA OPORTUNIDADE DESPERDIÇADA

 

A Guerra Fria prolongou-se, com esse jogo de contenção de forças, até à Perestroika. Viriato Soromenho Marques considera que a transição democrática da União Soviética, com a "dissolução pacifica do Pacto de Varsóvia", "é o único caso que temos na História em que um sistema bipolar acaba porque o outro lado desiste".

Inicialmente, recorda o filósofo, "houve imensa vontade de estabelecer relações, de apoiar economicamente a transição da Rússia. O que eles fizeram foi uma coisa brutal". Mas logo se percebeu que os interesses económicos se iriam sobrepor aos bem político. Passou-se "de uma economia planificada que não funcionava, para uma economia de mercado que foi pilhada. O que aconteceu no tempo do Ieltsin foi uma catástrofe para a Rússia. A Rússia perdeu cinco anos de esperança de vida. O desemprego galopou. A mortalidade infantil aumentou imenso. O alcoolismo explodiu. A criminalidade, as mortes violentas. Depois, a formação dos oligarcas, a privatização com as grandes companhias americanas por trás. No fundo, a Rússia era um cadáver gigantesco, 17 milhões de quilómetros quadrados, que estava ali para ser devorado", diz Soromenho Marques.

"Foi uma tragédia. Não só económica, mas também política." A Europa poderia ter-se tornado um aliado, um parceiro. "Era preciso criar uma relação de confiança mútua, e isso não aconteceu. Até porque era preciso ter um inimigo, como é que nós vendíamos a expansão da Nato se não tivéssemos um papão do lado lá?"

"O analfabetismo e russofobia é também uma coisa que nos está a envenenar. Envenena-nos a alma e corrói o pensamento", afirma Soromenho Marques.

 

QUANDO PUTIN DEIXOU DE SER UM AMIGO – AS ORIGENS DA GUERRA DA UCRÂNIA

 

Soromenho Marques diz que é preciso "admitir o fracasso de todas as políticas que começaram em 1991, quando os Estados Unidos recusaram integrar a Rússia no sistema internacional" e decidiram deixar a Rússia de foram da Nato. "Esta guerra [na Ucrânia] começou porque a Rússia não tinha garantias de segurança. Pediu primeiramente que a Nato não se alargasse, mas a Nato alargou-se. Depois pediu para não se alargar para zonas que são estratégicas, porque as grandes potências têm zonas de segurança, a que se chama zonas de influência", e, mais uma vez, isso não acontece. Em 2008, em Bucareste, a Nato ofereceu um convite à Ucrânia. "E Putin, que nessa altura era convidado a ir às reuniões da Nato, fez um grande discurso a explicar porque é que isso era uma coisa que não podia ser aceite pela Rússia. Então, Sarkozy e Merkel falam com Bush e decidem arrastar isso para não arranjar problemas. As coisas foram-se arrastando assim."

"O ponto em que as coisas realmente se transformaram foi com a Praça Maidan. Foi aí que as coisas se tornaram mesmo azedas", diz o filósofo. "Esta guerra começou aí. A Operação Especial começou na Praça Maidan. O Viktor Yanukovych foi eleito em eleições reconhecidas por todos os observadores, incluindo os nossos, da União Europeia, que estiveram lá. A Victoria Nuland, que é a vice-secretária de Estado, esteve pessoalmente a comandar as operações de montagem da Praça Maidan. Inclusive ela, no inverno, em dezembro de 2013, faz uma pequena intervenção, em que chega a dizer que até agora o nosso investimento na Ucrânia foi de cinco milhões de dólares. Em 2024, o historiador ucraniano Ivan Katchanovski publicou um livro notável a explicar a Praça Maidan."

"A Alemanha foi seduzida pela possibilidade de também tirar algum partido da Ucrânia. E, além disso, ninguém acreditava que a Rússia tivesse capacidade para fazer esta guerra. O Biden dizia, em 2017: os russos engolem tudo o que lhe pusermos pela garganta abaixo", lembra Soromenho Marques. Em 2019, ainda Merkel estava no poder, e a Ren Corporation, que é o principal think tank da política externa americana, publica um livro que se chamava "Extending Russia". Esses analistas diziam que se deviam "criar dificuldades em muitos pontos à Rússia para que ela se parta. E um dos objetivos do Extending Russia é impedir a ligação entre a Alemanha e a Rússia. Não só energética. Avisadamente, eles percebiam que uma boa relação entre a Alemanha e a Rússia ia causar problemas a quem queria continuar a ser o dono do mundo".

 

O FIM DO DOMÍNIO AMERICANO E AS NOVAS RELAÇÕES DE PODER .

"Os Estados Unidos estão, nesta fase, a passar de interveniente principal, para algo diferente", afirma Soromenho Marques. "Reconhecem que já não têm capacidade para aquele pesadelo que foi o unipolarismo. Biden foi o último representante da ideia tonta de que era possível os Estados Unidos dominarem o mundo e imporem, com recompensas e com violência e com sanções, o domínio. Hoje estamos num mundo completamente diferente."

E explica: "Do ponto de vista económico, os Estados Unidos são uma sombra do que foram. No auge do poderio americano, no tempo do Truman, 50% do produto interno bruto era americano. Hoje, os Estados Unidos têm uma percentagem muito menor, estamos a falar de 20%, 21%. para ser otimista. Por outro lado, do ponto de vista científico, a situação é absolutamente avassaladora. No ano passado, um instituto australiano publicou um estudo que era uma análise de 20 anos de inovação científica no mundo, em 64 tecnologias de ponta. E o contraste é absolutamente esmagador. Em 2003, os Estados Unidos dominavam 61 das 64. E a China dominava 3. Em 2023, a China domina 57 das 64. E os Estados Unidos dominam as outras 7."

"Ou seja, o que temos hoje é um novo sistema internacional. Estamos numa fase horrível que é a transição. As transições são sempre terríveis, mesmo na vida dos indivíduos", diz o professor. Mas há algo positivo nesta situação, que é o facto de os Estados Unidos "já não considerarem a China como um inimigo com o qual poderiam entrar em guerra em 15 anos, mas como um competidor. Há uma diferença entre competidor e inimigo".

Já em relação à Rússia, na Estratégia de Segurança Nacional (ESN) os EUA assumem o objetivo de "estabilizar as relações com a Europa, nomeadamente com a Rússia. O que não parece uma coisa idiota, parece uma coisa até bastante sensata. Não sei como é que é possível alguém que conheça um pouco da situação atual e da situação histórica pensar que é possível excluir a Rússia do sistema internacional e do sistema europeu, para mim é uma ideia completamente absurda", afirma.

E A EUROPA NO MEIO DE ISTO TUDO?

 

"Estamos a viver um desastre do projeto europeu", diz Viriato Soromenho Marques, lembrando que em 2014 publicou livro sobre a crise do euro que se chamava "Portugal na queda da Europa". "A tese era que a crise de 2008 não foi uma crise das dívidas soberanas, como se dizia, foi uma crise do euro. O euro foi construído sem qualquer mecanismo que o tornasse uma moeda funcional, não era uma moeda federal. O euro foi criado sem sequer um sistema de prevenção das crises bancárias, por exemplo. Nada. E os países endividaram-se nessa altura para socorrer o sistema financeiro, os bancos, que estavam lá soltos. Os bancos nessa fase inicial faziam o que queriam. Falhámos. O Euro podia ser a primeira etapa do federalismo europeu, e nós falhámos. Em 2014, a minha perspetiva era que estávamos a entrar num processo de decadência europeia, de queda".

"Só que agora já estamos dentro da queda", admite, dando como exemplo máximo a forma como a Europa está a conduzir esta guerra na Ucrânia. "Primeiro: não temos nenhuma providência, nenhum artigo que conceda os poderes que a senhora von der Leyen se arrogou para funcionar como se fosse a comandante suprema de uma coisa que não existe, que são as Forças Armadas Europeias. Segundo: existe uma confusão total entre a União Europeia e a NATO. Chegámos a este ponto. Confundimos totalmente. Terceiro: o uso de procedimentos, e dia 18 de dezembro vamos ver se isto vai acontecer ou não, procedimentos que vão conduzir a uma situação dramática".

Depois de na passada sexta-feira a União ter aprovado, por maioria e com os votos contra da Hungria e Eslováquia, uma decisão para manter os ativos russos imobilizados indefinidamente no espaço comunitário, o tema volta a ser debatido esta semana pelos ministros europeus dos Negócios Estrangeiros que vão decidir se esse dinheiro pode ser usado para o empréstimo de reparações à Ucrânia. "Se isso for roubado à Rússia e entregue à Ucrânia, eu acho que somos nós, os europeus, que não depositamos mais o nosso dinheiro aqui, são também os estrangeiros que cá têm dinheiro que vão para outro sítio", antecipa o filósofo. "A gente do mundo árabe, a gente da África, a gente da América Latina, os magnatas, etc., vão para outro sítio. E também os portugueses. Vão transformar esses euros em ienes e vão pô-los na China, ou transformam-nos dólares e põem nos Estados Unidos."

 

A ESCALADA ACTUAL: "NÃO PODEMOS. COMO CIDADÃOS, ACEITAR ESTE DISCURSO DA INEVITABILIDADE DA GUERRA”

 

Chegamos, assim, aos dias de incerteza em que vivemos. Viriato Soromenho Marques "colecionou" uma série de frases proferidas nos últimos dias por "altos responsáveis políticos e militares da nossa Europa" e que mostram bem o estado do mundo:

 

• 3 de Novembro: Boris Pistorius, ministro da defesa da Alemanha, falando sobre o plano de reconstrução armamentista da Alemanha, que está outra vez na corrida dos armamentos, está a preparar um sistema que permita a rápida passagem para leste, ou seja, em direção à Rússia de 800 mil soldados da NATO, disse: "Há quem fale que a guerra vai ser em 2029. Há outros que dizem que vai ser em 2028. Mas há alguns que dizem mesmo que gozámos em 2025 o último verão em paz".

 

• 16 de novembro: o general Fabien Mandon, que era conselheiro do presidente Macron, da França, diz que "temos de aceitar perder os nossos filhos, sofrer economicamente".

 

• 3 de Dezembro: o almirante Giuseppe Cavo Dragone, chefe do Comité Militar da Nato, disse ao Financial Times que a NATO deveria considerar a possibilidade de uma ação preventiva contra a Rússia.

 

• 11 de Dezembro: Mark Rutte, secretário-general da NATO, diz que "depois da Ucrânia nós somos o próximo alvo da revolução. E nós precisamos estar prontos. Devemos estar preparados para uma guerra da escala dos nossos avós e dos nossos bisavós. Preparados para a possibilidade de milhões de mortos" e dizendo que, por isso, nós precisamos gastar 5% do PIB na corrida ao armamento.

 

• Entretanto, Vladimir Putin, interrogado numa conferência de imprensa, a seguir às declarações de Dragone, diz: "Se a Europa começar subitamente, o tal ataque preventivo, uma guerra contra nós, eu penso que essa guerra acabará rapidamente. Isso não será a Ucrânia. Com a Ucrânia nós estamos a atuar com precisão cirúrgica, cuidadosamente, isto não é uma guerra no sentido direto, moderno da palavra. Se a Europa começar uma guerra contra a Rússia, em breve, Moscovo não terá ninguém com quem negociar."

Perante isto, Soromenho Marques questiona-se até que ponto é que aquela ideia de Kennedy, que é fruto do conceito da "destruição mútua assegurada", ainda estará atualizada. "Na altura de Kennedy existiam 70 mil armas militares. Hoje existem à volta de 13 mil. Mas 13 mil são suficientes para dar cabo de tudo. E eu pergunto-vos, será que estas pessoas partilham desta preocupação?", pergunta.

E ainda, mais incisivo: "A questão que me parece prioritária é não aceitarmos, como cidadãos, este discurso da inevitabilidade da guerra", diz.

Na sua perspetiva, "uma guerra em que fossem usadas armas nucleares representaria o fim da história". "Mas vamos pensar que haverá ainda alguma sombra de cuidado com o futuro, e alguma inteligência também, e que não vamos entrar por aí", diz, recorrendo ao que resta do seu otimismo.

 

"QUAL A POSSIBILIDADE QUE TEMOS DE SOBREVIVER A ISTO? (E «ISTO» NÃO É SÓ A GUERRA NA UCRÂNIA)”

 

"Este conflito [na Ucrânia] é o centro do vulcão. Claro que temos conflitos noutros lugares no mundo, mas a Europa é, mais uma vez, o centro do vulcão e é onde, de facto, a situação pode ficar completamente fora de controlo. Mas eu pergunto: será apenas na guerra que estamos fora do controlo? Não me parece." Viriato Soromenho Marques tem um olhar mais abrangente. "Nós, europeus, temos muito orgulho na maturidade, com todo o contributo para a ciência e para a tecnologia moderna, mas realmente os grandes desígnios da modernidade, que eram a emancipação humana, que era, como no tempo do grefos, vencer um destino, uma moira, a que estávamos condenados pelos deuses, ou, como dizia depois Descartes, vencer a vida curta, prolongar a vida humana, impedir as tragédias, o sofrimento - será que conseguimos isso? A verdade é que nós construímos um aparato gigantesco para combater esse destino natural, mas temos uma crise existencial na área do ambiente. Portanto, eu colocaria o nosso debate sobre a guerra e a paz no quadro de uma interrogação ainda mais penetrante: qual é a possibilidade que temos de sobreviver a isto? Onde é que erramos? E teremos a coragem para primeiro identificar as causas fundamentais e depois agir em consequência? Ou seja, sermos capazes de fazer a renúncia a tanta coisa a que nos acostumamos a considerar fundamentais?"

A verdade, diz, "é que estamos numa situação em que, perante os desafios existenciais que temos, nomeadamente o facto de estarmos a viver num planeta que estamos a destruir, que estamos a devorar", deveríamos estar preocupados com outros problemas. "Quando começou a guerra na Ucrânia, surgiu um artigo chamado 'Uma guerra no convés do Titanic'. Nós temos que que fazer o possível para que ele não afunde. E neste momento não vemos muita gente que esteja preocupada com isto", lamenta.

Na sua opinião, seria necessária "uma visão integrada". Em primeiro lugar, deveríamos "tomar consciência da gravidade da situação. Já não é evitar, não, é de fazer uma adaptação que permita a continuação da história humana e que permita uma visão de reconstrução do modo como as nossas instituições, nomeadamente a nossa economia, que é uma economia primitiva. Nós precisamos de uma economia ecológica, ou seja, de uma economia que considere que é um subsistema da ecologia e não o contrário".

Cícero dizia que «a salvação do povo seja a suprema lei».

«Quando a gente fala em salvação do povo, está a falar fundamentalmente da vida das pessoas e da fazenda das pessoas, do que as pessoas têm. A minha preocupação é com a nossa vida. Porque acho que a fazenda já está perdida».

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Wyndham Lewis, «The Waste Land», sobre o poema de T.S. Eliot

https://cnnportugal.iol.pt/guerra/ucrania/nao-podemos-aceitar-este-discurso-da-inevitabilidade-da-guerra-a-europa-esta-a-beira-de-uma-guerra-irracional-mas-seremos-capazes-de-a-impedir/20251215/693fe7afd34e3caad84c62ea

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

João Gomes - Marias Cachuchas sem sorte

* João Gomes, 

(Antes de mais quero dar os parabens ao autor deste texto. Pela qualidade literária, pela atualidade – devido ao recentemente badalado caso do bebé desaparecido de um hospital que o Estado se prepara para “subtrair” à mãe -, pela justeza ética dos valores que defende. Infelizmente, ainda que todas as mães sejam iguais, há sempre umas mais “iguais” que outras…

O autor, entretanto, criou uma Petição Pública para que as autoridades competentes reexaminem o caso, denominada “Pela revisão do caso da mãe de Gaia e pelo direito ao apoio social à família” 

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Estátua de Sal, 06-12-2025)


(Antes de mais quero dar os parabens ao autor deste texto. Pela qualidade literária, pela atualidade – devido ao recentemente badalado caso do bebé desaparecido de um hospital que o Estado se prepara para “subtrair” à mãe -, pela justeza ética dos valores que defende. Infelizmente, ainda que todas as mães sejam iguais, há sempre umas mais “iguais” que outras…

O autor, entretanto, criou uma Petição Pública para que as autoridades competentes reexaminem o caso, denominada “Pela revisão do caso da mãe de Gaia e pelo direito ao apoio social à família”, a qual pode ser assinada aqui

Estátua de Sal, 06-12-2025)

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Diz o povo, com aquele jeito fatalista que o tempo ensinou: “É do tempo da Maria Cachucha.” Querendo dizer velho, gasto, ultrapassado. Mas talvez o povo nunca tenha percebido que a verdadeira Maria Cachucha não era sinal de antiguidade – era sinal de resistência. Uma mulher que dançava para não sucumbir, que rodopiava nos adros como quem enfrenta o mundo com os pés descalços e o coração inteiro.

Hoje, a Maria Cachucha existe, mas já ninguém lhe conhece o nome. Perdeu-se nas vielas, nos prédios devolutos onde o vento entra melhor do que o sol, nas barracas que ainda sobrevivem por entre promessas políticas e fotografias de inaugurações. Não dança mais a cachucha – porque o tempo não lhe dá folga -, mas carrega nos braços o que o mundo insiste em lhe tirar: os filhos.

São as Marias Cachuchas sem sorte deste país. As que aprendem cedo que a pobreza é sempre suspeita, mesmo quando é honesta; que o amor não é suficiente para provar que se é mãe; que o Estado aparece mais depressa para levar uma criança do que para garantir que uma casa tenha teto, água quente ou paredes que não caiam à chuva.

Todas as mulheres que, como a jovem de Gaia, veem a maternidade tratada como um privilégio condicional – “podes ser mãe, mas só se tiveres condições”. Condições que ninguém lhes deu, que ninguém lhes quis dar, que ninguém se apressa a construir. Porque é mais simples retirar um bebé do que erguer uma casa; mais rápido assinar um despacho do que garantir um futuro.

E assim, neste país que se orgulha de ser “avançado”, onde os discursos falam de natalidade como quem fala de números e metas, continuam a existir crianças que nascem nos carros à porta das maternidades fechadas, mães que chegam sozinhas aos hospitais porque os transportes públicos não passam, famílias que vivem em quartos interiores onde a esperança mal cabe.

E quando uma mãe pobre segura o filho nos braços, o mundo olha para ela como se segurasse uma culpa.

As Marias Cachuchas de hoje não são dançarinas de praça. São mulheres de vinte anos com um bebé ao colo e o coração apertado. São avós que defendem filhas e netos com a força que têm e a que já não têm. São mães que, em vez de ensaiar passos de dança, ensaiam justificações perante assistentes sociais: “Sim, o quarto é pequeno… sim, o frigorífico está velho… mas eu amo o meu filho.” Como se o amor fosse prova insuficiente. Como se o amor tivesse de passar no crivo das autoridades. Como se existir fosse um teste permanente que a pobreza desclassifica à partida.

E, no entanto, estas mulheres, silenciosas e invisíveis, continuam a dançar – não com os pés, mas com a coragem. Dançam contra a burocracia, contra a humilhação, contra a estatística. Dançam para manter ao colo aquilo que o mundo lhes tenta arrancar. Dançam porque a maternidade pobre continua a ser vista como erro, quando devia ser vista como pedido de ajuda.

A verdadeira Maria Cachucha, se ainda existisse, teria largado a mantilha e posto as mãos na anca, olhando o país com aquela altivez antiga que a lenda lhe atribui. Teria dito, entre um passo e outro: “Não é nas mães que está o problema – é no país que as deixa cair.”

Hoje, no Natal que se aproxima com luzes caras e palavras doces, convém recordar que nem todas as crianças dormem em lares aquecidos. Convém lembrar que há mães que rezam, não por presentes, mas para que ninguém lhes leve os filhos. Convém não esquecer que, num país que não garante habitação digna, retirar uma criança por pobreza não é proteção – é punição.

E talvez, só talvez, seja tempo de devolver às Marias Cachuchas deste país algo mais do que a memória romântica de uma dançarina. Talvez seja tempo de lhes devolver futuro. E lhes dar condições de habitabilidade. E de lhes devolver os filhos.

Bom dia!

in Facebook, 05/12/2025

https://estatuadesal.com/2025/12/06/marias-cachuchas-sem-sorte 

Paulo Baldaia - É mesmo por uma questão política que a greve geral faz sentido


Opinião

* Paulo Baldaia 

(Expresso  2025 12 08)

A revisão da Lei do Trabalho insere-se numa questão ideológica mais profunda em que o executivo dá uma exagerada protecção a quem detém o capital e os meios de produção, enquanto engana com umas migalhas de IRS a classe média trabalhadora, deixando os trabalhadores mais pobres entregues ao seu próprio destinob

Épreciso começar por dar razão a Luís Montenegro sobre as motivações dos sindicalistas para convocar uma greve geral - esta greve é mesmo política e as razões para o protesto são gravesContra a legislação proposta pelo governo há, aliás, políticos de todos os partidos, inclusive dos partidos que se preparam para a aprovar no Parlamento e até uma vice-presidente da direcção do PSD, deixando que Montenegro fique na frágil posição de quem, como chefe do governo, atira a pedra e, como líder do partido, esconde a mão. A “gana” é tanta porque a ministra do Trabalho considera que a legislação actual é desequilibrada a favor dos trabalhadores e um banqueiro assina por baixo, e vai mais longe em relação aos malandros dos trabalhadores, afirmando que “a lei protege quem não quer fazer nada”. É o supremo desplante!

A vontade de legislar contra os interesses dos trabalhadores, assumida por Rosário Palma Ramalho, não cai do céu aos trambolhões mas não foi anunciada no programa eleitoral, como agora pretende dizer o governo. Bem pelo contrário, há coisas que são ditas nesse programa que são o oposto da proposta governamental. Já lá vamos.

LUTA DE CLASSES

Por agora, faço um desvio de rota para explicar porque entendo que esta revisão da Lei do Trabalho - que privilegia quem detém os meios de produção face à força de trabalho  - se insere numa questão ideológica mais profunda. Vejamos um exemplo flagrante de exagerada protecção a quem detém o capital, enquanto se dão umas migalhas de IRS à classe média trabalhadora, deixando os trabalhadores mais pobres entregues ao seu próprio destino: o conceito de renda moderada e o que ele implica no rendimento disponível de inquilinos e arrendatários.

Salta à vista de todos que o acréscimo de rendimento dos trabalhadores inquilinos, fruto da descida do IRS, foi largamente comido pela subida dos custos com a habitação, enquanto que o rendimento dos senhorios acompanhou a subida exponencial das rendas. Apliquemos a regras de três simples: 

1 - se, para a prestação ou renda de casa, os especialistas colocam nos 30% do rendimento líquido de uma família o limite a partir do qual começa a haver uma sobrecarga habitacional. 

2 - se o governo considera o limite de 2300 euros para uma renda moderada e isso significa que, para evitar a sobrecarga habitacional, o rendimento familiar líquido deve rondar os sete mil euros. 

3 - Se uma família de trabalhadores, para aquele rendimento paga cerca de 30% de IRS e um senhorio que obtenha o mesmo rendimento bruto paga apenas 10%.

Qual é o resultado desta equação? O governo aposta forte na luta de classes e os donos do capital reforçam a sua vantagem, pagando três vezes menos impostos que a classe trabalhadora.

A talhe de foice também se pode dizer que, com esta política fiscal na habitação, o governo está a dizer aos potenciais investidores que compensa desviar o capital das fábricas, da novas tecnologias, da energia, da agricultura e de outros sectores produtivos que carecem de investimento, mas que pagam mais impostos. O que se consegue com isto é alimentar a bolha imobiliária, criando condições para entrarem novos investidores que garantem sucesso aos que já lá estão - muito parecido com outros esquemas piramidais. Este esquema acabará num de dois dias: no dia em que só estrangeiros possam comprar ou arrendar ou no dia em que os preços de venda ou arrendamento passem a ter em conta o verdadeiro rendimento líquido de uma família da classe média em Portugal. Até lá, o sistema gera desequilíbrios evidentes entre quem tem capital para investir e quem tem necessidade de arrendar. É um sistema que se aguenta, porque até políticos de esquerda alinham, investindo em imobiliário para negociar nas vantajosas condições do mercado, que devem ser iguais para todos - esta é a forma como procuram justificar a sua ganância, pecado capital com milénios de existência.

 

COM PAPAS E BOLOS SE ENGANAM OS TOLOS 

Num trabalho feito pelo jornal "Público", ficou claro que o programa eleitoral da AD não permitia antecipar o que agora está em causa. Para além de umas generalidades, há questões concretas que apontavam no sentido oposto do que agora se pretende. Exemplo flagrante é a conciliação entre a vida profissional e a vida familiar:

O prometido: programa eleitoral utilizou quase uma centena de vezes a palavra família e os seus dirigentes, em campanha, asseguraram “continuar a apostar na família como a célula base da sociedade e em políticas de apoio à família, de valorização da maternidade e da paternidade, enfrentando a grave crise da natalidade e incentivando as famílias a crescer”.

O proposto: diminuição nos direitos de parentalidade, conciliação e proteção social relativa à família.

A proposta do governo, nas suas traves mestras, também provoca mais precariedade (contratos a termo certo com duração inicial de um ano, em vez dos seis meses atuais, e com possibilidade de duas renovações, até um limite de três anos); vai facilitar o despedimento, desprotegendo o trabalhador contra despedimento injustificado; promove uma maior desregulação dos horários e a precarização das condições de trabalho, enfraquece a contratação colectiva, a acção sindical e o direito à greve.

É legitimo propor este caminho, acreditando que é o caminho certo para aumentar a produtividade nas empresas, fazer crescer a economia e criar novos empregos. Mas entra no domínio da aldrabice política querer convencer alguém que tudo isto não é feito com perda de direitos para os trabalhadores. 

https://expresso.pt/opiniao/2025-12-08-e-mesmo-por-uma-questao-politica-que-a-greve-geral-faz-sentido-6c60755d


António Galopim de Carvalho - O Estado Novo d Salazar, na memória de quem o viveu



 
* António Galopim de Carvalho


«A todos os meus amigos com os votos de um bom Doningo.

Só os portugueses e as portuguesas com mais ou menos 15 anos no dia 25 de Abril de 1974, hoje a rondarem os 65, podem ter memória crítica de algumas particularidades dos últimos estertores do Estado Novo, que viram cair. Rapazes e raparigas com menos idade, ou seja, as crianças desse tempo, talvez se lembrem de um pormenor ou outro. Assim sendo, torna-se evidente que a grande maioria dos nossos adultos no activo pouco ou nada sabem de um regime que nos privou de todas as formas de liberdade, torturou muitos de nós, durante quase meio século e que caiu de podre no dia em que os cravos floresceram nas espingardas dos soldados.

Nos anos de 1930 e 1940, os das duas primeiras décadas de consolidação do Estado Novo, Portugal viveu em situação de ditadura, distinguindo apoiantes do novo regime e oposicionistas, de entre os quais se evidenciaram, por serem publicamente conhecidos, os que “se metiam na política”, localmente referidos como sendo “os do reviralho”. Eram os da chamada oposição democrática, consentida por Salazar, com destaque para os do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Criado em 1945, foi extinto três anos depois, em virtude do grande apoio popular que registou, agrupando muitos opositores até então isolados, entre os quais muitos intelectuais e profissionais liberais.

Outros opositores, que quase ninguém conhecia, militando na clandestinidade pelo Partido Comunista, eram activamente perseguidos, primeiro pela PVDE (Política de Vigilância e Defesa do Estado), entre 1933 e 1945, e, depois, pela sua substituta PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). A estes opositores, os “pides” deitavam-lhes a mão, levavam-nos para Lisboa, onde os interrogavam, brutalizavam, guardando-os depois, pelo tempo que entendessem, e, em alguns casos, assassinavam. Para os localizarem e denunciarem havia os informadores, também referidos por “bufos”, uns conhecidos, outros, não, pelo que se dizia que as mesas dos Cafés, os bancos do jardim, as paredes de todo o lado e até as pedras da caçada tinham olhos e ouvidos.

Para além das restrições à liberdade e da censura, fez-se sentir, também aqui, o decreto 27 003, de 14 de Setembro de 1936, que determinava: «Para admissão a concurso nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos, é exigido o seguinte documento com assinatura reconhecida: Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». E, mais adiante: «Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente».

Embora na letra da Constituição de 1933, figurasse o princípio da igualdade entre cidadãos perante a lei, o Estado Novo considerava a mulher como mãe, dona-de-casa e, em quase tudo, submissa ao marido. A lei portuguesa de então, designava o marido como chefe de família, sendo reservado à mulher o governo da casa, o que se traduzia pela imposição dos trabalhos domésticos como obrigação, não tendo os mesmos direitos na educação dos filhos. Não tinha direito de voto, não podia ascender a determinadas chefias nem exercer cargos na magistratura, na diplomacia e na política. Sendo casadas, as nossas mulheres perdiam o direito a intervir nas suas propriedades, não podiam viajar para fora do país sem autorização dos maridos e não podiam trabalhar sem autorização destes. O marido podia dirigir-se ao empregador declarar não autorizar a mulher a trabalhar, o que implicava o seu imediato despedimento.

Em muitos hospitais as enfermeiras podiam ser impedidas de casar. Se casassem, podiam ser obrigadas a abandonar a profissão. As professoras tinham de pedir autorização para casar, o que só era permitido se o noivo satisfizesse determinadas condições, autorização publicada e em Diário da República O divórcio era proibido, devido ao acordo estabelecido com a Concordata de 1940, numa submissão do Estado à Igreja Católica. Assim, todas as crianças nascidas de uma nova relação, posterior casamento, eram consideradas ilegítimas, não podendo ter o nome do pai, ou seja, o do companheiro.

Na orientação ideológica antiliberal e de cariz católica do ditador, a existência da mulher confundia-se com a da família, estando-lhe reservado o espaço doméstico. A Obra das Mães pela Educação Nacional, organização feminina do Estado Novo, criada em 1936, tinha por objetivo “estimular a acção educativa da família e assegurar a cooperação entre esta e a escola nos termos da Constituição” de 1933.

Nascida em 1912, como suplemento feminino do jornal “O Século” a revista semanal “Mulher – Modas & Bordados” dirigida nos primeiros tempos a uma pretensa elite feminina, fornecia-lhe conselhos nos domínios da moda, da culinária, das boas-maneiras e da beleza. Mostrou, porém, alguma preocupação de valorização da mulher, testemunhada pela publicação regular de sonetos da grande poetisa alentejana, Florbela Espanca (1894-1930), uma das primeiras mulheres a frequentar o Liceu Masculino André de Gouveia, onde permaneceu até 1912. Foi, porém, com Maria Lamas (1893-1983), opositora ao regime e feminista, na direcção desta revista que a luta contra a secundarização da mulher se fez sentir, não só em Évora, onde tinha ligações familiares, como no país.

Depois de duas décadas de confronto com o liberalismo e o republicanismo, a chamada pax salazarista proporcionou à Igreja (grandemente afectada durante a Primeira República) um terreno propício à sua reimplantação e reestruturação interna. Nestes propósitos, assumiu papel fundamental o então Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), dirigindo a Igreja Católica Portuguesa durante o Estado Novo. Elevado ao cardinalato, em 1929, pelo Papa Pio XI, foi amigo íntimo e companheiro de Salazar (militante católico nos tempos da Primeira República), no Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra.

Com a subida de Salazar ao poder, o cardeal Cerejeira pôde garantir, à Igreja, potecção, respeito e liberdade de acção. Estava na sua mente recuperar e salvaguardar os privilégios do catolicismo, como Igreja do Estado, afastados pela Primeira República, tendo tido papel fundamental na assinatura da Concordata com a Santa Sé, em 1940, na criação da Acção Católica Portuguesa, visando a “recristianização” da sociedade, na obrigatoriedade do ensino religioso, na abertura de novos seminários e casas religiosas, bem como no desenvolvimento da imprensa católica.

Em 1936, com Carneiro Pacheco no Ministério da Educação Nacional (anteriormente chamava-se da Instrução Pública), reforçara-se o papel da escola no controlo ideológico e orientação política dos alunos, na prevalência do livro único, no culto das virtudes nacionalistas e no elogio da vida modesta e rural. O fervor patriótico e o cunho religioso enquadrados na ideologia oficial do Estado Novo estavam diluídos nas matérias curriculares, nomeadamente, na Leitura, na História e na Geografia, no propósito de, a partir dos bancos da escola, então com início aos sete anos de idade, estimular estas virtudes nos homens e mulheres do futuro.

Nestes anos, o ensino obrigatório ainda terminava com o exame da 3ª classe (3º ano, como agora se diz), certificado pelo diploma do “Primeiro Grau”, exigível, por exemplo, para ingresso nos lugares mais humildes da função pública, no comércio, como caixeiro, nos correios, como carteiro ou boletineiro e, até, para ser eleitor. Ler, escrever e contar era tudo o que, o cidadão comum necessitava para fugir à vida do campo, ao aprendizado artesanal ou oficinal e a outros trabalhos que apenas fizessem uso da força braçal. Esta habilitação mínima vigorou até 1956. A partir de então, a escolaridade aumentou para 4 anos, apenas para os rapazes. Só quatro anos depois, esta obrigatoriedade foi decretada para as raparigas.

Na Escola Primária, a pedagogia estava na ponta da régua, versão escolar da tradicional palmatória ou menina de cinco olhos. Com algumas professoras, as reguadas estalavam nas mãos das crianças “por dá cá aquela palha”, quer por motivos de disciplina, quer por erros nos ditados, nas contas e em quaisquer outras matérias.

À margem da Escola Primária havia as chamadas “Escolas Incompletas”, criadas em 1930, mais tarde designadas “postos escolares”, com o propósito de combater o analfabetismo no seio de populações sem escola nem condições mínimas de fixar professores. Aqui o ensino era ministrado por “regentes escolares”. Na imensamente maioria mulheres, ganhavam metade do ordenado de um professor, bastava que possuíssem a 4ª, que demonstrarem ter bom comportamento moral e adesão ao regime e eram, de preferência, oriundas dos próprios locais.

A análise histórica da documentação permite verificar que, nesses anos, os professores, diplomados pelas Escolas Normais, foram sendo substituídos pelos regentes escolares, em especial nas aldeias e na periferia das cidades. A escolaridade obrigatória, como se disse, baixara para a 3.ª classe e as crianças estavam preparadas para trabalhar e ouvir o sermão do senhor padre aos Domingos.

No discurso de Salazar, proferido em 12 de maio de 1935, na sede da Liga 28 de Maio, em Lisboa, Salazar disse: Oiço muitas vezes dizer aos homens da minha aldeia, «Gostava que os pequenos soubessem ler para os tirar da enxada». E eu gostaria bem mais que eles dissessem: «Gostaria que os pequenos soubessem ler, para poderem tirar melhor rendimento da enxada»

7.12.25

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sábado, 6 de dezembro de 2025

Jaime Nogueira Pinto - Outra História

Jaime Nogueira Pinto

Colunista do Observador

A História oficial, sobretudo quando não prima pela verdade, tende a ser efémera. E pode sempre rever-se e refazer-se.

06 dez. 2025,  

Não há quem não saiba que a História é feita pelos vencedores. Aqui e em todo o lado. Mas sabe-se também que a História oficial, sobretudo quando não prima pela verdade, tende a ser efémera. E pode sempre rever-se e refazer-se.

Sobre o 25 de Novembro, cuja celebração parece causar grande consternação à esquerda e na Esquerda e motivar jogos florais, já escrevi o que tinha a escrever – mais recentemente, num livro organizado por Jerónimo Fernandes, que reúne um tenebroso conjunto de 32 autores de “extrema-direita”, digamos que uma Hidra de 32 cabeças onde, entre “passistas” e outros perigosos fascistas e extremistas, até cabeças (!) do Chega serpenteiam.

Apesar de terem sido os Comandos de Jaime Neves – entre os quais os Convocados, ou seja, os que tinham servido no Ultramar e voltaram às fileiras para parar a Esquerda radical – a fazer o 25 de Novembro, o que resultou do dia foram 50 anos de Centrão, isto é, de poder repartido entre o PS (mais à esquerda e por mais tempo) e o PSD (menos à esquerda e por menos tempo). Ficaram também como eternos cronistas da República historiadores e intelectuais de esquerda, nas suas várias sensibilidades e modalidades, assistindo-se ainda à súbita conversão à democracia eleitoral e à respeitabilidade democrática do Partido Comunista Português.

Sem o 25 de Novembro, sem os Comandos, sem os Convocados e a Força Aérea que, no terreno, evitaram a vitória da Esquerda radical, não teríamos em Portugal democracia liberal. Teríamos um regime comunista com alguns esquerdistas festivos no poder, bons rapazes, simpatizantes de Trotsky e dos maoistas, como os que torturaram presos políticos no RALIS e na Polícia Militar e se dedicaram a fuzilamentos simulados em vários aquartelamentos. Tudo boa gente. De qualquer forma, com Ialta em vigor, com o “povo do Norte” em alvoroço e uma coligação negativa, da extrema-direita o Grupo dos Nove e ao PS, a festa nunca iria durar muito. Mas os estragos e o prejuízo seriam consideráveis.

Não digo que o Centrão e militares como Vasco Lourenço ou outros do Grupo dos Nove alinhassem nas veleidades, barbaridades e festividades da esquerda radical, mas se não fossem, no terreno, os Comandos de Neves, os oficiais da Força Aérea e os paraquedistas do brigadeiro Almendra chegados de Angola, não sei bem quem tiraria do poder os revolucionários. Costa Gomes e os “moderados”? Duvido.

O Dr. Soares, quando percebeu que o PREC e a Extrema-Esquerda não queriam fazer a festa só contra os “fascistas” e os “reaccionários”, também teve um papel na resistência. A política é assim: o Inimigo nem sempre faz o Amigo, mas faz muitas vezes o aliado útil e objectivo.

fEsquerdas e direitas radicais

Estou à vontade quanto ao Estado Novo, onde não tive cargos ou responsabilidades. Nem eu, nem os meus companheiros do Jovem Portugal e depois da Política, nem tão pouco os nossos amigos do Grupo de Coimbra fomos alguma vez salazaristas. O nosso empenho era a defesa do então Ultramar, talvez porque gostávamos de ser cidadãos de uma nação grande, independente, plurirracial, com uma identidade forte. Uma nação que, na Europa e em África, crescia economicamente, apesar da guerra. Havia polícia política e censura prévia, mas nós não gostávamos nem precisávamos delas. Porém, havia uma guerra, em África, e não tinham as democracias na 2ª Guerra Mundial censura? Não tinham também neutralizado os suspeitos de colaboração com o inimigo, e sem sequer lhes perguntarem de que lado estavam (fizeram-no os americanos com os nipo-americanos e os ingleses com os militantes da British Union of Fascists de Oswald Mosley)?

Depois, que autoridade moral têm os militantes da esquerda radical, que admiravam Mao Tsé-Tung ou até Pol Pot e os desviacionistas trotskistas, para criticar, os que, aos vinte anos, queríamos transformar o império português numa grande nação euro-africana, com igualdade, e integração racial, desenvolvida economicamente? Talvez tivéssemos então, nas referências históricas, os nossos excessos, mas não éramos nós que fazíamos das faculdades um Estado autoritário, censório e policiado, onde era obrigatório ser “alinhado”.

E convém também lembrar que o Estado Novo não foi só a PIDE, a Censura e a mortalidade infantil. Foi também um tempo em que, pela primeira vez em Portugal houve mais gente a saber ler e escrever que os que não sabiam; um tempo em que se executou o maior rol de obras públicas depois do fontismo e se fez a segunda revolução industrial. Foi ainda nos últimos anos do regime que Portugal se aproximou em números de capitação e renda dos países economicamente mais desenvolvidos da Europa. Pela primeira e última vez.

Ao longo de quase 50 anos de poder, entre a Ditadura Militar (1926-1933) e o Estado Novo (1933- 1974), houve abusos, saneamentos, prisões, gente a morrer nas cadeias? Houve casos de corrupção e de favoritismo? Com certeza que houve. Mas tinham acontecido piores abusos contra os católicos, os monárquicos e os sindicalistas na Primeira República, e repetiram-se contra a direita patriota e ultramarinista depois de Abril, no 28 de Setembro e no 11 de Março. Depois do 25 de Abril, quando andaram a investigar a corrupção na “longa noite fascista”, ainda conseguiram descortinar uns gastos fora da caixa de um ex-presidente da RTP, mas foi um Nuremberg bastante modesto, convenhamos.

Há muitos anos, quando discutia com o Dr. Cunhal estes desmandos numa entrevista na Rádio Renascença, e lhe disse que eles, comunistas, tinham feito como o Estado Novo e a PIDE quando puderam, perguntou-me se eu queria comparar umas centenas de fascistas e reaccionários uns meses na cadeia com os muitos anos dos comunistas nas prisões do fascismo. Respondi-lhe, com todo o respeito que me merecia um velho e coerente lutador como ele, que a única razão pela qual só tinham sido meses fora o 25 de Novembro. Senão, teriam sido muitos anos e muitos mortos, torturados ou liquidados, a avaliar pelo modus operandi dos comunistas quanto a reais ou supostos inimigos em todos os países onde o comunismo se tinha instalado. Com uma agravante: enquanto os regimes autoritários e até as ditaduras da direita permitiam igrejas, comunidades religiosas e propriedade privada, o comunismo perseguia e proibia as religiões e a propriedade privada, acabando com a sociedade civil.

O 25 de Novembro e a Liberdade

E se não fosse o 25 de Novembro, também não haveria liberdade em Portugal. Não era o slogan dos “abrilinos” mais ortodoxos “não há liberdade para os inimigos da liberdade” (sabendo nós – e eles – perfeitamente quem definiria os “inimigos da liberdade”)?

Na história do 25 de Novembro há um ponto importante e interessante que discuti há dias com a Irene Flunser Pimentel na Radio Comercial: a envolvente internacional. É uma envolvente que explica a neutralidade do PCP, que não pôs o seu peso militar e civil na balança no 25 de Novembro. A URSS não queria quebrar as regras de Ialta de partilha da Europa com os Estados Unidos (confirmados no Verão de 1975 em Helsínquia) e o Dr. Cunhal e a cúpula do PCP eram disciplinados.

Também estou convencido que se houvesse uma guerra civil, embora pudesse hipoteticamente constituir-se uma Comuna de Lisboa (talvez sem o fuzilamento de bispos e padres da Comuna de Paris), os comunistas e a esquerda radical acabavam vencidos. E em risco de serem outra vez proibidos.

Rectificações históricas

A acabar, duas explicações e rectificações: a história da bandeira a meia-haste, na morte de Hitler, ouvi-a contar e explicar por Franco Nogueira, um “patriota da Rotunda” convertido ao Estado Novo pelo lado do patriotismo ultramarino. Em 3 de Maio de 1945, no terceiro dia depois do suicídio de Hitler em Berlim, a bandeira nacional apareceu a meia-haste nos edifícios públicos: Portugal era neutral no conflito, por isso, e uma vez que morrera um chefe de Estado, o Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Luís Teixeira de Sampaio, dera instruções nesse sentido, de acordo com o Protocolo. Depois, perante algum barulho dos Aliados e das oposições, Teixeira de Sampaio quis demitir-se, arcando com as responsabilidades de um erro político, na consequência da observação cega do Protocolo. A meia-haste não tinha, assim, nada de ideológico – Salazar fora crítico do nazismo, bem antes da sua derrota. Teixeira de Sampaio estava contrito perante os clamores que causara e disposto a ser o bode expiatório. Mas Salazar, ministro dos Estrangeiros desde 1936, conteve-lhe o gesto, e mandou-lhe um dos seus habituais bilhetinhos – “De hora a hora, Deus melhora”…

Quanto à morte do general Humberto Delgado, assassinado em Espanha pelo agente da PIDE Casimiro Monteiro, no que apareceu como uma dupla armadilha – o general Delgado pensava que se ia encontrar com oposicionistas, os agentes da PIDE pensavam que Delgado se vinha entregar ou estavam ali para o deter – há várias teses. Mas não creio que Salazar tivesse alguma coisa que ver com o crime. Alberto Franco Nogueira, ministro dos Estrangeiros ao tempo, contava-me, anos depois, que nunca tinha visto ninguém tão aflito como o director da PIDE, major Silva Pais, quando lhe pediu conselho sobre como havia de comunicar a Salazar o assassinato. Salazar não mandava assassinar opositores.

De resto, o general Delgado, como demonstram os livros publicados sobre os emigrados em Argel, era um factor de divisão entre os oposicionistas residentes – republicanos do Reviralho, soaristas e comunistas; era, acima de tudo, um elemento de divisão das várias famílias da oposição. Só depois de morto se tornou um símbolo unitário.

A propósito, na nota biográfica de Humberto Delgado, no suplemento ao Dicionário de História de Portugal, coordenado por António Barreto e Maria Filomena Mónica, escreve David Lander Raby, sobre os últimos tempos de Humberto Delgado:

“De volta do Brasil, acabou por aceitar a colaboração que permitiu a formação em Dezembro de 1962 da Frente Patriótica de Libertação Portuguesa, e finalmente chegou a Argel (onde a Frente tinha o apoio do Presidente Ben Bella) em Junho de 1964. Mas em menos de dois meses estava praticamente de relações cortadas com a maioria dos membros da Junta e acabou por separar-se completamente da FPLN em Outubro, criando a sua própria “Frente Portuguesa de Libertação Nacional”, que nunca chegou a ter uma existência real. O rompimento com a FPLN foi o princípio do fim para HD; não era possível reconciliar a sua vontade de acção armada a curto prazo e a perspectiva cautelosa da maioria da oposição. Cada vez mais abandonado, HD caiu na armadilha montada pela PIDE, entrando em Espanha com a sua secretária brasileira, Arajaryr de Campos, acreditando que ia encontrar-se na fronteira com oficiais do exército português dispostos a levantarem-se contra o regime.”

A partir daqui, surgem narrativas fantasiosas ou, pelo menos, pouco verosímeis, que avançam com uma cumplicidade ou mesmo com um complot entre o “bando de Argel” e a PIDE para liquidar o “general sem medo”.

Do julgamento do caso em Portugal, e mesmo das narrativas hostis, infere-se sempre o desconhecimento de Salazar da “operação Outono”. A versão que sempre ouvi de quem sabia alguma coisa por ter conversado com elementos envolvidos no crime, foi que Delgado, convencido que se ia encontrar com militares oposicionistas, quis reagir, quando se deu conta que caíra na armadilha da PIDE. Ia armado e puxou da pistola ou do revólver, mas Casimiro Monteiro foi mais rápido e matou-o. Também no filme realizado por Bruno de Almeida e Frederico Delgado Rosa, Operação Outono, há uma implícita absolvição de Salazar quando, numa discussão de responsáveis da PIDE, surge a pergunta: “E como vamos dizer ao Doutor Salazar?” – “Dizemos-lhe que foram os comunistas!”

Não foram, embora talvez não tivessem ficado particularmente consternados. Mas isso é outra história.

https://observador.pt/opiniao/outra-historia/

JoãoRodrigues - Ódio diário sem notícias


* João Rodrigues

Em 1927, no livro Liberalismo, Ludwig von Mises afirmou: “Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até ao momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história.” 

A decadência da linha editorial dos jornais está bem patente num artigo ignobilmente ignorante da autoria Ricardo Simões Ferreira, Editor-Executivo Adjunto do Diário de Notícias. 

Diz que Ludwig von Mises “provou matematicamente” que o socialismo não funciona. Mises nunca usou qualquer matemática nos seus livros e artigos antissocialistas. O seu famoso argumento acerca da impossibilidade do cálculo económico em socialismo é um exemplo disso. Não é pior, nem melhor, por isso. Mas os factos contam. E obviamente, houve economistas socialistas que, armados da teoria neoclássica, por exemplo, lhe responderam. O liberal austríaco Joseph Schumpeter, o da destruição criativa, deu-lhes razão e tudo. 

Por outro lado, não há hoje uma única faculdade de economia que tenha cadeiras de economia marxista e mesmo o pensamento de Keynes é ensinado numa versão diluída pela economia neoliberal avassaladoramente dominante, infelizmente. Os estudantes é que perdem com a falta de pluralismo. 

Quanto ao Manifesto do Partido Comunista, que aposto que este fulano nunca leu, continua a oferecer pistas frescas para quem quer compreender o mundo, tal como A Riqueza das Nações, de Adam Smith, de 1776, por exemplo. Haja curiosidade pelos clássicos. São sempre surpreendentes. Leia-se o que Smith escreveu sobre a vulnerabilidade estrutural dos trabalhadores perante os patrões ou sobre o lado negro da divisão do trabalho ou sobre a natureza de classe do Estado ou....

O chorrilho de aldrabices prossegue, incluindo a ideia de que os professores e logo os jornalistas são comunistas encafuados: “é preciso limpar” o ensino, urra. Isto é a retórica do fascismo. No fundo, ele sabe que os comunistas são parte essencial do antifascismo que cruza Marx e Keynes, da economia política à política económica, do Brasil à China. O objetivo é só instilar medo. Mas nós não temos medo. Ou, melhor, até temos, quando nos sentimos sozinhos, mas sabemos que não o estamos e por isso o medo passa. 

E não é só a ignorância da história das ideias que assim se revela, é também ignorância da história económico-política deste país capitalista: qualquer pessoa séria sabe que os últimos quarenta anos não têm sido dominados pelo “socialismo”, mas sim pelo neoliberalismo e pela sua lógica privatizadora e liberalizadora, tornando Portugal um dos países europeus como menos ativos públicos empresariais ou menos stock da habitação pública, em percentagem do total, por exemplo. E este padrão tem sido impulsionado pela lógica da integração europeia, que impede estruturalmente políticas económicas keynesianas, para já não dizer socialistas, até pela anulação de vários instrumentos de política económica. 

Na realidade, esta gente não descansa enquanto existirem alguns elementos de civilidade democrática na sociedade portuguesa, da escola pública ao SNS, passando por alguns direitos laborais, cada vez menos face ao crescimento dos direitos patronais. O anticomunismo revela o reconhecimento de que os comunistas portugueses foram e são uma condição necessária, mas não suficiente, claro, para todos esses elementos. Esta é a verdade. 

Enfim, jornais dirigidos por gente desta são puros veículos de desinformação, de mentira e de ódio. Liberais até dizer chega, em suma.

Postado por João Rodrigues às 6.12.25

https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2025/12/odio-diario-sem-noticias.html

Domingos Lopes - Give peace a chance





* Domingos Lopes


GIVE A PEACE CHANCE, como cantava John Lennon

Há quase quatro anos que o Ocidente (EUA/NATO/UE) decretou que a Rússia teria de ser derrotada na Ucrânia, demorasse o tempo que demorasse o apoio a Zelenski.

Legiões de figuras de todo o tipo diariamente contavam maravilhas acerca das capacidades ocidentais e das miseráveis condições dos russos. Salvo meia dúzia de honrosas exceções todos afinavam pelo mesmo livro de pensamento único – a Rússia vai perder a guerra.

Há sentimentos na vida que cegam como o da arrogância que tomou conta desta tríade ocidental. Relembre-se o caso de Ursula von der Leyen que no seu destemperado ódio à Rússia chegou a afirmar que a Rússia, com as sanções, nem de frigoríficos iria dispor porque precisava dos chipes para armamento. Jornalistas houve que noticiaram que as espingardas da Rússia eram da 1ª Guerra Mundial e que os soldados nem ração tinham, e os cancros de Putin eram a rodos…

Houve até um Ministro dos Negócios Estrangeiros, o Dr. João Cravinho, que anunciou que Putin se fosse de férias ao Algarve seria preso. Stoltenberg, o então Secretário-Geral da NATO, ficou famoso por anunciar que apoiaria a Ucrânia o tempo que fosse preciso. O novo, capacho de Trump, ainda andará a agradecer ao imperador de Largo-a-Mar na Florida o apoio à Ucrânia que se está a ver nos famosos 28 pontos.

Zelenski, o Churchil ucraniano, rodeado de corruptos por todos os lados, o homem que mais armamento pediu (percebe-se melhor agora o seu papel com tantos ministros fugidos) já manifestou a sua vontade de negociar com os EUA o tal plano de Anchorage entre UEA e Rússia.

Do lado europeu anda tudo com a cabeça à roda. Os principais dirigentes da UE entraram em choque com a realidade circundante, designadamente a Leste, e entre si.

A decisão política face à invasão da Rússia da Ucrânia de apresentar ao mundo a impossibilidade da Rússia vencer, contando para tanto com o apoio dos EUA, revelou uma vez mais a total insignificância de pensamento político-estratégico. Os EUA querem “largar” a Ucrânia porque estão bem dentro do conflito, são eles que que comandam a Ucrânia e perceberam que não têm como travar militarmente a Rússia. Aqui bate o ponto. Em vez de uma humilhante derrota tentam sair por cima, se for possível.

Deve ter-se presente o plano dos EUA já mil vezes divulgado a partir da Rand Corporation, think-tank do Pentágono, de fragmentar a Rússia a partir do conflito militar da Ucrânia, assim definido pelo conselheiro de Segurança da Ucrânia Oleksei Resnikov em 06/01/2023 no TSN Canal 1+1…A OTAN dá as armas e nós o sangue…

Creio que esta afirmação de uma personalidade como Reznikov diz tudo quanto à envolvência dos EUA e à ideia da derrota militar da Rússia. O Ocidente subvalorizou o poderio militar e económico da Rússia e a sua arrogância impediu-o de ver que o mundo mudou e o Sul Global, mesmo que ainda incipiente, é uma realidade, sem falar dos BRICS.

Por outro lado, o “nosso” aliado aplicou-nos um golpe de mestre ao cortar a ligação da UE com a Rússia designadamente a nível de energia, onde assentava o crescimento industrial da Alemanha. Os europeus, se quiserem, têm de comprar a energia aos EUA, muito mais cara, ficando na dependência de alguém cuja coerência é assinalável…

Com este eventual fiasco da UE devemos ter presente o que se está a passar na frente dos nossos olhos.

Os dirigentes da UE sem qualquer mandato para tal e contra a filosofia fundadora da UE cavalgam uma corrida armamentista que gela o sangue. A Alemanha quer avançar para a guerra com a Rússia, na França um chefe militar diz que os franceses têm de assumir a coragem de ir morrer contra a Rússia…mas, há sempre um mas.

A França olha para o rearmamento da Alemanha desconfiada e a Polónia estremece, enquanto na própria UE há quem não esteja pelos ajustes.

A corrida aos armamentos pode ser a tentativa do neoliberalismo reinante na UE de justificar o empobrecimento e a limitação dos valores democráticos fundadores. Ou seja, face à impossibilidade de sair das políticas recessivas onde mergulharam os países, tentam erguer uma cortina de fumo para esconder a política de empobrecimento que vem a caminho com a famigerada ideia de garantir fundos para a guerra, cortando na política social, cultural e ambiental da UE.

Claro que uma política dessa estirpe irá não só a nível interno criar enormes tensões, como a nível dos Estados membros choques entre vários países que não querem ser atrelados ao carro da pobreza, pois esta política provocará ainda maior desigualdade entre eles. A campanha da guerra visa esconder exatamente esta perfídia.

Tenha-se presente que um fulano como Durão Barroso, que devia responder num Tribunal Internacional pelos crimes de guerra contra a Humanidade resultante da monstruosa mentira de que o Iraque tinha armas de destruição massiva, salta agora para os media proclamando que a Rússia vai invadir a Europa, bem sabendo que uma tal afirmação é uma mentira do tamanho de toda a Europa. O homem que perdeu toda a sua credibilidade como líder político, tenta agora na posição de neobanqueiro guindar-se no plano político, jogando com a perda de memória de um dos maiores crimes cometidos contra o direito internacional.

Os principais dirigentes da UE estão metidos num beco aparentemente sem saída. Estão unidos no empobrecimento dos povos, divididos quanto ao modo como fazer, dadas as contradições entre os Estados.

Como a UE é um conjunto de Estados com diferentes políticas de defesa é evidente que os grandes gostariam de unificar forças militares para serem eficazes, mas o problema real é: ao serviço de quem e de quê ?  

A política neoliberal é muito previsivelmente incapaz de conseguir tal desígnio porque ela funda-se na hierarquia do país mais forte que é a Alemanha, o que não é aceite nem pela França, Polónia e até Reino Unido, de fora da UE.

Resta levar à prática uma outra política de paz, desarmamento e cooperação. É preciso desarmar e não de armar. A mais firme e eficaz política de segurança europeia é partir para o desarmamento pan-europeu com a Rússia e os EUA. A Rússia faz parte da Europa e nunca irá sair do continente; os EUA não são europeus, mas pelo seu peso no mundo e face à NATO é benéfica a sua participação numa tal política.

Não há que ter medo – o desafio é desarmar e nunca armar. É preciso diminuir o armamento na Europa conjuntamente com a Rússia, criar um clima normal entre gente normal que quer viver dignamente onde que que viva no continente cuja História exige outra responsabilidade.

A Ucrânia não poderá ser uma ferida a sangrar no continente. Após o conflito é necessário abrir canais de cooperação para reestabelecer medidas de confiança entre os povos envolvidos no conflito. Talvez, porque não, uma Conferência Europeia para a Paz e a Cooperação entre todas as nações. Este é o caminho. Se a guerra terminar é preciso que nunca mais se reacenda, como aconteceu já também acontecera na Jugoslávia.

Creio com todas as forças, que quando os figurões do armamento pedem mais dinheiro para a indústria da morte, é preciso que os povos toquem os sinos a rebate para acordarem as consciências da paz. Em pleno século XXI só a paz é a nossa humanidade e a guerra a nossa bestialidade. A Europa não precisa de mais pilhas de cadáveres, antes necessita de conhecimento, sabedoria, cooperação e sempre as pombas da paz nas mãos dos nossos filhos e netos que da Rússia à Península ibérica, da Escandinávia aos Balcãs, para que se cumpra o sonho de dar uma chance à paz, como cantava John Lennon.

 22 de Novembro de 2025


https://ochocalho.com/2025/11/22/4267/

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Vladimir Putin - Sobre a OME na Ucrânia (2022)


+ Vladimir Putin

Nunca quis uma guerra e nunca comecei.

O que estamos a fazer não é guerra.

Eu lancei uma operação militar para salvar o meu povo de fascistas neonazis que há anos matam pessoas pacíficas e inocentes, russos e não só russos na Ucrânia eu lancei uma operação militar para defender o meu país das bases da NATO.

Comecei uma operação militar para parar a nova ordem mundial porque esta ordem é contra a humanidade.

Se eu começasse uma guerra tudo pareceria diferente, estou a dizer-te!

A Rússia vai usar todas as armas, fundos, só se for atacada por um ataque nuclear e espero que o mundo não pague pela Ucrânia ou melhor pelo fascismo na Ucrânia.

Guerra nuclear significa o fim do mundo e eu não quero isso.

Zelensky convoca a NATO para uma guerra nuclear e espero que eles não cometam um erro tão grande porque colocam em risco a segurança do mundo. Suas armas nucleares mesmo que sejam dirigidas a nós, o mundo inteiro pagará porque as armas nucleares não caem num só lugar e 15 armas nucleares são suficientes para destruir a terra.

É impossível viver neste planeta. Eu não quero uma guerra, e como eu não tenho uma guerra, eu lancei uma operação militar!

Quero um mundo bondoso onde as pessoas possam ser pessoas, quero um mundo puro de pessoas de fé, quero um mundo sem fascismo.

Quero beber água limpa e respirar ar puro.

Se o que eu comecei na Ucrânia fosse uma guerra, não restaria nada da Ucrânia. Protegemos e preservamos os pacíficos, inocentes e civis. Guerra é quando civis, inocentes, paz não são protegidos, guerra é o que a NATO faz em todo o mundo. A Rússia na sua história sempre lutou para salvar vidas.

Muitas pessoas no mundo hoje culpam a Rússia e a mim simplesmente porque muitas pessoas não sabem nada, e a propaganda contra nós é bem enorme, mas eu sei que hoje amanhã ou um dia o mundo vai entender.

Muitos no mundo não sabem que há anos os fascistas ucranianos preparam uma guerra contra a Rússia e atrocidades contra os russos e outras nações, mesmo contra os seus. Durante anos e anos..

O que faria outro país, não sei, mas nós somos a Rússia, e sempre nos protegemos, ao nosso país e ao povo, até ao mundo e claro que já nos provamos muitas vezes na história do mundo.

Eles vão entender porque existe essa guerra e qual é o propósito, tudo tem seu tempo.

Claro que continuam a dizer que a Rússia vai perder, mas como é possível um cenário destes? Não temos oportunidades a perder quando se trata de nós mesmos e da nossa segurança.

Se eu não tivesse começado uma operação militar, a 3a Guerra Mundial teria começado.

Ucrânia, o governo ucraniano ameaça a nossa segurança, e nós temos o dever de nos defender. Se espera que reajamos quando ameaçam a Rússia, não conhece a Rússia.

Eu não quero uma guerra com a NATO UE e a Ucrânia vamos salvar o nosso país e o nosso povo isto não é uma guerra. Isto é a salvação.

Quando se trata de escalada, estamos prontos para as nossas respostas no caso de outras partes intervirem e começarem uma guerra contra nós, e a nossa resposta será relâmpago e destrutiva.

Quando o assunto é grandes, fortes, como as armas nucleares, saliento que a Rússia tem muitas armas fortes, mas espero que não as usemos para a estupidez da Europa e da NATO.

A guerra moderna contra a Rússia não pode ser ganha no campo de batalha. Seja nosso amigo e não existe melhor amigo do que a Rússia para um país e para uma pessoa.

E este é o comentário da mulher russa👇

"Por que estou chorando? "Porque estou feliz, feliz por salvar o nosso país e o nosso povo, e o que farias no meu lugar, problema é teu.

Sim, o que está a acontecer na Ucrânia é uma tragédia, mas a Rússia não tem culpa desta tragédia porque outros começaram uma guerra contra nós e nós nos defendemos.

E com minha alegria e honra, a Rússia sempre defendeu seus cidadãos, o País e os interesses nacionais. Nunca vamos parar de nos defender.

E não vou comentar essas palavras porque sei que a maioria dos russos pensa e considera da mesma forma...