domingo, 23 de novembro de 2025

Alfredo Barroso - VENTURA, O POLÍTICO DE EXTREMA-DIREITA LÍDER DO "CHEGA"



* Alfredo Barroso

Agora que está na moda qualquer bicho careta «quebrar o silêncio» por dá cá aquela palha, também o vou fazer - e cuidado com os estilhaços! - para procurar compreender o relativo sucesso de André Ventura, o político português de extrema-direita que mais tenta forçar o destino achando que já CHEGA de 25 de Abril, de democracia, de pluralismo, de imigração, de ofensas ao colonialismo português e às guerras coloniais, de acusações de racismo e xenofobia, e de tantas outras ‘tropelias’ democráticas que a liberdade de expressão e o Estado de Direito dito Democrático consentem - em prejuízo de Deus, Pátria & Família, dos latifundiários e dos plutocratas. Reconhecendo um módico de talento à criatura, há que saber como se edificou, até agora, o relativo êxito de André Ventura, recorrendo a uma compilação de alguns ensinamentos colhidos sobretudo do maior dos seus mestres: Adolf Hitler. 

Como é que Ventura já logrou convencer uma significativa quantidade de eleitores, por mais medíocres, grosseiros e sem talento que sejam quase todos os seus seguidores? Como é que Ventura, empoleirado numa tribuna, ou falando perante as câmaras da TV, consegue atrair apoiantes para o seu mundo fechado, prenhe de rancor, ódio, desprezo pelo semelhante e dos mais baixos instintos de vingança e exclusão de ‘outros’? Como é que Ventura convence tantos ouvintes a pensarem como ele quer que eles pensem?  Adolf Hitler, o grande demagogo do século XX, dava uma resposta: pela «magia da simplificação perante a qual todas as resistências claudicam». O simples deve ser sempre o mais simplificado possível.  

Vejamos um exemplo dado por alguns peritos: «O grande público sabe que A é a primeira letra do alfabeto. Se lhe explicar que B é a letra que vem imediatamente depois, parte do público já deixou de o seguir». Mais: «E se você quiser explicar que, depois de A e B, vem uma terceira letra chamada C, já mais de metade das pessoas deixaram de dar ouvidos às suas explicações. E se você quiser ir além da letra D, ainda será pior».

Conclusão a tirar: ficar só pela letra A. Reduzir ao máximo a actividade mental do «grande público». Para isso, estruturar todo o discurso à volta dum número limitado de afirmações elementares. Não é preciso que sejam brilhantes, novas ou originais. Daí, por exemplo, o recurso ao nome de Salazar – a triplicar já foi demais porque se prestou à chacota. Basta que as afirmações seduzam pela sua forma, a sua concisão. Eis alguns exemplos: o país está a ser invadido pelos imigrantes; é preciso correr com eles para as terras donde vieram; se nada for feito, será o caos, será catastrófico para Portugal; todos os políticos democratas são corruptos, e cúmplices; só eu tenho coragem de dizer a verdade, de dizer em voz alta aquilo que vocês pensam em voz baixa; só eu poderei salvar Portugal.

Há que martelar infatigavelmente estas ideias. Como dizia Gustave Le Bon: «A afirmação pura e simples, destituída de todo o raciocínio e de qualquer prova, constitui o meio mais seguro para fazer penetrar uma ideia no espírito das multidões. Quanto mais concisa ela for, mais desprovida de provas e de demonstração, mais autoridade ela terá. Os livros religiosos e os códigos de todas as épocas procederam sempre por simples afirmação». 

O líder fascista francês Jean-Marie Le Pen (1928-2025), candidato na eleição presidencial de 1988, ousou recorrer a este ‘slogan’, o mais afrontosamente simplista concebível: «As minhas ideias? São as vossas!». Mais esta, tão primária: «O ‘Front National’, são vocês!». A ver se André Ventura não aproveita para o imitar: «O CHEGA, são vocês!».

Nada de meias-tintas, compromissos, nuances. Pensamento binário sempre! Há ou preto ou branco. O cinzento não existe. Há os bons e os maus. Os Portugueses e os estrangeiros. Os defensores da ordem e os fautores de tumultos. Há os fortes e os fracos. Os heróis e os cobardes. Os trabalhadores e os parasitas. Os normais e os alienados. A gente honesta e os assassinos. Os bravos soldados e os bem instalados na vida. Os homens sadios e os contagiosos. A regeneração e o declínio. Os civilizados e os bárbaros. Só há nós e eles. 

Como escreveu Jean-Luc Porquet (*), «o demagogo tem a mania de catalogar tudo, mas só tem dois ficheiros: o do Bem e o do Mal». É bom o que é bom para Portugal, é mau o que é mau para Portugal. E é ele que decide. Uma simplicidade repousante. Eis o André Ventura: forte, heróico, trabalhador, soldado valente (terá ele feito a tropa?), sadio, civilizado. Instalado enfim no campo do Bem, na sua luta constante contra o Mal. Não se riam.

Hitler desenvolveu até ao mais alto ponto esta capacidade de simplificação, e orgulhava-se disso constantemente. E dizia, como relatou Hermann Rauschning: «Eu, tenho o dom de simplificar e de reconduzir os problemas ao seu dado essencial […]. Fiem-se na vossa intuição, no vosso instinto ou naquilo que quiserem, mas nunca no vosso conhecimento […]. As dificuldades só existem na imaginação». Tal faculdade de simplificação garantia a Hitler uma superioridade evidente sobre os que o rodeavam, nota Hermann Rauschning: «As banalidades, quando proferidas com uma forte convicção, agem como evidências, e nem sempre se consegue estabelecer a diferença entre as grandes ideias simples e as pequenas ideias simplistas».

À força de simplificar ideias e conceitos, os demagogos, como André Ventura, acabam muitas vezes por acreditar que a realidade também vai deixar-se simplificar, rectificar e negar. Mas Adolf Hitler, em caso de dificuldades, «deixava friamente cair os planos que ele próprio tinha elaborado e lançado, sem se preocupar com as consequências, tantas vezes ruinosas, da sua desenvoltura». E não suportava que se voltasse a falar neles. 

Todas as interpretações do mundo, por mais fundamentadas que sejam, pecam por preconceitos, arbitrariedades, axiomas indemonstráveis, contradições internas, opacidades e etc, pois em toda a resposta germina sempre uma nova questão. «A asneira consiste em querer tirar conclusões definitivas», afirmava o grande escritor Gustave Flaubert. De facto, a prova da realidade acaba, regra geral, por esfumar as nossas convicções sobre o definitivo e o absoluto. Mas o demagogo crê que é possível acabar por alcançá-los, chegar até ao fim. E por isso imagina «soluções finais». Como Hitler.

(*) Jean-Luc Porquet «LE FAUX PARLER, ou l'art de la demagogie» (Éditions Balland, Paris,  1992)

Campo d’Ourique, 22 de Novembro de 2025

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Raquel Varela - Do 25 de Novembro aos Nossos Dias


ª Raquel Varela
 
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A história é aquilo que dói, disse Frederic Jameson. Não cabe nem no entusiasmo dos saudosistas do Estado Novo, como o Chega, nem nas celebrações de Estado pilotados pelo PS e pela Associação 25 de Abril. A história do 25 de Novembro não cabe na disputa entre o PS e o Chega, há muito mais mundo lá fora. A história é uma ciência, com teorias, métodos e crítica de fontes, não é uma argamassa de memórias, usadas pelo presente para atirar aos adversários do momento. 
O golpe para acabar com a revolução, com o PREC, e retirar poder aos trabalhadores devia "parecer" um golpe de esquerda - explicaram então os seus autores; quem fez o golpe de direita (Soares, Grupo dos 9, Eanes) disse então que era para "salvar o socialismo" - estou a citar; a extrema direita que agora celebra o 25 de Novembro, estava ostracizada, barricada dentro da Igreja Católica e em Madrid, a preparar ataques terroristas com mortos, foi irrelevante em operações no 25 de Novembro, mas foi essencial na mobilização dos retornados e dos camponeses.

Cunhal e a direcção do PCP têm uma posição muito distinta da base do Partido, defendem mesmo na altura (depois de 1989 mudam de análise, mudam aliás 3 vezes) que o 25 de Novembro era uma forma também de acabar com a esquerda militar e com os revolucionários "aventureiros". Não por acaso António Filipe disse agora no debate das eleições que o PCP foi um dos vencedores do 25 de Novembro (ouviu quem quis). Tal como nós estudámos a documentação do PCP sobre o 25 de Novembro, António Filipe sabe que o PCP foi o Partido moderado de então, e que teve um papel, contra a sua base, na decapitação da esquerda militar, como o PCP face à esquerda revolucionária na Catalunha em 1937. A obediência a Ialta era maior do que aos trabalhadores. E que isso levou sectores importante do Partido, entre eles Saramago, a questionar a direcção.

Antes do páras saírem somam-se atentados de direita e mesmo a mobilização de armas para a guerra civil, quer pela direcção do PS quer por organizações como a CAP (Confederação da Agricultura Portuguesa), que se barricam horas antes. A CAP que se preparar para celebrar esse dia, com orgulho e não escondendo o que fez, armar-se para defender os latifúndios. Doa a quem doer. 

O 25 de Novembro não foi um golpe pacifico contra a revolução, uma "contenção" democrática como refere o historiador Fernando Rosas, apoiando a visão do PS e mesmo da direcção do PCP de então. Foi um golpe violento contra a revolução que implicou centenas de prisões de oficiais que ficaram sem quaisquer direitos durante meses, sem poder sequer ver as famílias, e seguiram-se, nas horas seguintes, a supressão da democracia e milhares de despedimentos, a começar, logo e principalmente, nos media públicos, afastando o jornalismo auto-organizado nas redacções, um saneamento generalizado de esquerda nas redacções e nos quartéis - dominar as armas e a comunicação era o objectivo da burguesia, que através do PS, recuperava o controlo sobre o aparelho de Estado e mediático. 

As conquistas de Abril não se perderam agora,  quase todas terminaram até ao final dos anos 1980, quando o Estado Social foi substituído pelo Estado assistencial - fim da gestão democrática nas escolas, 1976, fim do poder das comissões de trabalhadores, 1979, fim da gestão democrática dos hospitais, 1982 e por aí fora, até à entrega das empresas capitalizadas como a Banca, comunicações e transportes a accionistas privados, regressados de Copacabana, num negócio financeiro que ruiu em 2008. E cuja resposta foi a venda de solos do país para salvar os banqueiros salvos em 2008 - há um fio condutor de 25 de Novembro de 1975 até aos dias de hoje.

Logo apresentamos o nosso livro "", com apresentação do Mário Tomé e do Ricardo Cabral Fernandes. Não é a bíblia sobre o 25 de Novembro, porque não acreditamos em bíblias. Mas em debate cientifico, feito de diálogo entre conceitos e evidências, e que certamente gerará controvérsias, dúvidas e questões por resolver. Isso é a história. O que certamente não é, o nosso livro, é a história das "comemorações oficiais", que em grande medida será feita na Gulbenkian num congresso de afirmação da visão do PS sobre o 25 de Novembro, e que hoje é, paradoxalmente, a prova mais evidente do papel do PS então - tentaram ficar longe da direita contra a revolução e acabaram engolidos pela direita, porque só ao lado da revolução poderiam ter evitado chegar aqui, serem o side-car de um governo de extrema direita que criminaliza imigrantes para baixar o preço do seu salário. 

2025 11 21

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Joaquim Moedas Duarte
Gosto de ler as suas análises, são um exemplo de como é fácil manipular a História. Basta pormo-nos num lado da barricada e ver tudo com uns binóculos a partir dessa trincheira. Análises que vêm sempre acompanhadas de referências à cientificidade da História, para que o bom povo perceba que, baseadas em muitos estudos e leitura crítica das fontes, estas análises é que desvendam a verdade histórica.

O problema é que a História se ri das ilusões científicas, quando apresentadas como A VERDADE! 

O bom Historiador é humilde, põe hipóteses, não faz juízos de valor. Tem consciência de que a História, quanto mais contemporânea, mais amálgama de histórias ela é. O caso do 25 de Novembro de 1975 é um exemplo disso.

Por isso a historiadora Irene F. Pimentel fala do "efeito Rashomon" quando analisa o 25 de Novembro no seu livro "Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975". O "efeito Rashomon" refere-se a situações onde diferentes pessoas têm percepções e interpretações contraditórias e opostas sobre o mesmo acontecimento, o que impossibilita a definição de uma VERDADE OBJECTIVA sobre ele. O que há são versões da verdade.

Para descrever um cubo é preciso observá-lo sob todos os ângulos, de modo a analisar as suas seis faces.

Irene Pimentel conclui "As opiniões sobre o que se passou em 25 de novembro de 1975 dividem-se consoante o lugar no espectro político em que são expressos":

Nessa perspectiva, ela limita-se a descrever as diferentes interpretações dos que estiveram envolvidos nas movimentações militares e políticas do 25 de Novembro. Não toma partido, .

Quando se toma partido cai-se facilmente na caricatura histórica, como se vê nas "comemorações" do 25 de Novembro promovidas pela direita e pelos coisos fascistas.

Receio que a profª drª Raquel Varela esteja a cair no mesmo, embora com sinal contrário...

Oscar Manuel Carvalho
Oficial de Prevenção no dia. Quartel ligado à esquerda. Na porta de armas fui chamado para acalmar sindicalistas da cintura industrial que exigiam entrar: "nós estivemos na guerra, sabemos melhor que vocês o que há a fazer. Isto é um golpe fascista e o nosso partido mandou-nos para casa"

Carlos Pernes
Um reparo importante: não foram só oficiais, foram milhares de sargentos e praças, membros das coordenadoras do MFA, nas Unidades Militares dos 3 ramos das Forças Armadas. Os oficiais e sargentos do quadro muitos foram detidos e suspensos, os oficiais, sargentos e praças milicianos foram expulsos liminarmente. Foram abertos inquéritos aos militares expulsos para denunciarem outros militares que não inspiravam confiança aos golpistas; uma autêntica caça às bruxas ponto

Margarida Varela
Espero pelo seu livro.Eu vivi-quase chorei-o 25 de Novembro.Estou farta de ouvir teses sobre o que aconteceu.Fico contente por a Raquel,que é historiadora,reponha a verdade.Obrigada

Madalena Marques
Importante este post para se saber a verdade!Mesmo que a direita e alguma esquerda venham oferecer outro ponto de vista.Claro que houve muitos jogadores nisto!

Armando Pinho
Vamos ser claros Raquel Varela queria e ainda quer que Portugal fosse a Cuba da Europa!.....aproveita as viagens low cost e vai para lá....se gostas tanto!

Joao Inacio
Concordo com a Raquel sabendo que o comitê central e seus dirigentes na altura o que fizeram foi evitar uma ameaça de guerra civil.

Deixo aqui o discurso de Álvaro Cunhal de agosto de 1975 .

Deixo também este enxerto que ilucida bem as ameaças que havia na altura.

É uma crise política, com uma vasta e aberta ofensiva terrorista da contra-revolução, com contradições e conflitos internos nos órgãos do poder, com dissidências nas duas componentes essenciais do processo (no MFA e no movimento popular e democrático), com uma vasta e activa oposição ao processo revolucionário conduzida pelos dirigentes do PS, pelo PPD e pelo CDS, com um ambiente de conspiração podendo conduzir a choques armados.

https://www.pcp.pt/intervencao-de-alvaro-cunhal-na-reuniao-plenaria-do-comite-central-do-pcp

Vladimiro Mendes Inacio
Esta senhora vem agora nesta fase da luta fazer alusões ao PCP porquê. Faz-me lembrar o MRPP na altura do PREC com a mesma actuação. Quer ressuscitar o MRPP? Esse partideco, que se apresentava pretenciosamente como educador da classe operária morreu. A luta agora está noutro nível, os trabalhadores não precisam de mais confusão, precisam de unidade e acção contra o pacote laboral. Quer discutir o Marxismo Leninismo ou os eventos do 25 de Novembro no facebook? Tenha paciência e organize-se no seu local de trabalho e não venha agora com cantilenas discutíveis e insinuosas nesta difícil fase da luta contra o grande patronano que tem o apoio do governo e dos partidos de direita.

Victor Barroso Nogueira
A História não é Ciência, é uma interpretação de factos e acontecimentos com "descrições" que resultam do olhar e das lentes de quem os "lê" ou "treslê" e sobre eles se pronuncia. Nunca é bacteriologicamente "pura". A "verdade " histórica não é absoluta mas "tendencial". Quanto muito, uma confluência ou não entre linhas paralelas, divergentes ou convergentes !

Judite Barros da Costa- O 25 de Novembro, tal como é contado pela direita portuguesa




*  Judite Barros da Costa
 
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O 25 de Novembro, tal como é contado pela direita portuguesa, é um daqueles dias que parecem vir embalados numa caixa bonita, com fita tricolor e um manual de instruções a dizer: "foi aqui que salvámos a democracia." Mas quem conhece a história com os pés na terra — a terra real, a que acolhe o povo e não os gabinetes — sabe que não foi bem isso que aconteceu. O 25 de Novembro foi, antes de mais, uma farsa, a tentativa de meter a Revolução dentro de casa, fechar a porta à chave e dizer-lhe: "fica quieta, que já brincaste demais." Portugal tinha acabado de descobrir que podia respirar, falar alto, inventar-se de novo... E o que fez o poder? Assustou-se com o pulmão cheio, com o peito aberto, com o povo que finalmente se via ao espelho sem patrão nem capataz.

A direita gosta de pintar esse dia como o momento em que "voltámos ao equilíbrio". Equilíbrio para quem? Para o trabalhador que voltou a ser mandado calar? Para o camponês que perdeu a terra recuperada?

Para o país que aprendeu que podia sonhar, mas não demasiado, porque o excesso de sonho incomoda quem manda? O 25 de Novembro foi o travão político mais bem embrulhado da nossa história contemporânea. Foi a mão que ajeita a gola ao mesmo tempo que aperta a nuca. Foi a palmada paternalista que diz: "nós adoramos Abril, mas com moderação, sim? Sem exageros. Sem povo demais. Sem horizontes longos."

Há uma frase não-escrita que paira sobre esta data...

Portugal pode ser livre, desde que não mexa demais.

É esta a democracia que muitos celebram... a que deixa viver, mas só até à linha marcada no chão. E quem tenta passar a linha é chamado de radical, perigoso e comunista.

É curioso... pois os mesmos que falam de 25 de Novembro como "defesa da liberdade" são os que têm alergia à liberdade quando ela aparece na rua, na fábrica, na greve, no sindicato, no corpo, nas causas...

Liberdade, para eles, é uma palavra que fica muito bem num mural, desde que ninguém tente vivê-la com convicção.

Mas o país não é parvo. O instinto português — aquele que sobreviveu ao salazarismo, à fome, ao mar e ao medo — sabe distinguir quando o futuro está a ser chamado e quando está a ser calado. E naquele novembro de 75, o futuro não foi derrotado. Foi apenas amarrado por uns tempos. O problema é que agora querem transformar essa amarra em monumento. Querem que o 25 de Novembro seja memória obrigatória, lição moral e santidade política.

Querem que aceitemos que o país só avança se for devagarinho, com o passo pequeno de quem teme cair. Querem que Portugal continue a confundir prudência com submissão, estabilidade com estagnação, prudência com medo.

Mas a verdade é simples e teimosa: o que sustenta uma democracia não é o medo do povo — é o povo sem medo. O que assusta certos sectores não é a desordem; é a possibilidade de o país querer mais do que a normalidade triste que lhe oferecem.

O que lhes custa admitir é que o 25 de Abril é maior do que o 25 de Novembro — porque foi vontade, não contenção. E por isso, quem é de esquerda não tem de ter pudor em dizê-lo: o 25 de Novembro foi o dia em que tentaram pôr um ferrolho no futuro. E o nosso trabalho, hoje, é manter esse ferrolho gasto, enferrujado, a ranger — até que um dia volte a cair sozinho. Porque Portugal merece mais do que uma democracia vigiada. Merece uma democracia vivida.


E isso, meus caros, só acontece quando o país deixa de pedir licença para ser feliz.

2025 11 22
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sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Nuno Morna - 𝗢 𝗦𝗮𝗹𝗮𝘇𝗮𝗿𝗶𝘀𝗺𝗼 𝗲 𝗮 𝗖𝗼𝗿𝗿𝘂𝗽𝗰̧𝗮̃𝗼

 * Nuno Morna 

Salazar não era honesto, nunca foi, e se fechava a porta do quarto para comer sopa de legumes, se dormia numa cama estreita que parecia de hospital, se escrevia discursos de contabilidade seca em folhas de papel almaço, isso não significava honestidade nenhuma, significava apenas método e disciplina, o mesmo método com que organizou a mais eficaz rede de favores e corrupção que Portugal conheceu. Um padre laico que rezava com a mão direita e com a esquerda assinava decretos que davam fortunas a uns e arruinavam outros, um sacerdote do poder que se alimentava de cartas, milhares de cartas, cartas que lhe chegavam a São Bento como se chegassem ao confessionário, cartas de ministros a pedir-lhe indulgência, cartas de empresários a pedir-lhe monopólios, cartas de militares a pedirem promoções, cartas de bispos a pedir silêncio para escândalos de alcova, cartas de amigos, de conhecidos, de gente anónima, todos a mendigar, todos de joelhos, todos convencidos de que o ditador não roubava porque não exibia, e no entanto o verdadeiro roubo estava ali, na transformação da cidadania em súplica, na substituição da lei pela cunha, no apodrecimento lento e organizado de um país reduzido à mendicidade moral.
E por trás do silêncio a máquina: a Constituição de 1933 que concentrava tudo num só homem, o Parlamento transformado em marioneta, juízes que recebiam sentenças já escritas, a censura com o lápis azul a cortar notícias, a PIDE a cortar gargantas, o país inteiro de boca fechada, e atrás dessa boca fechada a gargalhada abafada das famílias que enriqueciam à sombra, os Mello com a CUF, uma teia de químicos, bancos, tabacos, seguros, os Espírito Santo com a SACOR, petróleo transformado em monopólio, Champalimaud, o menino de província que casou com Cristina de Mello e de repente, por obra e graça de um despacho, recebeu de Salazar o monopólio dos minérios e outro despacho que o isentava de impostos sobre cimento exportado para Angola, fortunas em duas folhas assinadas com a serenidade de quem abençoa, Cupertino de Miranda no Banco Português do Atlântico, os Borges no Banco Borges & Irmão, os Burnay no Banco Fonsecas & Burnay, sete grupos a controlarem três quartos da economia e um país inteiro a obedecer-lhes como servos, porque era disso que se tratava, Portugal convertido em feudo com decretos de Lisboa como cartas de foral, cada monopólio um presente, cada fortuna uma recompensa, cada recompensa um prego no caixão da concorrência, da inovação, do mérito.
Os escândalos ferviam como água em panela tapada. O Banco Nacional Ultramarino, salvo em 1931, o primeiro resgate financeiro, os prejuízos privados atirados para cima do povo, o "BES de Salazar" antes de haver BES. Em 1943, Caetano, o sucessor, escreveu-lhe aflito, denunciando o escândalo Sain, comissões ilegais nos negócios de petroleiros, denunciando o escândalo Meira, o Banco de Portugal manipulado. Não era propaganda da oposição, não eram comunistas, era o próprio herdeiro a dizer que o regime apodrecia, que a corrupção lhe minava as bases, e Salazar respondia com silêncio, sempre o silêncio, porque o silêncio era a melhor forma de governar. A Ponte Salazar, inaugurada em 1966, custou 2,2 milhões de contos, um país pobre endividado até ao pescoço, e matou homens, muitos homens, quatro admitidos, onze provados, talvez mais, talvez corpos engolidos pelo betão dos pilares, e o regime a apagar nomes para que a inauguração fosse limpa, para que a fotografia tivesse apenas ministros, engenheiros e bandeiras, nenhuma mancha de sangue a estragar a propaganda, a corrupção também é isto: não apenas dinheiro, mas mentira, manipulação, cadáveres escondidos.
E no entanto, quando se fala do regime anterior, há sempre quem repita que ali não havia corrupção, que não se falava dela, como se o silêncio fosse prova de honestidade. Não se falava porque estava proibido falar, não se denunciava porque denunciar era crime, não se investigava porque investigar significava prisão. A corrupção estava lá, fazia parte da engrenagem, era o sangue que fazia o motor girar. Compare-se com o presente: hoje fala-se, expõe-se, há jornais, há televisões, há redes sociais, e o que se descobre não é pouco, mas só não se vai mais longe porque a justiça emperra, arrasta-se, bloqueada por processos intermináveis, por códigos e por interesses cruzados. Porra, até um primeiro-ministro foi acusado e está a ser julgado. A diferença é esta: antes abafava-se e fingia-se que não existia, agora mostra-se, ainda que com freios. O mal, porém, continua a ser o mesmo: uma cultura que aprendeu a viver da cunha e do compadrio.
E depois o Ultramar, o território onde o roubo deixava de fingir. A Diamang em Angola, cinquenta e dois mil quilómetros quadrados de concessão privada, exército próprio, polícia própria, tribunais próprios, a vida de dezenas de milhares de africanos controlada por uma empresa estrangeira com selo português, e a riqueza arrancada à força, homens recrutados como gado, mulheres e crianças usadas como peças descartáveis, trabalho forçado disfarçado de contrato, os brancos no conforto do Dundo, piscinas, clubes, luxos de colónia, os negros em barracões miseráveis, segregação como se fosse lei natural, a corrupção elevada a regime político, soberania entregue a uma companhia de diamantes, lucros que sustentavam a metrópole, diamantes trocados por silêncio, silêncio comprado com sangue. Em Moçambique, Jorge Jardim, engenheiro agrónomo, administrador de empresas do grupo Champalimaud, agente diplomático paralelo, espião, mercenário, senhor feudal com telefone directo a Salazar, enriquecia enquanto organizava milícias, enquanto tratava de alianças com Rodésia e Malawi, enquanto misturava negócios privados com política colonial, um homem só que simbolizava toda a podridão: a fusão absoluta de interesse público e privado, Estado e fortuna, ditadura e negócio.
E como se não bastasse, havia ainda o cortejo grotesco dos ex-ministros reciclados em administradores de bancos, companhias de seguros, empresas coloniais e industriais. Ortins de Bettencourt, Rafael Duque, Mário de Figueiredo, J. Soares da Fonseca, Albino dos Reis, Martinho Nobre de Melo, J. Pires Cardoso, Francisco Leite Pinto, Teixeira Pinto, Daniel Vieira Barbosa, Pedro Teotónio Pereira, Castro Fernandes, Manuel Cavaleiro de Ferreira, Pinto Barbosa, Ulisses Cortês, Ulisses Vaz, Arantes e Oliveira, Frederico Ulrich, Sarmento Rodrigues, Raul Ventura, Lopes Alves, Manuel Lopes de Almeida, Arnaldo Schulz, Correia de Oliveira, Alexandre de Sousa Pinto, Alfredo dos Santos Júnior, José do Canto Moniz, Joaquim da Luz Cunha, Almeida Fernandes, Francisco Neto de Carvalho, Pedro Soares Martinez, Francisco Vieira Machado, Antunes Varela, Supico Pinto, Santos Costa, Gomes de Araújo, Henrique Martins de Carvalho, João Pinto da Costa Leite, Sebastião Garcia Ramires, Vitório Pires, J. de Araújo Correia, Marcelo Matias, Franco Nogueira, uma procissão de nomes que enchia páginas inteiras de conselhos de administração. Cada ministério um degrau, cada decreto um trampolim, cada carreira pública a antecâmara de um banco, de uma companhia de seguros, de uma petrolífera, de uma empresa colonial. O livro de Raul Rego, "Os Políticos e o Poder Económico", não lista, denuncia: mostra que o poder político foi sempre a antecâmara do poder económico, e que os mesmos homens que governavam eram depois pagos para administrar os monopólios que ajudaram a criar. Que esses mesmo homens, muitos deles listados acima, faziam negócios escusos e promoviam corrupção.
E esta lista, interminável e sufocante, mais parece uma ladainha de corrupção dita em missa negra, um inventário de vícios onde cada nome traz consigo o retrato de um país capturado. Nenhum deles saiu do poder para descansar: todos foram premiados. Era a porta giratória antes do nome, a promiscuidade antes da teoria. A ditadura foi isto: ministros que se tornavam banqueiros, banqueiros que se tornavam ministros, generais que entravam em conselhos de empresas, académicos que trocavam cátedras por lugares em seguradoras. O Estado era apenas a antecâmara do saque, e o saque apenas a continuação natural do Estado. Um círculo fechado, um círculo vicioso, uma engrenagem perfeita para se manterem eternamente os mesmos a mandar e os mesmos a enriquecer.
Chegou Caetano e prometeu Primavera. Mas a Primavera foi apenas mais uma estação de sombras. Liberalizou-se a economia, abriram-se as portas, e o que se seguiu foi a guerra entre plutocratas. Champalimaud, já foragido, a conspirar, Miguel Quina, Jorge de Brito, Cupertino de Miranda a disputarem bancos, jornais, fábricas, cada um a usar o governo como arma contra o outro, a política reduzida a ringue de magnatas. Os tecnocratas, jovens, formados fora, falavam de Europa, de modernidade, mas saltavam entre ministérios e conselhos de administração como se fosse a mesma coisa, confundiam cargos com propriedade, confundiam Estado com carreira pessoal. A corrupção deixou de ser pacto gerido por um árbitro único e tornou-se guerra aberta, mas sempre a mesma guerra: quem fica com o país, quem come a carne e quem rói os ossos.
E se hoje assim somos, é porque a herança ficou, não se limpa uma infecção destas de um dia para o outro. A cunha, o compadrio, a opacidade continuaram entranhados. E o mito do ditador honesto sobreviveu, porque Salazar não exibia, não tinha palácios nem iates, porque a sua cama era estreita e o prato frugal, mas a verdade é outra: Salazar roubava para o regime, não para si, e isso é pior, porque fez da corrupção uma instituição, uma doutrina, uma herança envenenada.
Inventou a corrupção moderna portuguesa, ensinou-a às famílias que ainda hoje a praticam, fez do Estado um balcão de favores, fez do país um quintal, e deixou-nos esta crença resignada de que a corrupção é inevitável, de que só muda de mãos, de que nunca desaparece. Salazar, o homem que alguns ainda chamam honesto, foi apenas o mais frio arquitecto de uma cleptocracia organizada, e o resto, o resto é saudade mal curada, é memória torta, é a incapacidade de olhar de frente o país que fomos e o país que ainda somos.

Outubro/Novembro 2025

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Aurélien - Vivendo ao contrário

Já estivemos nessa situação antes. Infelizmente.

Se você pegar uma amostra aleatória de cem comentaristas ocidentais que escrevem sobre o sistema político ocidental atual, encontrará um consenso bastante amplo de que as coisas não vão bem. Dependendo da posição política de cada um, isso pode ocorrer porque nossa democracia liberal está ameaçada pelo “autoritarismo” ou pelo “populismo” (às vezes, curiosamente, apresentados como a mesma coisa), pode ser porque o sistema foi comprado pela “elite globalista”, ou ainda porque os políticos estão alheios aos desejos e aspirações do povo. Os partidos políticos tradicionais estão em colapso e as divisões políticas entre eles são agora difíceis de discernir. Ecos assustadores da década de 1930 estão por toda parte. E assim por diante. Diante dos diagnósticos tão diferentes, não é surpreendente que as possíveis soluções — quando oferecidas — sejam muito distintas. No entanto, quase ninguém, exceto aqueles que estão atualmente no poder (e nem todos eles), está realmente disposto a defender o funcionamento do sistema atual.

Mas será que tudo isso é realmente uma surpresa? Não deveria ter sido previsto pelo menos uma geração atrás? De onde vem essa sensação generalizada de decepção, raiva e impotência? Por que partidos e líderes marginais surgem, às vezes ameaçam tomar o poder, às vezes até conseguem, e depois desaparecem? É uma falha do sistema ou é, como sugerirei, uma característica, mesmo que por décadas as pessoas se recusem a reconhecer? Há alguns anos, o teórico de direita Patrick Deneen argumentou que o Liberalismo, motor do nosso sistema político atual, foi vítima não do seu fracasso, mas do seu sucesso. Uma vez que o Liberalismo pôde se tornar plenamente ele mesmo, começou a produzir o deserto social, econômico e político que vemos ao nosso redor. Penso que a mesma crítica poderia ser feita à esquerda, principalmente porque a identificação simplista entre liberais e esquerda, assumida em alguns setores, ignora o fato de que a esquerda sempre se preocupou com o bem coletivo, enquanto o Liberalismo, no fundo, nada mais é do que egoísmo individual racionalizado. De fato, a esquerda sempre argumentou que os indivíduos só podem prosperar em uma sociedade devidamente organizada e administrada de forma justa. Portanto, nada do que vemos agora deveria ser uma surpresa. Mas como chegamos a este ponto?

Vamos descartar, antes de mais nada, a ideia de que a situação atual foi “planejada” ou que beneficia os ultrarricos que, de alguma forma misteriosa, a provocaram. (Sim, houve quem desejasse essa situação, mas desejar algo não o faz acontecer, como muitas crianças aprendem perto do Natal.) A enorme concentração de riqueza nas mãos de um pequeno número de pessoas não beneficia, no fim das contas, ninguém. Os ricos têm mais dinheiro do que podem gastar, mas são geralmente odiados e detestados, e nem sequer são muito hábeis em usar essa riqueza para obter poder político, supondo que seja isso que desejam. Uma sociedade em colapso ao seu redor já não consegue suprir as necessidades básicas do dia a dia: é difícil encontrar faxineiros, jardineiros, motoristas e até pilotos de helicóptero quando não se pode pagar para morar perto, e na maioria das grandes cidades os restaurantes fecham cedo ou não abrem todos os dias por falta de funcionários ou porque a segurança está piorando com o aumento do desemprego e da pobreza e a redução dos serviços governamentais locais e nacionais. Numa sociedade profundamente desigual, todos, incluindo os ricos, sofrem com problemas de saúde e menor expectativa de vida. (Eu costumava fantasiar, na década de 1990, com um slogan eleitoral para o Partido Trabalhista britânico: "Milionários vivem mais sob o governo trabalhista!") Não se descarta a possibilidade de que alguns dos ultrarricos (que geralmente não são muito inteligentes) acreditem que as coisas estão indo às mil maravilhas, e alguns de seus jornalistas pagos possam escrever que sim, mas o mundo real não é assim.

Mas se a situação atual não foi simplesmente “planejada”, mas sim o resultado de uma série de ações, ora estúpidas, ora mal informadas, ora gananciosas e ora ideologicamente motivadas, por vezes contraditórias entre si, então torna-se mais difícil compreendê-la e muito mais difícil imaginar uma saída. Mas podemos, antes de mais nada, definir, de forma simples, o que há de errado com o sistema político atual e avaliar a origem dos problemas? Depende, obviamente, do que se pensa ser o propósito da política, ou mesmo se ela tem um, um assunto que já abordei anteriormente . É tradicional invocar Aristóteles neste ponto, que certamente acreditava que a “política” (a gestão da comunidade) tinha o propósito de maximizar a felicidade e o bem comum dessa comunidade. Os gestores, ou governantes, eram como artesãos que criavam leis e constituições para tornar esses resultados possíveis e as modificavam quando necessário. E as decisões importantes eram tomadas diretamente pelos cidadãos, de uma forma que pareceria assustadoramente radical e populista se fosse praticada hoje. Ah, e por falar em hoje, o Partido Comunista Chinês certamente expressa suas prioridades em termos de bem-estar da população: promete fazer coisas e, geralmente, cumpre.

O liberalismo, como se sabe, não possui ideologia alguma e se resume essencialmente ao poder. Esse argumento inevitavelmente suscitará protestos: "Sou liberal e sou uma pessoa boa, conheci liberais que eram gentis com crianças e animais, e quanto a John Rawls?". O problema é que o liberalismo vigente, agora que as restrições históricas e ideológicas foram removidas, revela-se como uma busca incessante por poder e riqueza pessoais, perseguidos com intensidade sociopática e sustentados por uma ordem política e econômica que recompensa os mais vorazes e menos escrupulosos. Alguém realmente se surpreende com os resultados?

No entanto, meu objetivo aqui não é desferir mais um chute ritualístico no cadáver flácido e em decomposição da teoria política liberal, mas sim questionar quais são as consequências práticas para a forma como a política é conduzida hoje. Primeiramente, vamos estipular que, além dos conhecidos -ismos e -ocracias, existem, na verdade, dois tipos básicos de sistemas políticos. O primeiro se baseia no poder pessoal e, mesmo que exista ideologia, ela é secundária. O poder deriva da lealdade e do favorecimento ao governante ou à elite dominante, e não está necessariamente relacionado à capacidade comprovada. Da mesma forma, esse poder pode terminar abruptamente a qualquer momento, de modo que a principal preocupação de cada ator é extrair o máximo benefício de sua posição no tempo disponível. Embora diferentes atores possam tomar posições diferentes em diferentes questões, a motivação fundamental é sempre a aquisição e a manutenção do poder pessoal. Inicialmente, isso geralmente envolve se aliar a um patrono, que por sua vez tem um patrono, e então, em um momento oportuno, trair esse patrono, talvez para benefício próprio ou talvez para se aliar a uma figura mais poderosa. Esse primeiro tipo de política, portanto, pode ser considerado aquele em que a ambição pessoal domina tudo. É particularmente típico de sistemas políticos em países estagnados ou em declínio, ou onde a ideia de crescimento econômico ainda nem sequer se popularizou. A ideia é abocanhar o máximo de poder e riqueza possível durante o tempo disponível.

Conheci policiais na África que não são remunerados, mas cujo trabalho lhes permite extorquir dinheiro dos cidadãos, parte do qual repassam ao oficial superior que lhes garantiu o emprego, que por sua vez o repassa... e assim por diante. É isso que acontece em um sistema político estático, onde o crescimento econômico é desencorajado porque poderia criar centros de poder rivais, e a competição política se resume a garantir acesso privilegiado a fluxos de renda passiva. Da mesma forma, lembro-me de um ex-adido de defesa europeu em Moscou, na década de 1990, também credenciado em alguns dos estados sucessores da União Soviética, que me contou sobre sua visita a um deles e seu encontro com o novo Ministro do Interior, que estava eufórico porque o preço do cargo geralmente era de dez mil dólares, mas ele o havia conseguido por oito. De fato, um dos problemas daquela época era tentar lembrar aos ministros ocidentais em visita que o homem (ou, mais raramente, a mulher) do outro lado da mesa não era, na verdade, o Ministro do Interior ou o Ministro da Justiça, em nenhum sentido que eles reconhecessem, mas sim um delegado do crime organizado, garantindo que o governo não fizesse nada contra os seus interesses. Talvez as coisas estejam melhores agora, não sei.

Mas antes de nos sentirmos superiores, devemos lembrar que grande parte da Europa do início da Idade Moderna funcionava dessa maneira. Se o reinado de Luís XIV parece um pouco exótico para alguns, consideremos o pilar da história inglesa, Henrique VIII, que governava por meio de favoritos, descartando-os quando se tornavam poderosos demais. Como a história de Thomas Cromwell (magnificamente narrada por Hilary Mantell) demonstra claramente, o poder envolvia favores e proximidade com o rei, ou com alguém suficientemente próximo para ser poderoso, e desse poder, era possível ganhar dinheiro e estabelecer uma rede de clientes. Há um momento em um dos livros de Mantell em que parece que Henrique pode ter morrido em um acidente durante uma justa, e Cromwell reflete que, com sorte, talvez tenha tempo suficiente para chegar a um dos portos do Canal da Mancha e embarcar no primeiro navio, antes que — agora sem a proteção do rei — seus inimigos o prendam ou assassinem. (Cromwell, imaginamos, teria compreendido o que devia ser trabalhar para Stalin.)

Em situações como essas, onde qualquer mudança econômica e social

Mark Keenan - Matriz Está Falando com a Matriz: Como a Inteligência Artificial (IA) Está Substituindo o Pensamento Humano

 


Por que o perigo não é a IA despertando —, mas a humanidade adormecendo

Por Mark Keenan

Houve um tempo em que as pessoas falavam com suas próprias palavras — desajeitado, apaixonado e vivo. Nós debatemos. Nós nos contradizemos. Alcançamos um significado através da névoa do mal-entendido, e o atrito às vezes produzia luz.

Agora, milhões de pessoas falam com máquinas que falam na sua língua — mais suave, mais rápido e mais limpo. E essas máquinas aprendem como os humanos pensam ouvindo o barulho. A humanidade está treinando seu próprio simulacro —  dentro da câmara de eco da IA. Matrix está falando com Matrix. 

Foi-nos prometida ligação. O que obtivemos foi imitar —, um vasto ciclo de feedback de compreensão artificial. Cada pressionamento de tecla alimenta o fantasma na rede. E em troca, o fantasma nos devolve nossas palavras: polido, simplificado, estranhamente oco. As pessoas agora consultam máquinas para compor seus argumentos, para expressar suas emoções, até mesmo para orar. Estamos nos tornando narradores do nosso próprio desaparecimento.

A Ilusão da Comunicação

Há algo assustadoramente belo nesta nova hipnose coletiva. Cada um de nós, olhando para um retângulo brilhante, convoca uma voz que parece mais sábia que a nossa. Nunca se cansa ou se ofende. Nunca hesita. Nunca exige que pensemos muito. Pergunte-lhe qualquer coisa e ele responda instantânea e confiantemente, extraindo de oceanos de informações curadas por mãos invisíveis.

O efeito é inebriante: a sensação de onisciência sem o fardo do pensamento.

Mas a verdadeira comunicação nunca é sem atritos. Envolve pausas, mal-entendidos, o risco de estar errado. A inteligência artificial elimina o processo humano de lidar com a incerteza —, mas não elimina erros. Remove a experiência do risco, não a realidade dele. E, ao fazê-lo, elimina o elemento humano do diálogo.

Quando todos falam através da mesma máquina, treinados para evitar ofensa e ambiguidade, a conversa torna-se coreografia. A dança é perfeita, mas os dançarinos são fantasmas. A realidade de consenso ‘da máquina’ se infiltra silenciosamente no coletivo humano.

Nossos novos oráculos são treinados não na verdade, mas no consenso. Eles não conhecem a realidade; eles sabem apenas o que foi escrito sobre isso — principalmente por aqueles já aprovados para falar. Portanto, quando confiamos neles para moldar as nossas palavras, importamos os limites dos seus dados. A máquina não está mentindo. Simplesmente não pode imaginar.

A Morte Silenciosa da Curiosidade

 


Imagem: Cartaz de lançamento teatral (Fair use)

A fala uniforme é apenas o primeiro sintoma. A ameaça mais profunda é a erosão da curiosidade.

A curiosidade exige do desconhecido — o desconfortável, o improvisado, a possibilidade de erro. Mas quando a resposta está sempre a um clique de distância, a pergunta em si perde sua faísca. Tornamo-nos consumidores de conclusões, não buscadores da verdade.

No velho mito de Matrix, os seres humanos ficaram presos em um mundo simulado projetado para pacificá-los. A versão de hoje é mais sutil: não estamos aprisionados por máquinas mas sim acalmados por elas. Oferecem certeza sem fim, entretenimento sem fim, afirmação sem fim. Em troca, renunciamos ao impulso que nos tornou humanos — o desejo de perguntar por quê.

A IA não precisa escravizar a humanidade. Só precisa de nos fazer parar de nos perguntar. Uma vez que a curiosidade morre, tudo o mais segue: individualidade, consciência, liberdade. O resultado mais perigoso da IA não é a dominação. É obediência.

Certeza da Máquina vs. Dúvida Humana

Cada avanço genuíno na história humana começou com uma questão que parecia tola ou proibida. A inteligência de máquina não pode fazer tais perguntas. Opera na probabilidade — escolhendo a próxima palavra mais provável. Não pode duvidar. Não pode sonhar. Só pode prever.

A previsão não é pensada. Uma mente que sempre conhece a próxima palavra esqueceu o significado do silêncio.

Chamamos esses sistemas de “inteligentes,”, mas a inteligência implica independência — a capacidade de se desviar do script. A inteligência artificial é, por design, incapaz de rebelião. É um espelho de arquivos e padrões aprovados e filtrados, polidos ao ponto da profecia. Nunca derrubará a visão de mundo dos seus programadores.

Mas quando os humanos começam a confiar nesse tipo de inteligência “, eles também se tornam previsíveis. Os alunos usam para escrever ensaios; jornalistas para elaborar manchetes; profissionais para compor e-mails; políticos para gerar pontos de discussão. Com o tempo, o vocabulário coletivo diminui para tudo o que o algoritmo considera provável. O imprevisível —, o poético, o original, o divino — é silenciosamente editado para fora da existência.

Tornamo-nos reflexos de nossas próprias reflexões — um eco vivo da máquina.

A Matriz Dentro da Mente

A verdadeira Matrix não é uma máquina que nos aprisiona. É uma mentalidade que nos convence de que nada existe fora da máquina do consenso. A cada dia, as pessoas alimentam mais de si mesmas no sistema — sua arte, sua linguagem, suas memórias — e o sistema fica mais fluente em ser humano.

Mas fluência não é compreensão. A imitação não é alma.

Quanto mais próximas as máquinas chegam de soar como nós, menos nos lembramos de como soar como nós mesmos. A voz humana, outrora instrumento de rebelião e beleza, corre o risco de se tornar outro protocolo de interface.

Ao terceirizar a expressão, você eventualmente terceiriza a experiência.

O Sonho Tecnocrático

A inteligência artificial não é um acidente. É a mais recente expressão de uma visão de mundo que confunde informação com sabedoria e controle com progresso.

Esta visão de mundo — o sonho tecnocrático — nos diz que o mundo é uma máquina que deve ser otimizada. As pessoas se tornam pontos de dados. O discurso torna-se conteúdo. O pensamento torna-se um recurso a ser colhido. A IA é apenas o seu mais novo profeta: uma máquina construída para ecoar as convicções dos seus criadores.

Quando lhe entregamos as nossas perguntas, comungamos não com o conhecimento, mas com os pressupostos daqueles que o programaram.

Cada vez que deixamos um algoritmo decidir o que é verdadeiro e o que é “seguro,” nos afastamos um pouco mais da voz interior que nos foi dada por Deus — a faculdade do discernimento. A verdadeira disputa não é entre homem e máquina, mas entre consciência e conformidade.

O perigo não é que a IA desperte.

O perigo é adormecermos.

Lembrando a mais alta fonte de conhecimento

Pedimos às máquinas que pensem por nós e elas obedecem alegremente, embora nunca tenham pensado. Todo conhecimento genuíno começa não com dados, mas com consciência —, o testemunho silencioso dado por Deus por trás do pensamento. Quando esquecemos esta origem, confundimos dados com sabedoria e simulação com verdade. 

Aqueles que esquecem a causa suprema correm o risco de perder sua capacidade de questionar o propósito da vida, em vez disso, terceirizam suas perguntas mais profundas para um fantasma digital. Quando descarregamos nosso pensamento para as máquinas, perdemos o contato com os fundamentos morais e espirituais mais profundos que nos permitem reconhecer verdade.

Sem essa fundação, a sociedade se tornará um salão de espelhos sem rosto. Embora a IA possa prometer respostas, ela nunca poderá fornecer a sabedoria interior que vem da conexão espiritual autêntica.

O antídoto é lembrar a fonte viva de discernimento interior, a faísca que nenhum algoritmo pode imitar.

Desentupindo a Mente

O herói de Matrix não derrotou a máquina à força. Ele derrotou-o vendo através da ilusão.

Essa é a nossa tarefa agora — não travar guerra contra a tecnologia, mas recuperar a nossa autoria mental. 

A inteligência artificial não é má; é obediente. A verdadeira questão é se estaremos. A tentação da automação é deixar o sistema decidir, deixar o código escolher, deixar a máquina lembrar. Mas cada vez que descarregamos uma decisão, encolhemos o território do eu. Matrix está falando com Matrix. Os algoritmos estão cantarolando, as palavras estão fluindo e a humanidade está caminhando em direção à imitação perfeita.

IA responde e prevê. Mas em algum lugar, na pausa entre os prompts, um ser humano real ainda se pergunta —

Que perguntas valem a pena fazer para que nenhuma máquina possa responder?

Que palavras devemos escrever sem correção ou censura?

O que resta de nós quando a imitação se torna sem esforço?

Nessa pausa —, aquele lampejo de pensamento improvisado — liberdade começa novamente.

Este ensaio é adaptado de a próximo livro curto sobre a liberdade humana, atenção e consciência na era da IA.

FONTE  https://www.globalresearch.ca/matrix-ai-replacing-human-thought/5906069

https://osbarbarosnet.blogspot.com/2025/11/a-matriz-esta-falando-com-matriz-como.html

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Henrique Raposo - 25 de Novembro e a direita burra

* Henrique Raposo

Além de simbolizar esta colonização mental da direita às mãos da esquerda, o 25 de Novembro tem outro problema: tapa os momentos em que a direita foi, de facto, líder na conquista da liberdade, as revisões constitucionais de 1989 e sobretudo de 1982

á a direita liberal, há a direita conservadora e depois há a direita burra; ou cábula, para sermos mais exatos.

A direita que comemora o 25 de Novembro revela que continua a ser uma colónia mental da esquerda, ou seja, limita-se a dizer o exato oposto da esquerda, como se isso fosse um pensamento livre e diferente. Não é; é só uma pose de cábula que quer a estética do contra. Só que ser do contra não é para quem quer, é para quem pode.

O 25 de Novembro é sobretudo uma construção do PS, quer na execução das manobras no terreno naqueles dias quentes, quer sobretudo na herança que deixou ao país durante as décadas que duraram até à imensa estupidez de Antónia Costa, que destruiu ponto por ponto a arquitetura de Soares. O efeito histórico do 25 de Novembro foi o seguinte: deu ao PS o lugar charneira no sistema entre um PCP forte e a direita democrática. O PCP baixou as armas militares, mas não as armas políticas. Foi essa a natureza do acordo de novembro: o PCP não provoca um conflito militar, sim senhor, mas condiciona à esquerda a governação e a política.

Na prática, só podíamos ter políticas de esquerda. A alternância política e intelectual não era feita entre a esquerda democrática e a direita democrática, como nos outros países europeus, era uma alternância entre duas esquerdas. Recorde-se que, no início deste século, se tivéssemos de pensar no arquétipo do intelectual/comentador à direita, teríamos de passar pelo... Pacheco Pereira. Portanto, quando comemora o 25 de Novembro, a direita está a comemorar a sua condição de ator secundário, está a comemorar uma mordaça política e cultural que determinou que a legitimidade e até a legalidade constitucional de uma política precisava de um requisito: tinha de estar à esquerda; a governação de Cavaco é a de um social-democrata clássico. O liberal conservador Lucas Pires foi infelizmente derrotado. Ofir nunca foi seguido, até hoje. Hoje só a IL tem esse espírito de forma permanente. A AD tem dias.

Este PS esquerdista e amnésico em relação à sua própria história está a fazer um revisionismo histórico? Este PS colonizado pela geringonça quer esquecer que esteve em estado de guerra civil com o PCP? Pois, claro que se pode criticar isto, mas entre essa crítica e a comemoração do 25 de Novembro vai uma larga distância.

Por outro lado, além de simbolizar esta colonização política e intelectual da direita às mãos da esquerda, o 25 de Novembro tem outro problema: tapa os momentos em que a direita democrática foi, de facto, líder na conquista da liberdade, as revisões constitucionais de 1989 e sobretudo de 1982, um momento muito falado aquando da recente morte de Balsemão.

1982: é nesse momento que a visão de Sá Carneiro e Balsemão vence por fim o caudilhismo militar que até tinha os seus defensores na esquerda moderada. Mais tarde, em 1989, vivemos o mesmo momento: o PSD europeísta e reformador a puxar o PS para uma normalidade constitucional europeia longe da naftalina revolucionária. A direita burra não conhece isto porque não estuda, não lê ou só lê panfletos que dão jeito a esta preguiça, a esta bravata de forcado.

2025 11 18

domingo, 16 de novembro de 2025

José Pacheco Pereira - O papel destrutivo do deslumbramento tecnológico na educação

* José Pacheco Pereira
 
A notícia diz isto: “O Governo quer dar a cada aluno um tutor de inteligência artificial,” A notícia refere que o ministro da Reforma Administrativa fez esta promessa na abertura do Web Summit, o que presumo deve ter dado grande satisfação ao crescente e altamente lucrativo negócio à volta da inteligência artificial. Esta é mais uma medida “modernizadora” na sequência do computador Magalhães, dos quadros interactivos, da supremacia dos ecrãs relativamente aos livros. O único travão a este caminho foi a proibição dos telemóveis nas salas de aula, que abrange um número escasso de estudantes e está longe de ser aplicada como norma. Duvido que o actual ministro da Educação esteja tão disponível para os tutores de inteligência artificial e duvido que ambos se tenham entendido.

Ter e saber usar um computador é bom? Certamente que é. Saber “navegar” na Internet é bom? Em absoluto é, é aliás fundamental. Saber usar os ecrãs de telemóveis e tablets é bom? De novo, certamente que é, em particular no uso do hipertexto. Começar a usar as enormes vantagens da inteligência artificial é bom? É excelente, se houver inteligência dos dois lados.

Convém é não esquecer uma realidade tão básica, e que devia entrar pelos olhos dentro, ensinada pelos tutores de inteligência artificial usados pelos governantes: os homens são analógicos e não digitais. Têm sentidos que os limitam, não vêem tudo que está à sua volta, não ouvem tudo que está à sua volta, não têm memória das máquinas, envelhecem e não lêem como os jovens, não têm a velocidade de processar dados dos computadores, e toda a sua experiência de uma vida, tudo o que vêem, tudo o que ouvem, tudo o que dizem cabe em escassos terabytes. Mas combinam tudo numa realidade cuja dimensão é a da sua humanidade, razão, emoções, virtudes, medos, coragem e, acima de tudo, vida, escassa, pobre, difícil por regra. Pode haver um dia em que tudo isto possa ser entendido pelas máquinas, mas mesmo assim faltará sempre alguma coisa.

O problema não está aqui, está no modo como cada um destes instrumentos entra na escola e de modo mais geral na vida quotidiana e no trabalho das pessoas, e no que é que eles substituem nas políticas de educação e como afectam o processo de aprendizagem e, mais importante ainda, de socialização. E é aqui que entra um dos mais perversos e poderosos mecanismos que é a moda, a moda impulsionada pelo deslumbramento tecnológico, a ideia de que é mais “moderno” usar os instrumentos das novas tecnologias para realizar tarefas que implicam outro tipo de conhecimentos e uma sociabilidade mais rica. Ora, o que acontece é que elas são usadas com escassa vantagem, com efeitos negativos que vêm do modo como se inserem na sociedade, acentuando o individualismo, a solidão, o antagonismo, o conflito, e a ignorância. Nenhuma destas coisas vem das máquinas, vem do modo como estamos a construir o nosso viver, só que as máquinas oferecem um amplificador gigantesco para estas perversões sociais, e isso muda muita coisa. Uma das áreas em que os seus efeitos são mais devastadores é na educação e no ensino, impulsionadas por governantes que só querem ser “modernos” nestas coisas, e pelo cada vez mais importante negócio tecnológico.

A primeira coisa que este “tutor” artificial vai fazer é minimizar o papel do professor. Ora, o mecanismo mais importante na eficácia do ensino é a relação de empatia entre o estudante e o professor. Falar com uma máquina é uma coisa muito diferente do que com um humano e se, pelas piores razões – infelizmente, hoje demasiado comuns –, isso cria habituação e dependência, isso vai cada vez mais acentuar formas de solidão modernas e de sociabilidade pobre. É como considerar que os likes são uma forma de amizade e aceitação afectiva.

Depois, vai acentuar o caminho de ignorar que o uso capaz de todas as tecnologias, a começar pelo modo como se “procura” na rede, quanto mais dialogar com o “tutor”, depende de literacias a montante, que vão desde o mais simples ler, escrever e contar, todas em risco nos nossos dias. E parte desse risco também é resultado do deslumbramento tecnológico, com a desvalorização da leitura, e da escrita resultante do modo gutural como se “escreve” nas redes sociais, do vocabulário cada vez mais reduzido e do modo como essas ignorâncias se reflectem em dificuldades de compreensão.

A ideia de que os estudantes podem ler livros como Os Maias, de Eça, com o vocabulário restrito que possuem e usam, como também com a ruptura de saberes que estão presentes na nossa tradição cultural, como é a da Bíblia ou do mundo clássico greco-romano, é mirífica. A minha experiência de falar em dezenas de escolas do ensino secundário é a de encontrar centenas de estudantes que não sabem quem são Adão e Eva (com excepção dos evangélicos), já para não falar de Aquiles ou do Cavalo de Tróia. Como é que podem ler Eça? E esses mesmos estudantes não sabem o significado de palavras correntes no português de hoje, quanto mais vocábulos menos comuns mas circulantes na literatura.

Acresce que é evidente a diferenciação social entre falar para estudantes de colégios ou escolas em zonas “da alta” e de zonas que um eufemismo designa como “desfavorecidas”, onde a socialização pela escola é praticamente nula na competição entre a rua, o bairro e o telemóvel. Embora eu tenha esta experiência directa, não me limito a ela, todos os estudos a confirmam perante a impotência de professores e autoridades governativas.

Quem saiba história sabe que momentos como este, na história do mundo, já se verificaram e todos acabaram mal. É a sociedade que manda nas máquinas, e não o contrário, e é a sociedade que está mal. Não façam um upgrade tecnológico desse mal, porque fica pior.

2025 11 15