D'ali e D'aqui
Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
quinta-feira, 27 de novembro de 2025
Eduardo Maltez Silva - É sempre assim que começa ...
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
António José Rodrigues - Os revanchistas de Novembro de 1975
A decisão do
governo da AD de constituir uma comissão para comemorar os 50 anos do 25 de
Novembro configura mais um capítulo da operação de falsificação e de deturpação
da história, por parte daqueles que nunca se conformaram com a Revolução de
Abril. Na verdade, 50 anos depois aí temos muitos dos herdeiros do regime de
Salazar e Caetano, agora de forma aberta, a animarem as comemorações do 25 de
Novembro, os mesmo que foram objecto das benesses do fascismo, e que são hoje,
no Governo e fora dele, os protagonistas da defesa dos interesses do grande
capital.
A tentativa de
apagar da memória do povo o 25 de Abril e substituí-lo pelo 25 de Novembro está
bem patente nas afirmações do ministro da Defesa Nuno Melo, o homem forte das
comemorações, as quais foi decidido alongar o período das comemorações por mais
cinco meses, até Maio de 2026, para assegurar «que outras datas e
acontecimentos só possíveis porque houve o 25 de Novembro venham a ser
consideradas, como sejam a aprovação da Constituição da República e as eleições
legislativas que deram lugar à primeira legislatura em 25 de Abril de 1976».
Afirmações confirmadas na Resolução do próprio Governo.
Uma subtil mas
pura mentira, considerando que as primeiras eleições legislativas decorrem da
Assembleia Constituinte, realizadas em Abril de 1975, em pleno período
revolucionário, e foram fruto da Revolução de Abril. Eleições que a
contra-revolução quis adiar para impor uma solução referendária
anti-democrática, à laia da Constituição de 1933, elaborada a partir de cima e
sem a participação dos eleitos pelo povo. O objectivo em prolongar até Abril as
reaccionárias comemorações para assinalar as eleições de 1976 anunciadas como
as primeiras, é claro: identificar o processo revolucionário como um período
ditatorial. Exemplo de que o 25 de Novembro não pôs fim ao processo iniciado em
25 de Abril, como pretendiam as forças reaccionárias, foi a aprovação e a entrada
em vigor da Constituição da República, traduzindo, não apenas, o resultado dos
trabalhos da Assembleia Constituinte, mas o resultado da luta do povo português
e das forças revolucionárias.
Daí que a
Constituição da República ainda hoje, apesar de amputada por sucessivas
revisões constitucionais promovidas pelo PS e PSD, continue a manter conteúdos
profundamente progressistas, e por isso a ser o alvo preferencial da direita de
todos os matizes. Os partidos de direita perseguem o objectivo de rever a
Constituição da República, procurando retirar princípios e valores que esta
encerra e atentar contra os direitos nela inscritos, com o supremo objectivo de
consumar a reconfiguração do Estado ao serviço dos interesses do grande capital
nacional e estrangeiro.
O «verão
quente» de 1975, que antecedeu o 25 de Novembro, foi um período caracterizado
por uma profunda crise político-militar, com graves repercussões no plano
económico e social e que, no essencial, resultou da ruptura no campo
democrático, com os dirigentes socialistas a assumirem uma posição de reserva e
oposição à evolução do processo revolucionário e a liderarem um processo de
divisão, quer do movimento democrático quer do movimento popular e sindical em
que a acção provocatória do 1.º de Maio de 1975 é momento marcante. Mas também
pela cisão no MFA, entre o Grupo dos Nove e a Esquerda
militar, que conduziria à desagregação e paralisação das estruturas
superiores do Movimento das Forças Armadas (MFA). Um objectivo há muito
perseguido pelas forças de direita e da social-democracia, do Grupo dos
Nove, mas também de sectores esquerdistas agrupados em torno de Otelo
Saraiva de Carvalho, ao mesmo tempo que a Esquerda militar perdia
posições importantes nos centros de decisão político-militar.
Uma situação
que permitiu que se desenvolvesse um conjunto de acções contra-revolucionárias
na tentativa de inverter o curso da Revolução de Abril, nomeadamente recorrendo
ao terrorismo, de forma organizada, procurando semear a intranquilidade e o
pânico, isolar as forças de esquerda, desestabilizar a situação política e pôr
em causa a própria democracia. Uma acção terrorista que atingiu sobretudo o PCP
e os sindicatos, e de que é impossível desligar, como pretendem alguns, as
acções e iniciativas políticas que caracterizaram o chamado «verão quente» de
1975.
O balanço
destas acções é público e conhecido. Em Julho tiveram lugar 86 actos
terroristas, dos quais 33 assaltos, pilhagens e incêndios de Centros de
Trabalho do PCP e outras 23 tentativas repelidas. Acções acompanhadas do
lançamento de bombas, fogos postos e agressões. Em Agosto, mais de 153 acções,
das quais 82 assaltos e destruições de Centros de Trabalho (55 do PCP e 25 do
MDP/CDE), 39 incêndios, 15 bombas, 23 agressões.
Neste quadro, o
25 de Novembro de 1975 foi o corolário de um longo período de instabilidade, em
que o agravamento da crise político-militar e a ofensiva contra-revolucionária
decorrem em paralelo, nomeadamente com a queda do V Governo Provisório e o afastamento
do general Vasco Gonçalves, também das estruturas superiores das Forças Armadas
e do MFA. O afastamento de Vasco Gonçalves era um objectivo há muito
perseguido, como nos retrata António Avelãs Nunes no seu livro O
Novembro que Abril não merecia: «A pedido do grupo de Melo Antunes,
Carlucci pressionava Costa Gomes no sentido de demitir o V Governo Provisório,
substituindo o Primeiro-Ministro e afastando os comunistas do novo Governo, e
instava os embaixadores da França, RU, e RFA para que também eles pressionassem
Costa Gomes (“temos agora de nos interrogar de que lado está Costa Gomes ou, em
qualquer caso, se ainda vale a pena preservá-lo”)».
Este longo
processo que antecedeu o 25 de Novembro foi também marcado por várias
tentativas e acções contra-revolucionárias, em que se destacam o golpe Palma
Carlos, o 28 de Setembro e o 11 de Março, através das quais os seus autores e
cúmplices as procuraram sempre justificar como sendo respostas a tentativas ou
golpes do PCP. O 25 de Novembro não foi excepção.
Das várias
provocações montadas neste período com o objectivo de responsabilizar os
comunistas e o movimento operário e contra eles atear a ira popular, o assalto
à Embaixada de Espanha é profundamente ilustrativo, enquanto o terrorismo
bombista ganhava também um lugar de destaque, com a activa participação de
militares e políticos, bem como de organizações como o MDLP-Movimento
Democrático de Libertação de Portugal, inspirado e chefiado por Spínola, e o
ELP-Exército de Libertação de Portugal, entre outras organizações terroristas e
contra-revolucionárias que actuavam a partir do estrangeiro, nomeadamente do
Brasil e de Espanha.
O 25 de
Novembro foi sustentado numa grande aliança contra-revolucionária, internamente
muito fragmentada e que contou com o importante contributo de Mário Soares,
principal promotor de uma vergonhosa campanha anti-comunista, realizada na base
da mentira e de processos de intenções irreais, do PS e do Grupo dos
Nove, onde participavam fascistas declarados e outros reaccionários
radicais, cujo objectivo era a instauração de uma nova ditadura, que tomasse
violentas medidas de repressão, nomeadamente, a ilegalização e destruição do
PCP.
A verdade é
que, após o golpe do 25 de Novembro, a rápida tomada de consciência dos
militares democratas dos riscos que a democracia corria, nomeadamente aqueles
que tendo combatido a Esquerda militar não se identificavam
com a direita reaccionária, conduziu à criação de uma nova linha de defesa da
democracia, designadamente no seio das Forças Armadas, e impediu que o 25 de
Novembro liquidasse a revolução portuguesa e as suas conquistas. Importa, a
propósito, relembrar o papel do esquerdismo e de forças como o
MRPP, a AOC ou o PCP(m-l) que se aliaram ao PSD e ao CDS, e acabaram por se
revelar agentes da direita e da extrema-direita, sem esquecer que destes
partidos emergiu um número infindável de figuras, de que Durão Barroso será o
expoente máximo pelos elevados cargos que exerceu no plano nacional e
internacional, mas que se estende por um número infinito de políticos,
jornalistas, «comentadores» e «analistas», que hoje se albergam no bloco
central de interesses e continuam, «coerentemente», anticomunistas e ferozes
defensores do grande capital, que havia sido derrotado no 25 de Abril e no 11
de Março.
O 25 de
Novembro, ao contrário do que muitos dos seus protagonistas disseram e
escreveram e alguns continuam a insinuar, não foi um golpe promovido pelo PCP,
pela Esquerda militar ou pela «ala gonçalvista» do MFA, mas
sim um golpe militar contra-revolucionário, fruto de uma cuidada e longa
preparação, no quadro de um tumultuoso processo de rearrumação de forças no
plano político e militar.
Álvaro Cunhal,
no livro A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A
contra-revolução confessa-se), explica que, «como a orientação e acção do
PCP e os acontecimentos provassem que não tinha havido nem golpe nem tentativa
de golpe do PCP, inventou-se a tese do "recuo" – a
história de que o PCP, vendo que o seu golpe militar, já desencadeado, iria
falhar, recuou e desistiu do golpe. Essa tese do "recuo do PCP" é
condimentada com uma insultuosa afirmação de Mário Soares: que o PCP teria
lançado o golpe, mas, vendo que ia ser derrotado, deixou no terreno os
esquerdistas "abandonados pelo PC" à sua sorte e à repressão (Maria
João Avillez, Soares. Ditadura e Revolução). Falsidade e calúnia
retomada por Freitas do Amaral (O Antigo Regime e a Revolução).
Explique-se.
Esta invencionice, como argumento, deturpa dois factos reais: Um,
as orientações dadas pela Direcção do PCP na noite de 24 para 25 a algumas das
suas organizações para não se deixarem arrastar em atitudes ou na participação
em aventuras esquerdistas de confronto militar (casos do Forte de Almada e do
RAL1). Outro, uma conversa telefónica na mesma noite de 24 para 25
entre o Presidente da República Costa Gomes e o secretário-geral do PCP, Álvaro
Cunhal, em que este, tendo tomado a iniciativa do contacto, nos termos
habituais da ligação institucional com a Presidência da República, comunicou ao
Presidente, desmentindo especulações em curso, que o PCP não estava envolvido
em qualquer iniciativa de confronto militar e insistia em apontar a necessidade
de uma solução política».
O PCP teve uma
acção incansável no sentido de evitar o confronto, expressa em intervenções do
seu secretário-geral, comunicados da sua Comissão Política e em variados
documentos incluindo no próprio jornal Avante!, apontando uma saída
política para a crise, propondo e concretizando encontros com todos os
sectores, do PS (que recusou) aos agrupamentos esquerdistas, da Esquerda
militar ao Grupo dos Nove e a militares esquerdistas
ligados ao COPCON, embora sem resultados práticos.
Uma proposta
que não obteve respostas, até porque o PS e os seus aliados tinham prosseguido
as encenações e provocações com o objectivo de atingir e responsabilizar o PCP:
primeiro, o caso do jornal República com os trabalhadores a
tomarem posição contra a direcção do jornal e a orientação política por este
seguida, tendo os dirigentes socialistas e os responsáveis do República, como
então afirmou o PCP, «elementos mais do que suficientes para saberem que é uma
calúnia tão torpe como absurda o atribuírem a responsabilidade da posição dos
trabalhadores do jornal ao PCP»; depois, as manifestações no Patriarcado,
resultado de algumas justas reivindicações profissionais do trabalhadores
da Rádio Renascença não terem encontrado, por parte da
hierarquia da Igreja, qualquer perspectiva de solução, com os comunistas a
condenarem «todos os actos e atitudes que representam uma ofensa aos
sentimentos religiosos do nosso povo». Na altura, o PCP sublinhou ainda «que
sempre tem defendido e continua a defender a liberdade religiosa» sem, contudo,
deixar de registar com preocupação uma nota pastoral dos Bispos, considerando-a
uma «clara intromissão negativa na actual situação política, o que só poderá
agudizar as dificuldades existentes».
Os
acontecimentos do 25 de Novembro, porventura, nunca teriam acontecido se os
golpistas liderados por Spínola não tivessem sido derrotados em 11 de Março,
uma derrota que originou a imediata tomada de decisões históricas como a
institucionalização do Movimento das Forças Armadas (MFA), a extinção da Junta
de Salvação Nacional e do Conselho de Estado, a criação do Conselho da
Revolução, a nacionalização da banca, dos seguros e de empresas como a TAP, a
CP, a CIDLA, a SACOR, e ainda o aumento do Salário Mínimo Nacional para quatro
mil escudos. A democracia portuguesa escolhe o rumo do socialismo.
Após a derrota
do golpe de 11 de Março, em «meados de Julho» de 1975, como nos relata o
insuspeito historiador José Freire Antunes (antigo deputado e dirigente do
PPD/PSD) no livro O segredo do 25 de Novembro, o então major
Ramalho Eanes, usando o nome de «João Silva», faz um contacto telefónico com o
tenente-coronel Tomé Pinto, que se encontrava na 2.ª repartição do Estado-Maior
do Exército. Era o pontapé de saída para a constituição do «Grupo Militar» que haveria
de promover o golpe do 25 de Novembro.
Curiosamente, o
mesmo Tomé Pinto, agora tenente-general na reforma, foi escolhido por
Nuno Melo para presidir à comissão das comemorações dos 50
anos do 25 de Novembro.
O golpe do 25
de Novembro significou a criação de uma nova situação política, uma viragem à
direita na vida nacional, mas os mais ambiciosos objectivos
contra-revolucionários foram derrotados. A força e a dinâmica do movimento
operário e popular e a intervenção esclarecida do PCP foram factores
determinantes para a contenção do golpe. Em lugar de reprimido e ilegalizado, o
PCP continuou no Governo e a reforçar a sua influência social e política. A
aprovação da Constituição e a sua entrada em vigor constituiu um factor de
primeiro plano para travar os planos golpistas. Será com a formação do primeiro
governo constitucional do PS sozinho, mas de facto aliado à direita, que se
virá a institucionalizar o processo contra-revolucionário.
Revolução de Abril, Edição Nº 399 - Nov/Dez 2025
https://omilitante.pcp.pt/pt/399/447/2218/Os-revanchistas-de-Novembro-de-1975.htm?
Mistificações em torno do 25 de Novembro
Aurélien -- Você não consegue chegar lá partindo daqui.
* Aurélien
Todas aquelas coisas chatas depois da derrota na Ucrânia.
Os
especialistas têm nos proporcionado muita diversão inocente ultimamente, e
gerado muita controvérsia interessante, ao opinarem sobre temas como possíveis
planos de paz para a Ucrânia, possíveis golpes de Estado em Kiev, supostas
tentativas ocidentais de substituir Zelensky, o impacto potencial de
investigações de corrupção, hipotéticos futuros destacamentos de forças
ocidentais na Ucrânia, e assim por diante. Tudo isso é (em sua maioria)
diversão inofensiva, e mantém os especialistas, que precisam de audiência e
dinheiro, mas não possuem qualquer conhecimento político ou militar, ocupados
de forma inócua. Contudo, grande parte disso permanece no nível de especulação
desenfreada.
Por outro lado,
há vários anos venho tentando incentivar as pessoas a analisarem questões
mais fundamentais
e de longo prazo sobre as adaptações que
o Ocidente terá de fazer em função de uma vitória russa e da preeminência
militar da Rússia na Europa. Hoje, quero abordar uma questão que, até
onde sei, sequer foi levantada, muito menos devidamente considerada. Se a
relação entre a Rússia e o Ocidente após a Ucrânia for tensa e conflituosa, e
se a possibilidade de um conflito aberto não for descartada, como podemos
sequer compreender o que isso poderá significar e como, se é que é possível,
podemos nos preparar para tal?
É claro que
alguns políticos e especialistas já acreditam ter a resposta. Assim, fantasias
de gastar 5% do PIB em defesa, planos mirabolantes para retomar o serviço
militar obrigatório (ou algo parecido), tentar reconstruir a capacidade de
produção militar, comprar mais deste ou daquele tipo de equipamento… certamente
a resposta está aí em algum lugar, não é? Mas não está. Como já enfatizei
repetidamente, nada disso faz sentido, e a maior parte é um desperdício de
dinheiro, até que se reflita bastante e se tenha uma ideia clara do que se
pretende alcançar. Caso contrário, é como ir a uma loja de jardinagem e voltar
com uma coleção aleatória de ferramentas e plantas sem a menor ideia do que
fazer com elas. Mas, para o Ocidente, é claro, o problema é ainda pior: imagine
trinta famílias de diferentes tamanhos e rendas tentando decidir os detalhes de
como, se é que é possível, recuperar um terreno baldio, e você terá uma vaga
ideia dos problemas envolvidos.
Neste ensaio,
abordarei três questões. Primeiro, como devemos entender essa conversa sobre
conflito e até mesmo “guerra” entre a Rússia e o “Ocidente”, e é sequer
possível discuti-la de forma sensata? Segundo, o que essa compreensão
implicaria em termos práticos? E terceiro, supondo que as duas primeiras
questões possam ser respondidas, o que seria realmente necessário caso se
decidisse dar uma resposta? É evidente que essas questões são interdependentes
e, em certa medida, se sobrepõem, mas tentarei, mesmo assim, abordá-las em uma
sequência lógica e, em particular, utilizarei exemplos históricos. Quero
enfatizar o quão impreciso é o conceito de “guerra” com a Rússia e como estamos
vivendo um momento de incerteza estratégica sem precedentes, mesmo que nossos
políticos e especialistas pareçam não perceber isso.
Para começar,
já nem sabemos o que é “guerra”. Tecnicamente, claro, não existem mais guerras,
exceto aquelas autorizadas pelo Conselho de Segurança. Em vez de “guerras”, que
eram situações legais declaratórias , temos “conflitos
armados”, que são situações objetivas definidas por níveis de
violência em certas áreas. (Não temos tempo para entrar nos porquês e nos
detalhes: basta dizer que essa simples mudança é evidentemente complexa demais
para a maioria dos políticos e especialistas compreenderem.) Mas os velhos hábitos
de pensamento persistem, e especialistas falam da Grã-Bretanha ou da França “em
guerra” com a Rússia, enquanto políticos dizem acreditar que uma “guerra” pode
“eclodir” na próxima década, mesmo que nenhum dos dois tenha muita ideia do que
isso significa.
Vamos tentar
dissipar um pouco a confusão dizendo que o que está sendo invocado aqui é a
ideia de que, em algum momento num futuro próximo, forças ocidentais e russas
poderiam entrar em confronto, levando a uma troca de tiros, possíveis baixas e
uma possível escalada para um conflito maior. Se isso corresponde ou não à
compreensão popular de "guerra" é irrelevante, principalmente porque
um simples choque entre aeronaves sobre o Mar do Norte seria suficiente, por si
só, para gerar uma crise diplomática no Ocidente, mesmo que a situação não se
deteriorasse ainda mais.
O problema é
que, essencialmente pela primeira vez na história, não temos ideia de como
seria um conflito sério com outro Estado (ou "guerra", se preferir)
na prática, nem como, ou mesmo por que, ele seria travado. Assim, a
"guerra" com a Rússia hoje é apenas uma espécie de conceito
existencial. Durante a maior parte da história da humanidade, não foi assim. No
século XVIII, na Europa, a guerra era uma questão de objetivos políticos,
batalhas planejadas, exércitos profissionais, campanhas eleitorais, tratados de
paz e ganhos e perdas. As consequências a longo prazo da Revolução Francesa e a
crescente sofisticação dos governos fizeram com que, no final do século XIX, a
guerra fosse vista como um empreendimento contínuo, com grandes exércitos de
recrutas, travada por objetivos importantes, geralmente territoriais. Antes de
1914, a guerra era vista principalmente como algo relacionado à
industrialização, à mobilização de forças muito grandes, ao transporte
ferroviário e a um conflito longo e sangrento. (É um mito que os exércitos
europeus em 1914 esperassem uma guerra curta, embora certamente desejassem que
fosse.) Antes de 1939, a guerra era concebida como algo que exigia toda a
capacidade de uma nação, envolvendo destruição massiva e o uso de novas
tecnologias, como aeronaves, além do potencial de exterminar a civilização
europeia. Além de divagarem sobre drones, poucos dos especialistas de hoje
parecem ter sequer a mais remota ideia de como um conflito futuro poderá ser, o
que talvez seja perdoável no momento, ou mesmo de terem pensado nisso de forma
organizada antes de escreverem algo, o que não é.
A questão aqui
não é que estudos, planos, exercícios etc. impliquem previsão. Essa é uma
suposição comum, mas está errada. O ponto é que você precisa ter algumas premissas
básicas sobre a natureza e a extensão de qualquer conflito em que possa se
envolver, ou simplesmente não conseguirá planejar nada. Essas premissas podem
ser parcial ou até mesmo totalmente invalidadas com o tempo, mas pelo menos
fornecem uma base para o trabalho e para que os militares elaborem planos. Não
faz sentido a liderança política pedir aos militares que "planejem para a
guerra" sem essas premissas mínimas: seria o mesmo que ir a uma seguradora
e pedir "uma apólice de seguro". Vejamos alguns exemplos.
O fator que
mudou tudo após a Primeira Guerra Mundial foi o bombardeiro tripulado, cuja
capacidade de "ultrapassar" fronteiras e até oceanos, lançando bombas
diretamente sobre cidades, aterrorizou tanto os governos quanto o público em
geral. Medidas de defesa passiva, na medida do possível, foram tomadas e, num
vislumbre precoce da teoria da dissuasão, discutiu-se a construção de
bombardeiros de longo alcance para desencorajar potenciais inimigos. Naquela
época, porém, não havia defesa contra tal ataque: o político britânico Stanley
Baldwin foi muito ridicularizado por sua declaração de 1932 de que "o
bombardeiro sempre conseguirá passar", mas ele não disse nada além da
verdade. Como Baldwin apontou, mesmo com caças em alerta máximo, quando estes
pudessem ser acionados e localizar seus alvos, os bombardeiros já estariam a
caminho de casa. Contudo, essa constatação forneceu uma orientação para a
futura política aérea britânica: desenvolvimento de caças de alta velocidade
capazes de se comunicar com o solo e entre si, desenvolvimento de radares para
alerta antecipado e formação de um sistema central de comando e controle para a
defesa aérea. Ao mesmo tempo, a frota de bombardeiros foi enormemente expandida
e novos tipos de aeronaves foram encomendados, na esperança de desferir um
golpe rápido e decisivo contra a Alemanha. É verdade que a realidade acabou
sendo um pouco diferente, como geralmente acontece, mas foi essencialmente essa
estrutura que permitiu aos britânicos vencer a Batalha da Grã-Bretanha e que significou
que eles começaram a guerra com um conjunto coerente de políticas e planos.
Em contraste, a
enorme guerra convencional e nuclear na Europa, temida entre as décadas de 1950
e 1980, nunca chegou a ser travada. Mas ambos os lados levaram a possibilidade
extremamente a sério, e por isso existiam planos e doutrinas coerentes para tal
guerra. Isso era particularmente verdadeiro para a União Soviética, para quem
essa seria a Grande Guerra: o conflito final, inconcebivelmente destrutivo,
lançado pelo Ocidente num esforço desesperado para frustrar o triunfo mundial
do comunismo e que definiria o futuro da humanidade. Esperava-se que a guerra
fosse total, incluindo o que na época era descrito timidamente como uma “troca
nuclear estratégica”, e que resultasse numa devastação pior do que a da Segunda
Guerra Mundial, da qual levaria décadas para se recuperar. Mas a prioridade
incondicional dada aos gastos militares, uma economia de guerra permanente e
uma preparação antecipada massiva levariam a União Soviética à vitória. Se
tiver interesse, você pode acompanhar essa
mentalidade apocalíptica em todos os níveis dos preparativos militares
soviéticos.
O Ocidente não
pensava nesses termos e, por razões políticas, não podia, mas isso não o
impediu de desenvolver doutrinas e estruturas que tentassem contrariar os
preparativos soviéticos. Presumia-se que a União Soviética seria a atacante (o
que, de fato, era sua doutrina) e que uma crise levaria semanas para se
desenvolver. Isso significava que as forças da OTAN poderiam ser otimizadas
para a defesa (portanto, tanques mais lentos e pesados, por exemplo) e que
forças relativamente pequenas em tempos de paz poderiam ser complementadas por
milhões de reservistas mobilizados, o que, incidentalmente, implicava um
serviço militar obrigatório ou algo semelhante. Por sua vez, e importante para
os dias de hoje, havia pouca necessidade de se preocupar com a logística da
projeção de forças para a frente de batalha. A OTAN também dava muita
importância ao poder aéreo, onde o considerava superior ao do Pacto de
Varsóvia.
Felizmente,
nunca saberemos como uma guerra desse tipo teria sido na prática, mas o fato de
cada lado ter um conceito bastante preciso, e de isso ter servido de base para
planos, estruturas de força, treinamento e exercícios, mostra o quão distantes
estamos, em comparação, de qualquer reflexão organizada sobre um hipotético
“conflito” futuro. Portanto, teremos que fazer isso por eles. Proponhamos que
analisemos uma gama de possibilidades, desde confrontos de pequena escala entre
forças russas e ocidentais, sem necessariamente causar baixas, até algum tipo
de engajamento direto por terra e ar no continente europeu para objetivos
limitados. Podemos supor conflitos de maior escala e abrangência, se quiserem,
mas a realidade é que eles estão agora, e provavelmente sempre estarão, além da
capacidade do Ocidente de conduzi-los. Nada do que se viu na evolução da
doutrina militar ocidental desde 2022, muito menos na prática militar, sugere
que o Ocidente sequer tenha começado a assimilar as lições do conflito na Ucrânia.
Antes de
prosseguirmos, preciso enfatizar que definir os cenários militares para o
planejamento é apenas parte da tarefa. A outra parte, muito mais difícil, é
elaborar algum tipo de doutrina política e procedimentos para lidar com o
surgimento de conflitos ou com a ameaça de um conflito. Fazer isso em nível
nacional não é fácil. Fazer isso em nível internacional pode ser uma agonia. A
única vez em que uma OTAN (bem menor) teve que enfrentar uma operação militar
séria foi no Kosovo, em 1999, e isso quase destruiu a aliança. Tentar lidar,
por exemplo, com uma exigência russa de que os navios da OTAN mantenham uma
certa distância de embarcações russas em exercício, sob a ameaça de serem
atacadas, provavelmente seria suficiente para paralisar o processo de tomada de
decisão em Bruxelas após apenas alguns minutos de discussão, sem uma solução
óbvia. Portanto, o primeiro objetivo, e um que eu acho que nunca alcançaremos,
será um conceito político-militar da OTAN acordado para lidar com provocações,
acidentes e escaladas com a Rússia.
Certo, mas
vamos supor que sim. Que tipos de planos devemos orientar os militares a
elaborar, para quais tipos de contingências? Aqui estão alguns exemplos e, mais
uma vez, não os apresento como profecias. Em vez disso, são exemplos genéricos
dos tipos de suposições necessárias para que toda essa conversa sobre
"preparação para a guerra" se concretize de fato.
A primeira, que
considero bastante realista, é o policiamento das fronteiras aéreas e
marítimas. Uma grande potência militar, como a Rússia é atualmente, possui, em
virtude desse status, uma capacidade de intimidação contra nações mais fracas,
como as da Europa, ou os Estados Unidos, enquanto potência europeia. Essa
capacidade é existencial, independentemente de ser usada deliberadamente ou
não. Mas eu esperaria que os russos, tanto por princípios gerais quanto por
razões específicas, sondassem as fronteiras aéreas e marítimas ocidentais,
buscando interromper exercícios da OTAN, perturbar o tráfego marítimo e aéreo e
assim por diante. Se os russos estivessem pressionando, ao mesmo tempo, por
algum tipo de Tratado de Segurança Europeu que os favorecesse fortemente, então
esse tipo de comportamento seria bastante lógico e razoável. Algum tipo de
política da OTAN para responder a tais situações será necessária, e duvido que
seja fácil de elaborar. Mas chegaremos às consequências práticas mais adiante.
Em seguida, há
os cenários de fronteira terrestre, que poderiam envolver conflito direto entre
as forças russas e da OTAN através de fronteiras internacionais. Na prática,
esses cenários se limitam aos Estados Bálticos e à Finlândia, que,
convenientemente, concedeu à OTAN uma extensa fronteira com a Rússia, que esta
não consegue defender. Não precisamos nos preocupar, por ora, com a forma como
tal crise poderia surgir, até porque a história sugere que essas tentativas
costumam ser fúteis. Vale apenas ressaltar, talvez, que outro conflito na
Geórgia também poderia provocar exigências, por parte de pessoas ignorantes e
belicosas, pela intervenção da OTAN, e isso teria que ser levado em
consideração, ao menos em teoria.
Por fim,
haveria um conflito deliberado em larga escala entre a Rússia e a OTAN, por
algum motivo que nem vamos abordar aqui. Na prática, isso teria que ser
iniciado pela Rússia, porque a OTAN não tem forças nem capacidade logística
para lançar um ataque por conta própria, mesmo que tivesse coesão política,
como veremos adiante. Isso envolveria forças russas transitando pela
Bielorrússia e Ucrânia e invadindo, provavelmente, a Polônia, a Hungria, a
Eslováquia e a Romênia, antes de, possivelmente, ir além.
Neste ponto,
quero abordar aspectos tediosos, porém essenciais para a compreensão, como
mapas, distâncias, estradas e rotas de transporte aéreo e marítimo. O primeiro
ponto a ressaltar é que não estamos falando da Guerra Fria. Naquela época,
forças maciças eram mobilizadas, efetivamente frente a frente. Só a Bundeswehr
(Forças Armadas Alemãs) podia mobilizar doze divisões em 48 horas (e em seu
próprio território, é claro), além de unidades de defesa territorial. Belgas,
holandeses e franceses já tinham forças posicionadas. Reforços (principalmente
pessoal e unidades leves) chegariam por terra e trem para a batalha
apocalíptica no que hoje é o centro da Alemanha. Os britânicos, com tropas
ainda mais distantes, teriam transportado cerca de 40.000 soldados para
reforçar suas quatro divisões, mas, novamente, a maior parte dos reforços era
composta por pessoal ou unidades leves, e eles estavam a apenas algumas horas
de Antuérpia. Praticamente nenhuma infraestrutura para isso existe hoje.
As forças do
Pacto de Varsóvia também não tinham um longo caminho a percorrer. O Grupo de
Forças Soviéticas na Alemanha, com cerca de 350.000 homens e mantido em alerta
máximo permanente, deveria ser aniquilado nos primeiros dias de combate, por
isso levaram consigo toda a sua logística. Esperava-se, então, que o segundo e
o terceiro escalões conseguissem avançar até o Canal da Mancha, praticamente
sem resistência. Em contraste, um ataque russo hoje contra a Polônia, através
da Ucrânia ou da Bielorrússia, mesmo partindo de um ponto como Kharkiv, teria
que avançar mil quilômetros apenas para chegar à fronteira polonesa. Isso
talvez coloque em perspectiva as sugestões sobre uma "ameaça" russa à
França ou ao Reino Unido.
Manteremos essa
possibilidade em mente como teórica, sobretudo porque se trata de um caso
extremo do que será um tema recorrente no restante deste ensaio: as distâncias,
o terreno, a disponibilidade de forças, os problemas de reabastecimento
logístico seriam uma ordem de grandeza mais graves do que qualquer operação
militar já enfrentada, e os recursos disponíveis, mesmo no caso russo, são
drasticamente menores do que em tempos recentes.
A realidade é
que um conflito armado de grande escala entre a Rússia e o
Ocidente seria travado predominantemente com mísseis e drones, e seria
extremamente unilateral. Os russos não têm capacidade, se é que alguma vez
tiveram, para invadir a Europa Ocidental com forças terrestres convencionais:
aliás, eu argumentei, e continuo a acreditar, que mesmo a ocupação total da
Ucrânia seria uma meta ambiciosa demais. Mas os mísseis e drones russos atuais,
quanto mais os de um futuro próximo, poderiam atingir alvos ocidentais por
terra, mar e ar: o Pentágono, o Palácio do Eliseu, o número 10 de Downing
Street, todos seriam vulneráveis, e mesmo cobrir a superfície dos países
ocidentais com baterias Patriot (se é que algum dia poderiam ser implantadas em
tal número) não seria suficiente para detê-los. E basta olhar um mapa para
perceber por que, mesmo que o Ocidente desenvolvesse mísseis semelhantes, suas
aeronaves não conseguiriam se aproximar o suficiente para lançá-los. A
geografia é implacável. Mas isso não é nenhuma novidade. Numa das partes menos
estudadas do Livro 1 de Da Guerra , Clausewitz insistiu no
“país” como um “elemento integrante” do conflito, e na importância de
fortalezas, rios e montanhas para absorver forças que, de outra forma, estariam
disponíveis para o combate: algo sobre o qual aqueles que reclamam da “lentidão”
dos russos na Ucrânia fariam bem em refletir.
Para manter as
coisas em proporções administráveis, vamos considerar o caso do destacamento de
forças da OTAN em algum tipo de função “dissuasora” ou “preventiva”, no caso de
um confronto que pudesse levar a combates reais. Os cenários mais óbvios incluiriam
um conflito envolvendo os Estados Bálticos, a Finlândia ou ambos, e uma crise
no Mar Negro com o possível risco de confronto naval e operações anfíbias
contra a Bulgária e a Romênia. (Poderíamos incluir a Geórgia também para tornar
as coisas um pouco mais interessantes.)
Então, o que é
um papel “dissuasor” ou “preventivo” em tais situações? Como o próprio nome
sugere, trata-se de uma atividade destinada a impedir que algo aconteça ou, no
mínimo, a evitar que uma situação piore. Mas como fazer isso? Bem, existem dois
elementos fundamentais. Primeiro, é preciso ser capaz de agir rapidamente;
segundo, é preciso ter um plano de escalonamento visível para o caso de a
dissuasão falhar. Caso contrário, a postura não será credível. Durante a Guerra
Fria, e por um tempo depois, existiu uma unidade da OTAN chamada Força Móvel
Terrestre do Comando Aliado da Europa. Era uma pequena unidade multinacional de
alta prontidão, destinada a ser mobilizada rapidamente para os flancos da OTAN.
Por razões políticas, praticamente todos os membros da OTAN designaram um
contingente, mesmo que pequeno. Ela foi mobilizada muitas vezes em exercícios
ao longo dos anos e provavelmente poderia ter sido mobilizada em uma crise
real, desde que houvesse um acordo político. No entanto, ela tinha duas características
importantes. Primeiro, seu componente terrestre era uma brigada leve de cerca
de 5.000 homens. Seu potencial militar era, portanto, muito limitado, e seu
objetivo principal era servir como um sinal político. No entanto, por trás da
AMF(L) havia uma máquina militar muito maior, capaz de ser mobilizada com
relativa rapidez. Assim, a mobilização da AMF(L) visava ser um aviso político:
estamos prontos para lutar, se necessário, e a cavalaria não está longe.
É evidente que
tal lógica não é possível hoje. De tempos em tempos, falava-se sobre o envio de
forças “dissuasoras” europeias para partes da Ucrânia, e comentaristas
entusiasmados frequentemente afirmavam que isso iria acontecer. Claro que não
aconteceu, porque havia uma falha fundamental: se os russos não se intimidassem
com a mera presença das forças europeias e simplesmente as ignorassem, quanto
mais as atacassem, não haveria mais nada que o Ocidente pudesse fazer. Nessa
situação, os russos teriam o que se chama de “domínio da escalada”, ou seja,
poderiam passar a níveis progressivamente mais altos de violência, e o Ocidente
não. Na prática, a própria força dissuasora proposta foi dissuadida de ser
enviada. Podemos esperar uma história mais ou menos semelhante nos flancos da
OTAN. Se quiserem, os russos sempre podem superar qualquer contingente da OTAN
sem o menor esforço. A única esperança que tal envio teria é que os russos não
desejassem um confronto armado com a OTAN por razões políticas mais amplas. Isso
pode ser verdade, mas seria imprudente contar com isso, e, claro, depende de
quão seriamente os próprios russos encaram a situação. Da mesma forma, nada
impediria os russos de ameaçarem simplesmente aniquilar a força com mísseis e
drones, a menos que ela fosse retirada, ou mesmo de ameaçarem destruí-la em seu
caminho para a posição. Como essa é uma ameaça que eles de fato poderiam cumprir,
configura uma postura de dissuasão.
O que nos leva
à última parte deste ensaio. Suponhamos que, mesmo assim, se inicie o
planejamento de uma operação desse tipo em algum ponto nos flancos da OTAN. O
que ela envolveria e seria sequer possível? Minha argumentação é que as
respostas são (1) mais do que você provavelmente pode imaginar e (2) não. Mas
vamos detalhar um pouco mais.
Durante a
Guerra Fria, as forças permanentes eram bastante numerosas: só o Exército
Alemão contava com cerca de 350.000 homens em tempos de paz, e o francês um
pouco mais, mesmo sem considerar os reservistas que podiam ser mobilizados
rapidamente. Isso significava que grandes contingentes podiam ser destacados
perto das fronteiras ou na própria Alemanha. As unidades permaneciam em seus
postos por longos períodos (eu conhecia alguns oficiais britânicos que passaram
quase toda a sua carreira operacional na Alemanha), desenvolviam sua própria
infraestrutura e conheciam muito bem a área onde iriam lutar. Nem a OTAN nem o
Pacto de Varsóvia precisariam "projetar" as forças para um futuro
conflito: as mais importantes já estavam lá. A estrutura logística estava
estabelecida, os sistemas de transporte eram altamente desenvolvidos e, em
muitos casos, ambos os lados simplesmente haviam assumido o controle das
instalações da antiga Wehrmacht.
Agora, se
considerarmos um dos exemplos acima, o Exército finlandês normalmente se
preocupa com o treinamento em tempos de paz (cerca de 20.000 recrutas por ano).
Pelo menos no momento, não possui forças permanentes e profissionais que possam
ser estacionadas em sua fronteira com a Rússia — que por si só tem mais de
1.300 quilômetros de extensão — e, portanto, depende da mobilização para
qualquer resistência útil. Acontece que, durante a Guerra Fria, a fronteira
entre a Alemanha Oriental e Ocidental tinha praticamente a mesma extensão: em
tempos de paz, cerca de um milhão de soldados da OTAN estavam posicionados
atrás dela.
Claramente, não
se pode forçar muito a analogia. O terreno é, para dizer o mínimo, diferente da
Alemanha, como o Exército Vermelho descobriu em 1939/40, assim como o clima
(Clausewitz novamente). E o único objetivo plausível para os russos seria
Helsinque, no extremo sul do país. Acima de tudo, o Exército Russo de hoje é
uma fração do que era em 1939, quando mobilizou um milhão de homens apenas para
essa operação. Por outro lado, se a OTAN quisesse "dissuadir" ou
"demonstrar determinação" ao longo daquela que é hoje sua fronteira
mais extensa com a Rússia, de longe, não teria muitas opções. Se as forças
pudessem ser encontradas de alguma forma (veja o próximo parágrafo), uma
presença permanente da OTAN no país, mesmo no sul, seria um empreendimento
logístico fabulosamente caro e difícil, que exigiria talvez uma década de
planejamento e construção e, provavelmente, na prática, se resumiria a uma
presença apenas nos arredores de Helsinque, com incursões ocasionais fora dessa
região.
Mas será que as
forças necessárias seriam encontradas, de qualquer forma? Se quisermos uma
força apenas simbólica — um batalhão multinacional, por exemplo — então a
resposta provavelmente é “sim”. Mas seria um gesto puramente simbólico,
sem qualquer significado militar e, como vimos, sem valor dissuasor. (Isso não
significa que não vá acontecer, é claro.) Mas as chances de se mobilizar uma
força internacional permanente de tamanho útil são remotas. Os exércitos são
pequenos hoje em dia em comparação com a Guerra Fria, e há poucos indícios de
que se tornarão significativamente maiores. Uma coisa é ter forças belgas
mobilizadas na Alemanha durante a Guerra Fria, a poucas horas de casa. Outra é
ter unidades de infantaria mobilizadas por alguns meses no Iraque ou no
Afeganistão em condições de campo. Mas ter uma fração importante do seu
Exército permanentemente mobilizada a milhares de quilômetros de casa em tempos
de paz provavelmente está além da capacidade de qualquer Estado europeu hoje em
dia, mesmo que fosse politicamente aceitável. Além disso, por que a Finlândia?
Não deveríamos fazer o mesmo pelos Estados Bálticos, pela Polônia, pela Romênia
e outros também, ou até mesmo em vez deles? As discussões, principalmente sobre
financiamento, poderiam se estender por anos. (E acredite, isso é apenas a
ponta do iceberg dos problemas.)
Como eles não
vêm até nós, e como não podemos chegar até eles, a única maneira pela qual as
forças ocidentais (incluindo as dos EUA) poderiam se encontrar "em
guerra" com a Rússia seria se fossem mobilizadas em uma crise. Há, como
você pode imaginar, alguns problemas com essa ideia. O tempo é o primeiro. Para
reiterar, mesmo durante a Guerra Fria, um ataque de curto prazo não era
considerado muito provável. Havia toda uma indústria de Indicadores de Alerta
que as agências de inteligência de ambos os lados monitoravam, e presumia-se
que a guerra se seguiria a um período de tensão política que poderia durar
semanas. Assim, os exercícios militares da OTAN (e imagina-se que exercícios
semelhantes em Moscou) incluíam uma análise minuciosa sobre quando a crise seria
suficientemente grave para mobilizar e deslocar forças. Mas, repetindo
novamente, as distâncias e os requisitos de transporte, e, portanto, os prazos
naquela época, simplesmente não eram comparáveis à situação atual. Além
disso, as unidades eram mobilizadas para áreas que conheciam, juntavam-se a
outras unidades já presentes, e os meios de transporte necessários para as
distâncias relativamente curtas envolvidas existiam naquela época. Não existem
mais.
Vamos nos deter
nesse último pensamento. Afinal, embora não haja um aumento exorbitante nos
gastos com defesa, nem uma expansão maciça das forças armadas, diversos
governos planejam adquirir novos equipamentos ou mais dos mesmos, e é provável
que haja um aumento modesto no tamanho e na capacidade das forças ocidentais,
teoricamente para enfrentar a “ameaça” russa e enfrentá-la em operações
militares. Mas a questão é se isso realmente faz algum sentido, e o argumento
até agora sugere que não. Tais forças são pequenas demais e fracas demais para
terem qualquer valor dissuasor, e seriam rapidamente aniquiladas em qualquer
combate. Mas tudo bem, digamos que, por ser necessário “fazer alguma coisa”, a
OTAN estabeleça algum tipo de força de intervenção pronta para se deslocar
rapidamente para o local de um possível confronto e fornecer, pelo menos, uma
resposta política e uma presença militar simbólica.
Ou talvez não.
Lembre-se de que, durante a Guerra Fria, a orientação da OTAN era defensiva.
Presumia-se que as forças da OTAN recuariam para suas próprias linhas de
logística, utilizando boas estradas e rotas conhecidas. Embora houvesse a
esperança de contra-atacar e, em última instância, expulsar o Exército Vermelho
do território da OTAN, não havia intenção, e de qualquer forma não havia
capacidade, para ir além. Assim, a logística foi relativamente negligenciada, e
pouca atenção foi dada ao deslocamento, e nenhuma à projeção de força.
Simplesmente não era necessário planejar a projeção de forças a centenas de
quilômetros de distância, portanto, as capacidades, habilidades, equipamentos e
pessoal para tal nunca foram desenvolvidos. Nos últimos trinta anos, houve
apenas um esforço sério de projeção de força à distância, e esse foi o Iraque
2.0. Nesse caso, o deslocamento foi feito por mar, e as forças invasoras
tiveram todo o tempo que desejaram e o controle total das rotas aéreas e de
transporte. Mas a capacidade para tal operação não existe mais, mesmo que fosse
relevante neste caso.
Assim, enviar
mesmo uma força simbólica, motivada por razões políticas — digamos, duas
brigadas mecanizadas e um quartel-general, com 10 a 12 mil militares — para as
fronteiras da OTAN exigiria uma projeção de força a uma distância nunca antes
tentada na história militar, num momento em que a capacidade ocidental de
movimentar tropas pesadas nunca foi tão limitada. E teria de ser feito
rapidamente. Isso cria uma série de problemas, porque uma força multinacional
teria de ser mantida em um estado permanente de prontidão elevada, totalmente
treinada, totalmente equipada, totalmente exercitada e pronta para ser
mobilizada. (Em comparação, vários exércitos europeus orgulham-se de ter
um batalhão com esse nível de prontidão.) Mesmo assim, os
desafios logísticos de projetar forças a essa distância são enormes. Um tanque
moderno pesa cerca de 60 toneladas e só pode ser transportado por ferrovia ou,
longe das linhas férreas, por um transportador de tanques de 30 toneladas. Mas
os transportadores de tanques são usados hoje em dia apenas para
movimentações rotineiras e não há o suficiente deles na Europa para garantir
qualquer mobilidade estratégica real. Muitas pontes rodoviárias e ferroviárias
na Europa não suportam cargas desse porte. Essencialmente, o mesmo se aplica à
maioria dos outros tipos de unidades. Talvez, ao longo de algumas semanas ou um
mês, uma única brigada consiga chegar, um tanto desgastada pela viagem, a tempo
do fim da crise.
A OTAN realizou
exercícios concebidos para, pelo menos, ensaiar essa capacidade, e os
resultados não foram nada animadores. Fomos informados de que o Exercício
DACIAN FALL, realizado recentemente, "envolveu" o envio de uma
brigada multinacional de 5.000 homens para a Romênia, dos quais 3.000 eram
franceses. Mas é quase impossível ter certeza até mesmo dos fatos básicos. Algo
entre 500 e 800 soldados franceses já estavam posicionados, e alguns dos
"envolvidos" nunca chegaram a sair da França. A maioria das estimativas
aponta para um número de tropas efetivamente enviadas de, no máximo, 2.000, e
mesmo assim, levaram semanas para chegar. Provavelmente, este é o melhor
resultado que se pode esperar.
Mas certamente,
você deve estar pensando, isso não aconteceu na Segunda Guerra Mundial? Os
alemães não conquistaram grandes extensões de território russo em questão de
semanas, e ainda por cima enfrentando resistência? Se eles conseguiram
mobilizar milhões de homens dessa forma, por que nós não conseguiríamos
mobilizar alguns milhares? Bem, por muito tempo, nossa compreensão desse
episódio — na ausência de fontes soviéticas confiáveis, diga-se de passagem —
veio das memórias tendenciosas de generais alemães, segundo os quais os
vitoriosos tanques Panzer teriam aberto caminho até Moscou não fosse a
intervenção das chuvas de outono e do frio do inverno, nenhum dos quais poderia
ter sido previsto. Mas com a abertura dos arquivos soviéticos e com as
pesquisas de uma nova geração de historiadores militares — notadamente David Stahel — fica
claro que a invasão estava fadada ao fracasso desde o início, e por razões
muito semelhantes às discutidas acima. O Alto Comando Alemão não fez nenhuma
tentativa séria de avaliar a capacidade do Exército Vermelho e simplesmente
presumiu que, após algumas grandes vitórias alemãs, ele se desintegraria, o
regime em Moscou cairia e toda a campanha terminaria em seis ou oito semanas.
(Isso pode lhe lembrar algo.) A logística foi simplesmente ignorada, pois a
campanha terminaria antes que os problemas logísticos surgissem, ainda mais
porque Stalin havia anexado metade da Polônia em 1939 e, portanto, os dois
exércitos estavam frente a frente. O consenso atual é que, uma vez que essa
fantasia de vitória rápida não se concretizou, a campanha estava basicamente
perdida.
De fato,
pode-se argumentar que os alemães só chegaram tão longe devido a erros
catastróficos do lado soviético. Grande parte da culpa foi de Stalin: por
vender aos alemães o combustível usado na invasão, pela destruição do corpo de
oficiais do Exército Vermelho, por ignorar os avisos de ataque até o último
segundo e, principalmente, por insistir que o Exército Vermelho fosse
posicionado perto da fronteira para contra-atacar rapidamente, o que
significava que, uma vez que os alemães cruzassem a linha de frente, o Exército
Vermelho não tinha muita reserva. Mas, por outro lado, o Exército Vermelho
conseguiu operar com sucesso na lama e em temperaturas abaixo de zero porque
estava treinado e equipado para isso, e parece ter compreendido o que
Clausewitz disse sobre a importância da "pátria", usando isso a seu
favor.
O que é mais do
que a nossa geração atual de especialistas (incluindo especialistas militares,
infelizmente) parece ser capaz de compreender. A distância não pode ser
simplesmente ignorada. É preciso combustível para mover qualquer coisa,
inclusive o veículo que a move. Uma brigada blindada pode ter até 250 veículos
de combate, e outros tantos em funções de apoio, e você não pode enviar tudo
isso como anexo de um e-mail ou como um pacote da Amazon. Veículos e
equipamentos exigem manutenção em instalações sofisticadas. Uma brigada
blindada consome talvez de quinze a vinte toneladas métricas de alimentos por
dia. E assim por diante.
Em outras
palavras, a “guerra” que políticos e especialistas parecem antecipar com
entusiasmo não acontecerá, porque não pode acontecer. Há uma série de coisas
que poderiam ocorrer, desde confrontos aéreos e navais de
pequena escala até ataques russos massivos e paralisantes contra um ou mais
países ocidentais, passando por movimentações políticas de pequena escala nas
fronteiras. Mas nada muito além disso. A ideia de batalhas blindadas massivas
nos Estados Bálticos é uma fantasia, e esperemos que nenhum governo ocidental
jamais a leve a sério. Há questões mais importantes e fundamentais com que nos
preocuparmos neste momento.
26 de novembro de 2025
https://aurelien2022.substack.com/p/you-cant-get-there-from-here?
Portugal, 1975: seis livros para compreender o 25 de Novembro
Manuel Moura/Lusa
A situação como estava não podia continuar: essa
é a certeza que uma série de livros recentes confirma. O que, 50 anos depois,
sabemos sobre o 25 de Novembro?
- Facebook
06 novembro 2025 20:59
Jornalista
Só nas semanas imediatamente anteriores ao 25 de Novembro, tinha havido um
cerco à Assembleia Constituinte, ataques (alguns à bomba) a sedes (“centros de
trabalho”) do PCP pelo país fora, greves e manifestações mais ou menos diárias,
a entrada em greve do próprio Governo, dissensões marcadas e públicas dentro das
Forças Armadas, rumores insistentes de golpes de várias tendências...
DO 25 DE ABRIL DE 1974 AO 25 DE NOVEMBRO DE 1975:
EPISÓDIOS MENOS CONHECIDOS
Irene Flunser Pimentel
Temas e Debates, 2024, 472 págs., €20,90
Enquanto isso, a economia portuguesa era atingida não só pelas greves e
outras movimentações que levaram importantes empresas, estrangeiras e não só, a
deixar o país, como por uma conjuntura internacional grave em consequência do
boicote petrolífero decretado em 1973 pelos países árabes. Tudo parecia jogar
contra as promessas de uma melhoria de vida enunciadas no programa do MFA (um
dos três ‘D’ do programa era desenvolver, a par com descolonizar e
democratizar).
Se a promessa inicial de liberdade após meio século de ditadura fora
saudada por grande parte da população portuguesa, a divergências que se foram
acentuando ao longo do ano e meio seguinte, não apenas entre esquerda e direita
como dentro da esquerda — onde havia socialistas, gente do PCP, otelistas e
grupos sortidos de extrema-esquerda, alguns com um grau de influência real que
hoje parece insólito — tinham provocado já várias situações de enfrentamento
potencialmente perigosas. No imediato, a ameaça viera da direita. Logo nos
primeiros meses da Revolução, o então presidente da República, o general
António de Spínola, que não participara no 25 de Abril nem integrava o MFA mas
foi por este escolhido como figura política superior, tentara uma manobra para
impor eleições presidenciais diretas em poucos meses, ao arrepio do que estava
previsto. Falhado esse golpe palaciano — onde estava em causa não só uma
ambição de poder do general como as suas ideias sobre o que deveria acontecer
ao império colonial português — foi tentado um outro a 28 de setembro, com a
projetada manifestação da “maioria silenciosa”, conceito importado da América.
A manifestação acabou por ser impedida, mas a 11 de março do ano seguinte veio
um golpe mais real, com aviões militares a sobrevoar Lisboa e a atacar um
regimento, provocando um morto e dezena e meia de feridos. Também esse golpe
falhou, e deu pretexto para a instituição política formal do MFA num órgão
chamado Conselho da Revolução.
OTELO, O HERÉTICO: DO 25 DE ABRIL ÀS FP 25
Carlos de Matos Gomes
Tinta-da-china, 2025, 224 págs., €17,90
Outra consequência foi desencadear uma onda de nacionalizações e o chamado
Verão Quente, durante o qual a influência do partido comunista, exercida
através de figuras como o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, atingiu o seu
auge, antes de começar a regredir sob o efeito da resistência de parte
substancial do país, sobretudo no centro e norte, bem como da resistência
política civil dirigida por figuras como Mário Soares, e da própria resistência
da instituição militar, com as fações moderadas dentro do MFA a ganharem
progressivamente ascendente a partir de meados de agosto.
Conforme revela Rodrigo Sousa e Castro, um capitão de Abril que também
participou no 25 de Novembro — o seu importante livro de memórias intitula-se
justamente “Capitão de Abril, Capitão de Novembro” — aquilo que se designa por
25 de Novembro não foi um evento único, mas um processo. Teve início formal com
a aprovação do Documento dos Nove (assim chamado por ter origem num grupo de
nove militares no Conselho da Revolução) a 7 de agosto, prosseguiu
decisivamente com o pronunciamento de Tancos em setembro, quando houve uma
recomposição do Conselho da Revolução e foi recusada a nomeação do
primeiro-ministro demissionário Vasco Gonçalves para chefe do Estado-Maior do
Exército. A conclusão a 25 de Novembro, com o movimento militar a que ficou
associada a figura de António Ramalho Eanes, o futuro primeiro Presidente
livremente eleito do país, não foi mais do que a conclusão desse processo, o
qual por sua vez deu por terminado o chamado PREC (Processo Revolucionário em
Curso), embora não a supervisão da política pelos militares, a qual se
prolongaria até à primeira revisão constitucional, em 1982, que extinguiu o
Conselho da Revolução.
António Ramalho Eanes (à dir.), na altura
tenente-coronel, explica aos capitães Vasco Lourenço (à esq.) e Marques Júnior
(de pé) a operação que dirigiu a partir do quartel-general da Amadora
Rui Ochoa
Os pontos de interrogação
Dos livros que agora surgem no 50º aniversário do 25 de Novembro, cobrindo
o 25 de Abril e o PREC até ao golpe, é justo dizer que nenhum tem a envergadura
histórica do de Sousa e Castro (ou, lá por isso, daquele que Otelo Saraiva de
Carvalho escreveu sobre o golpe que dirigiu em 1974, “Alvorada em Abril”).
Editado na Guerra e Paz, “Capitão de Abril, Capitão de Novembro” merecia bem
uma reedição, talvez revista. Enquanto isso não acontece, surgem obras de tipo
diverso, desde sínteses históricas de produção nacional até um livro com quase
meio século escrito por um jornalista australiano em tempos famoso.
Redescoberto após um paciente trabalho de busca e edição, “O Golpe dos
Capitães” (ed. Edições 70), de Wilfred Burchett, é um extenso trabalho de
reportagem onde ganham voz tanto figuras políticas como cidadãos comuns. Uma
preciosidade cujo interesse ultrapassa em muito o arqueológico.
“Se em vez de um 25 de novembro tivesse acontecido um
25 de janeiro ou de fevereiro, o país tinha ido para a extrema-direita de
imediato”, diz Vasco Lourenço em “Breve História do 25 de Novembro”
A extensa cronologia (mais de 60 páginas) fornecida por Rui Cardoso em
“Breve História do PREC” (ed. Oficina do Livro) pode ser usada para verificar
pontos em particular ou simplesmente para ir debicando aqui e ali, refrescando
a memória ao sabor do acaso. Nascido em 1953, o autor foi jornalista, primeiro
no “Diário Popular” e depois no Expresso, durante décadas. Inevitavelmente, no
seu texto há elementos de recordação pessoal — sobre imprensa, mas não só — que
o valorizam. Em relação ao 25 de Novembro, ele socorre-se em parte da obra de
um outro (e muito mais novo) ex-jornalista do Expresso, Filipe Garcia, que
explorou o 25 de Novembro em artigos desenvolvidos para este jornal,
entrevistando participantes-chave. Entre eles, o coronel Vasco Lourenço, que lembra
como o 25 de Novembro não se limitou a conter extremismos à esquerda.
BREVE HISTÓRIA DO PREC
Rui Cardoso
Oficina do Livro, 2025, 224 págs., €15,90
“Se em vez de um 25 de novembro, tivesse acontecido um 25 de janeiro ou de
fevereiro, o país tinha ido para a extrema-direita de imediato”, diz Lourenço
em “Breve História do 25 de Novembro” (ed. Ideias de Ler). “Não tenho dúvida
nenhuma. A situação estava a degradar-se de tal maneira, nós a perder o
controlo e a extrema-direita a impor-se de tal maneira que, se não tivesse
acontecido o que aconteceu, em janeiro ou fevereiro não sei se teríamos tido
condições para responder a uma tentativa de golpe à direita.” Uma ideia
entretanto confirmada pelo cónego Melo, um líder do movimento
contrarrevolucionário a norte que ficou associado a múltiplas ações violentas.
Entre as sínteses recentes merece ainda menção “A Revolução dos Cravos”
(ed. Relógio D’Água), de Alex Fernandes, autor de uma geração mais recente, que
vive em Londres. Quem quiser entrar nessa história tem por onde escolher,
portanto. Contudo, permanecem questões em aberto. Pesem as investigações
oficiais e as obras académicas, não ficou completamente esclarecido o que se
passou a 25 de novembro. Quando os paraquedistas ocuparam as bases aéreas de
Tancos, Montijo e Monte Real (houve ações paralelas de militares do RALIS e da
EPAM, bem como na Polícia Militar), o que pretendiam fazer? Um golpe de estado?
Uma sublevação militar? Ligada a essa questão está a de quem o dirigiu. Também
aí, mesmo a esta distância, encontramo-nos longe de ter atingido clareza absoluta,
ao ponto de a historiadora Irene Flunser Pimentel, no seu livro “Do 25 de Abril
de 1974 ao 25 de Novembro de 1975: Episódios Menos Conhecidos” (ed. Temas e
Debates), publicado em 2024, falar num efeito Rashomon, expressão usada para
referir situações cujas testemunhas são total ou parcialmente infiáveis e não
permitem descobrir o que realmente aconteceu.
Tropas da Escola Prática de Cavalaria, com o capitão
Salgueiro Maia, na autoestrada do Norte, a 25 de novembro de 1975
Rui Ochoa
A interpretação de Cunhal
Existe hoje um certo consenso de que a ação dos paraquedistas não visava
atacar diretamente as estruturas centrais de poder em Portugal. Mesmo
historiadores associados à direita como Rui Ramos falam de uma “demonstração de
força” por parte de militares (in “História de Portugal”), não de um golpe de
Estado. Motivados pelo que viam como ameaças à sua situação profissional, e
talvez também por uma certa vontade de redenção após o seu papel em algumas
ações anteriores vistas como antirrevolucionárias, os revoltosos não tomaram
medidas tradicionalmente associadas aos golpes de Estado, como o assalto aos
centros de poder político. Ainda que esperassem que outras unidades e quartéis
pelo país fora se associassem a eles, não havia nada que se assemelhasse a um
plano ou um comando unificado.
BREVE HISTÓRIA DO 25 DE NOVEMBRO
Filipe Garcia
Ideias de Ler, 2025, 248 págs., €18,85
Citado por Pimentel, Vasco Lourenço continua convencido de que a ordem
partiu do Copcon, o comando operacional dirigido por Saraiva de Carvalho, e que
o líder deste, a quem tinha acabado de ser retirado o comando da região militar
de Lisboa — outra alegada motivação da ação dos paraquedistas — tinha de estar
informado. Quanto ao PCP, segundo a interpretação de Lourenço, “Costa Gomes
deve ter encostado Cunhal à parede. Que era a guerra civil, que estava contra e
ia oferecer resistência, tendo convencido Cunhal a recuar”. Vasco Lourenço
elogiou nesse sentido o líder comunista: “Percebeu e não avançou. E com isso
evitou a guerra civil.” O mesmo elemento do Grupo dos Nove lembrou que “o major
Tomé e outros gritam ainda hoje que quem fez o golpe fomos nós e não eles”,
contrapondo com a afirmação: “Quem vai desencadear uma ação militar, quem vai
ocupar as bases são eles!”
A narrativa muitas vezes repetida, e que recentemente voltou a ser
reforçada por declarações de Zita Seabra, na altura dirigente do PCP, é que por
parte desse partido houve uma instrução para avançar que a seguir foi anulada
quando se percebeu que não havia armas suficientes para triunfar. Um telefonema
de um alto responsável do partido para uma unidade militar foi horas depois
seguido por outro telefonema do mesmo responsável a mandar recuar. Neste último
telefonema, o dito responsável terá passado a palavra ao secretário-geral do
PCP, o qual reiterou a segunda ordem ao militar, explicando que se tratava de
evitar uma guerra civil.
Para Cunhal, a explicação do 25 de Novembro é mais simples. Em “A Verdade e
a Mentira na Revolução de Abril” (ed. Avante, 1999), escreve: “Está mais que
provado, assumido e confessado, que se tratou de um golpe militar
contrarrevolucionário há muito em preparação num turbulento processo de
arrumação e rearrumação de forças.” O então líder do PCP garante que a
preparação do 25 de Novembro “começou muito antes das insubordinações e
sublevações militares do Verão Quente e de outubro e novembro de 1975”. Reconhecendo
a grande diversidade de entidades militares e políticas envolvidas, resume:
“Todas estavam aliadas para pôr fim à influência do PCP e ao processo
revolucionário, restabelecer uma hierarquia e disciplina nas forças armadas e
extinguir o MFA insanavelmente em vias de destruição pelas suas divisões e
confrontos internos.”
O GOLPE DOS CAPITÃES
Wilfred Burchett
Edições 70, 2025, 348 págs., €25,11
Cunhal cita uma posterior entrevista de Melo Antunes, membro do Grupo dos
Nove e um dos envolvidos: “Além das ações legais ou semilegais a que deitámos
mão para obter a supremacia militar, também desenvolvemos ações clandestinas
para nos prepararmos para uma confrontação que eu julgava inevitável. (…)
Tínhamos uma organização militar em marcha.” A preparação do golpe “para pôr
fim a uma situação insustentável” vinha pois de longe. Foi ulteriormente dado a
conhecer que, no Verão Quente, muitos Comandos “deixaram os postos civis e se
alistaram de novo para estarem operacionais”, diz Cunhal.
Ainda que a operação contrarrevolucionária estivesse prevista há muito — e
é forçoso admitir que nenhum exército no mundo pode tolerar uma situação de
caos durante um período prolongado — os paraquedistas forneceram-lhe o pretexto
perfeito. Em teoria, eles estavam a responder à substituição de Otelo por Vasco
Lourenço, bem como a algumas evoluções nas suas unidades. O que pretendiam,
segundo Rodrigo e Castro, “era um reequilíbrio político-militar, a conseguir
mediante nova recomposição do Conselho da Revolução, após a purga de quatro
oficiais afetos à linha PCP, sendo que para isso era fulcral demonstrar a sua
força militar aos Nove”.
À credibilidade limitada dos partidos recém-criados,
Otelo contrapunha algo consonante com uma embriaguez de liberdade, que não
queria voltar a submeter-se imediatamente a estruturas institucionais de tipo
convencional
O resultado foi o oposto. “O 25 de Novembro põe termo à degradação da
situação militar e confere mais espaço, mas também maior responsabilidade aos
partidos políticos, para repensarem as suas relações e assumirem a correlação
de forças no terreno. Isto, recorde -se, enquanto procuravam, na Assembleia
Constituinte, cinzelar o novo modelo de organização da sociedade portuguesa”,
diz Rodrigo Sousa e Castro. Fazendo uma ressalva: “Não se pode falar de uma
vitória da sociedade política sobre a sociedade militar, porque os partidos
políticos vivem à sombra dos militares durante todo o Verão Quente e até ao
desencadeamento das operações militares do 25 de Novembro. Isto é absolutamente
inequívoco. Ninguém fazia nada que não fosse de acordo com o seu grupo de pressão
militar.”
Em relação ao papel de Otelo e à sua personalidade, não faltam opiniões
categóricas. Vasco Pulido Valente, sempre rápido a desprezar a perspicácia
alheia, considera-o “um mitómano pouco inteligente, que muitas vezes roçava o
patológico”, e afirma que nele “é inútil procurar um pensamento racional. A sua
própria ideologia, aliás (se meia dúzia de slogans merecem o nome), o
encorajava a esperar a salvação da iluminada iniciativa do ‘povo’ e do tumulto
‘criador’ que ele eventualmente produzisse”.
Movimento de militares nas ruas a 25 de novembro de
1975
Rui Ochoa
O papel de Otelo
Outra forma de ver isto é notar que, face à incerteza quanto ao tipo de
regime a criar e ao estado ainda incipiente — e portanto, à credibilidade
limitada dos partidos recém-criados, Otelo contrapunha algo mais consonante com
uma certa embriaguez de liberdade reencontrada, que não queria voltar a
submeter-se imediatamente a estruturas institucionais de tipo convencional. É a
perspetiva de Carlos de Matos Gomes, o recentemente falecido Capitão de Abril,
historiador e romancista, em “Otelo, o Herético” (ed. Tinta-da-china). Para
ele, o instinto de Otelo, “mais do que a deliberada e consciente transformação
de uma utopia em realidade, abriu caminho a manifestações apelativas de formas
de organização de poder popular e de democracia. (...) Do fim do projeto bonapartista
de Spínola até a 25 de novembro de 1975 irão confrontar-se duas conceções
incompatíveis de governo. O projeto e a prática de Otelo propunham um regime
democrático, enquanto os partidos do sistema e os seus dirigentes pretendiam um
regime republicano”.
A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS: O DIA EM QUE CAIU A
DITADURA PORTUGUESA
Alex Fernandes
Relógio D’Água, 2025, 376 págs., €22
Se para Pulido Valente a conduta errática do chefe do Copcon nas semanas e
meses que precederam o 25 de Novembro (distribuição de armas a civis,
passividade antes ações como o cerco do parlamento, o assalto à embaixada de
Espanha, politização crescente de unidades do exército e apelos abertos à
insurreição armada) ameaçava “um paroxismo de violência e desordem de
consequências quase incalculáveis”, Matos Gomes sugere algo diferente. “Todo o
seu percurso de vida revela uma personalidade racional, ética, multicultural, e
não há qualquer prova de um repentino e radical distúrbio de personalidade”,
escreve no livro agora publicado. “Não existem provas de que a participação de
Otelo no processo político que conduziu ao 25 de Abril de 1974 e ao seu
desenvolvimento tenha sido uma campanha particular ou pessoal, uma cruzada
missionária após uma revelação para implantar um programa messiânico,
juntamente com um grupo de apóstolos, como algumas obras ao longo destes 50
anos o têm apresentado, algures entre um profeta, um excêntrico e um fanático.”
Filipe Garcia sintetiza: no 25 de Novembro, Otelo “viria a ser considerado
um traidor pelos que o viram ir para casa dormir, conversar com Costa Gomes e
recolher, mas será sempre um herói para outros, os que lhe agradecem Abril e os
que lhe gabam a sensatez de, em novembro, ter recusado sempre avançar”.
