quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Eduardo Maltez Silva - É sempre assim que começa ...




*   Eduardo Maltez Silva
 
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É sempre assim que começa: não com um ditador a bater à porta, mas com pequenos sinais que a sociedade finge não ver.

Uma criança brasileira entra na escola e sai dela sem dois dedos, depois de meses a pedir ajuda que ninguém quis ouvir, a direção encolhe os ombros. 

Um jovem bombeiro é violado num quartel que deveria ser símbolo de coragem, com os seus superiores a gravar o vídeo da humilhação. 

Centenas de imigrantes são empurrados pelo Estado para a ilegalidade, para alimentarem máquinas de lucro de máfias que corrompem funcionários do estado. 

Militares da GNR são detidos por proteger redes que transformam pessoas desesperadas em escravos descartáveis.

Empresários sem escrúpulos pagam 80 euros por mês a um imigrante que o próprio Estado força a permanecer ilegal, apenas para alimentar os apetites de ódio que nos mergulharam nesta desumanização do outro.

Nada disto acontece porque “algo correu mal”. 

Acontece precisamente porque está a correr como alguns querem: uma sociedade desenhada para que os de cima pisem os de baixo, para que a violência pareça normal e a indiferença, inevitável.

E esta normalização do mal não nasceu do nada.

Foi semeada, regada e fertilizada por um discurso político que, há anos, ensina o país a culpar os mais fracos em vez de olhar para cima.

Há um padrão a consolidar-se, a humilhação dos fracos pelos fortes. 

Uma hierarquização moral, racial, económica, étnica e ideológica.

A paranoia colectiva repete sempre o mesmo refrão: o inimigo é o imigrante, o cigano, o pobre, a mãe solteira, o sem-abrigo, a pessoa que chega sem nada.

É nesses alvos — e nunca nos verdadeiros predadores — que a extrema-direita treina a raiva do país.

Quem está em baixo é convidado a pisar quem está ainda mais em baixo, com a promessa que assim sobe mais alto.

E assim, a crueldade pinga da política para a sociedade, e da sociedade para as instituições.

Nada disto é acaso; tudo isto é ideologia em prática.

Quando a extrema-direita repete que há “pessoas que valem menos”, que há “portugueses de primeira” e “intrusos”, que os problemas do país se resolvem “limpando” quem está em baixo, está a ensinar uma ética perversa.

Essa ética infiltra-se nos corredores das escolas, nos balneários dos quartéis, nas empresas de trabalho temporário, nas esquadras e até nos partidos que antes se diziam moderados.

De repente, já ninguém estranha um pacote laboral feito para o topo esmagar o fundo, nem uma reforma fiscal criada para aliviar os muito ricos e sufocar quem depende da escola pública ou do SNS.

O Estado desprotege imigrantes, impedindo a sua legalização para que possam ser explorados. 

Os impostos descem para quem tem mais, os serviços descem para quem tem menos. 

A justiça torna-se suave para os poderosos e brutal para os vulneráveis. 

As escolas dividem-se entre as dos meninos ricos e as dos meninos pobres.

Dividir. Hierarquizar. Dominar.

E a tragédia maior é que muitos dos que repetem estas ideias não percebem que estão a entregar a própria vida aos poderosos.

Defendem bilionários que nunca conhecerão, atacam trabalhadores iguais a si, culpam imigrantes que fazem os empregos que eles recusam e entregam o país a elites que só prosperam porque há uma massa de gente ocupada a odiar-se mutuamente.

O fascismo funciona sempre assim: recruta os fracos para proteger os fortes, oferecendo apenas a ilusão de poder — o poder de pisar alguém.

A sociedade dá sinais antes de implodir. Os partidos sociais-democratas e humanistas perdem eleições, nasce um ódio visceral por tudo o que seja socialismo, sem que a maioria perceba o que isso quer dizer.

A democracia vai sendo abafada por algoritmos, por TikToks de ódio, por influencers políticos que transformam racismo, xenofobia e violência num produto viral.
 
Os berros abafam a lógica.   

E esse veneno espalha-se até contaminar tudo: famílias, escolas, instituições, partidos, a linguagem do dia-a-dia... as nossas próprias crianças e jovens.

Quando finalmente acordamos, já a crueldade deixou de chocar. Já o discurso hierarquizante se tornou norma. Já a exploração passou a ser tratada como inevitável.

E um país que se habitua a esmagar os mais fracos não tarda a descobrir que a esmagadora maioria vive do lado dos esmagados... mas, nessa altura, será tarde demais.

2025 11 26
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quarta-feira, 26 de novembro de 2025

António José Rodrigues - Os revanchistas de Novembro de 1975

*  António José Rodrigues

A decisão do governo da AD de constituir uma comissão para comemorar os 50 anos do 25 de Novembro configura mais um capítulo da operação de falsificação e de deturpação da história, por parte daqueles que nunca se conformaram com a Revolução de Abril. Na verdade, 50 anos depois aí temos muitos dos herdeiros do regime de Salazar e Caetano, agora de forma aberta, a animarem as comemorações do 25 de Novembro, os mesmo que foram objecto das benesses do fascismo, e que são hoje, no Governo e fora dele, os protagonistas da defesa dos interesses do grande capital.

A tentativa de apagar da memória do povo o 25 de Abril e substituí-lo pelo 25 de Novembro está bem patente nas afirmações do ministro da Defesa Nuno Melo, o homem forte das comemorações, as quais foi decidido alongar o período das comemorações por mais cinco meses, até Maio de 2026, para assegurar «que outras datas e acontecimentos só possíveis porque houve o 25 de Novembro venham a ser consideradas, como sejam a aprovação da Constituição da República e as eleições legislativas que deram lugar à primeira legislatura em 25 de Abril de 1976». Afirmações confirmadas na Resolução do próprio Governo.

Uma subtil mas pura mentira, considerando que as primeiras eleições legislativas decorrem da Assembleia Constituinte, realizadas em Abril de 1975, em pleno período revolucionário, e foram fruto da Revolução de Abril. Eleições que a contra-revolução quis adiar para impor uma solução referendária anti-democrática, à laia da Constituição de 1933, elaborada a partir de cima e sem a participação dos eleitos pelo povo. O objectivo em prolongar até Abril as reaccionárias comemorações para assinalar as eleições de 1976 anunciadas como as primeiras, é claro: identificar o processo revolucionário como um período ditatorial. Exemplo de que o 25 de Novembro não pôs fim ao processo iniciado em 25 de Abril, como pretendiam as forças reaccionárias, foi a aprovação e a entrada em vigor da Constituição da República, traduzindo, não apenas, o resultado dos trabalhos da Assembleia Constituinte, mas o resultado da luta do povo português e das forças revolucionárias.

Daí que a Constituição da República ainda hoje, apesar de amputada por sucessivas revisões constitucionais promovidas pelo PS e PSD, continue a manter conteúdos profundamente progressistas, e por isso a ser o alvo preferencial da direita de todos os matizes. Os partidos de direita perseguem o objectivo de rever a Constituição da República, procurando retirar princípios e valores que esta encerra e atentar contra os direitos nela inscritos, com o supremo objectivo de consumar a reconfiguração do Estado ao serviço dos interesses do grande capital nacional e estrangeiro.

O «verão quente» de 1975, que antecedeu o 25 de Novembro, foi um período caracterizado por uma profunda crise político-militar, com graves repercussões no plano económico e social e que, no essencial, resultou da ruptura no campo democrático, com os dirigentes socialistas a assumirem uma posição de reserva e oposição à evolução do processo revolucionário e a liderarem um processo de divisão, quer do movimento democrático quer do movimento popular e sindical em que a acção provocatória do 1.º de Maio de 1975 é momento marcante. Mas também pela cisão no MFA, entre o Grupo dos Nove e a Esquerda militar, que conduziria à desagregação e paralisação das estruturas superiores do Movimento das Forças Armadas (MFA). Um objectivo há muito perseguido pelas forças de direita e da social-democracia, do Grupo dos Nove, mas também de sectores esquerdistas agrupados em torno de Otelo Saraiva de Carvalho, ao mesmo tempo que a Esquerda militar perdia posições importantes nos centros de decisão político-militar.

Uma situação que permitiu que se desenvolvesse um conjunto de acções contra-revolucionárias na tentativa de inverter o curso da Revolução de Abril, nomeadamente recorrendo ao terrorismo, de forma organizada, procurando semear a intranquilidade e o pânico, isolar as forças de esquerda, desestabilizar a situação política e pôr em causa a própria democracia. Uma acção terrorista que atingiu sobretudo o PCP e os sindicatos, e de que é impossível desligar, como pretendem alguns, as acções e iniciativas políticas que caracterizaram o chamado «verão quente» de 1975.

O balanço destas acções é público e conhecido. Em Julho tiveram lugar 86 actos terroristas, dos quais 33 assaltos, pilhagens e incêndios de Centros de Trabalho do PCP e outras 23 tentativas repelidas. Acções acompanhadas do lançamento de bombas, fogos postos e agressões. Em Agosto, mais de 153 acções, das quais 82 assaltos e destruições de Centros de Trabalho (55 do PCP e 25 do MDP/CDE), 39 incêndios, 15 bombas, 23 agressões.

Neste quadro, o 25 de Novembro de 1975 foi o corolário de um longo período de instabilidade, em que o agravamento da crise político-militar e a ofensiva contra-revolucionária decorrem em paralelo, nomeadamente com a queda do V Governo Provisório e o afastamento do general Vasco Gonçalves, também das estruturas superiores das Forças Armadas e do MFA. O afastamento de Vasco Gonçalves era um objectivo há muito perseguido, como nos retrata António Avelãs Nunes no seu livro O Novembro que Abril não merecia: «A pedido do grupo de Melo Antunes, Carlucci pressionava Costa Gomes no sentido de demitir o V Governo Provisório, substituindo o Primeiro-Ministro e afastando os comunistas do novo Governo, e instava os embaixadores da França, RU, e RFA para que também eles pressionassem Costa Gomes (“temos agora de nos interrogar de que lado está Costa Gomes ou, em qualquer caso, se ainda vale a pena preservá-lo”)».

Este longo processo que antecedeu o 25 de Novembro foi também marcado por várias tentativas e acções contra-revolucionárias, em que se destacam o golpe Palma Carlos, o 28 de Setembro e o 11 de Março, através das quais os seus autores e cúmplices as procuraram sempre justificar como sendo respostas a tentativas ou golpes do PCP. O 25 de Novembro não foi excepção.

Das várias provocações montadas neste período com o objectivo de responsabilizar os comunistas e o movimento operário e contra eles atear a ira popular, o assalto à Embaixada de Espanha é profundamente ilustrativo, enquanto o terrorismo bombista ganhava também um lugar de destaque, com a activa participação de militares e políticos, bem como de organizações como o MDLP-Movimento Democrático de Libertação de Portugal, inspirado e chefiado por Spínola, e o ELP-Exército de Libertação de Portugal, entre outras organizações terroristas e contra-revolucionárias que actuavam a partir do estrangeiro, nomeadamente do Brasil e de Espanha.

O 25 de Novembro foi sustentado numa grande aliança contra-revolucionária, internamente muito fragmentada e que contou com o importante contributo de Mário Soares, principal promotor de uma vergonhosa campanha anti-comunista, realizada na base da mentira e de processos de intenções irreais, do PS e do Grupo dos Nove, onde participavam fascistas declarados e outros reaccionários radicais, cujo objectivo era a instauração de uma nova ditadura, que tomasse violentas medidas de repressão, nomeadamente, a ilegalização e destruição do PCP.

A verdade é que, após o golpe do 25 de Novembro, a rápida tomada de consciência dos militares democratas dos riscos que a democracia corria, nomeadamente aqueles que tendo combatido a Esquerda militar não se identificavam com a direita reaccionária, conduziu à criação de uma nova linha de defesa da democracia, designadamente no seio das Forças Armadas, e impediu que o 25 de Novembro liquidasse a revolução portuguesa e as suas conquistas. Importa, a propósito, relembrar o papel do esquerdismo e de forças como o MRPP, a AOC ou o PCP(m-l) que se aliaram ao PSD e ao CDS, e acabaram por se revelar agentes da direita e da extrema-direita, sem esquecer que destes partidos emergiu um número infindável de figuras, de que Durão Barroso será o expoente máximo pelos elevados cargos que exerceu no plano nacional e internacional, mas que se estende por um número infinito de políticos, jornalistas, «comentadores» e «analistas», que hoje se albergam no bloco central de interesses e continuam, «coerentemente», anticomunistas e ferozes defensores do grande capital, que havia sido derrotado no 25 de Abril e no 11 de Março.

O 25 de Novembro, ao contrário do que muitos dos seus protagonistas disseram e escreveram e alguns continuam a insinuar, não foi um golpe promovido pelo PCP, pela Esquerda militar ou pela «ala gonçalvista» do MFA, mas sim um golpe militar contra-revolucionário, fruto de uma cuidada e longa preparação, no quadro de um tumultuoso processo de rearrumação de forças no plano político e militar.

Álvaro Cunhal, no livro A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se), explica que, «como a orientação e acção do PCP e os acontecimentos provassem que não tinha havido nem golpe nem tentativa de golpe do PCP, inventou-se a tese do "recuo" – a história de que o PCP, vendo que o seu golpe militar, já desencadeado, iria falhar, recuou e desistiu do golpe. Essa tese do "recuo do PCP" é condimentada com uma insultuosa afirmação de Mário Soares: que o PCP teria lançado o golpe, mas, vendo que ia ser derrotado, deixou no terreno os esquerdistas "abandonados pelo PC" à sua sorte e à repressão (Maria João Avillez, Soares. Ditadura e Revolução). Falsidade e calúnia retomada por Freitas do Amaral (O Antigo Regime e a Revolução).

Explique-se. Esta invencionice, como argumento, deturpa dois factos reais: Um, as orientações dadas pela Direcção do PCP na noite de 24 para 25 a algumas das suas organizações para não se deixarem arrastar em atitudes ou na participação em aventuras esquerdistas de confronto militar (casos do Forte de Almada e do RAL1). Outro, uma conversa telefónica na mesma noite de 24 para 25 entre o Presidente da República Costa Gomes e o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, em que este, tendo tomado a iniciativa do contacto, nos termos habituais da ligação institucional com a Presidência da República, comunicou ao Presidente, desmentindo especulações em curso, que o PCP não estava envolvido em qualquer iniciativa de confronto militar e insistia em apontar a necessidade de uma solução política».

O PCP teve uma acção incansável no sentido de evitar o confronto, expressa em intervenções do seu secretário-geral, comunicados da sua Comissão Política e em variados documentos incluindo no próprio jornal Avante!, apontando uma saída política para a crise, propondo e concretizando encontros com todos os sectores, do PS (que recusou) aos agrupamentos esquerdistas, da Esquerda militar ao Grupo dos Nove e a militares esquerdistas ligados ao COPCON, embora sem resultados práticos.

Uma proposta que não obteve respostas, até porque o PS e os seus aliados tinham prosseguido as encenações e provocações com o objectivo de atingir e responsabilizar o PCP: primeiro, o caso do jornal República com os trabalhadores a tomarem posição contra a direcção do jornal e a orientação política por este seguida, tendo os dirigentes socialistas e os responsáveis do República, como então afirmou o PCP, «elementos mais do que suficientes para saberem que é uma calúnia tão torpe como absurda o atribuírem a responsabilidade da posição dos trabalhadores do jornal ao PCP»; depois, as manifestações no Patriarcado, resultado de algumas justas reivindicações profissionais do trabalhadores da Rádio Renascença não terem encontrado, por parte da hierarquia da Igreja, qualquer perspectiva de solução, com os comunistas a condenarem «todos os actos e atitudes que representam uma ofensa aos sentimentos religiosos do nosso povo». Na altura, o PCP sublinhou ainda «que sempre tem defendido e continua a defender a liberdade religiosa» sem, contudo, deixar de registar com preocupação uma nota pastoral dos Bispos, considerando-a uma «clara intromissão negativa na actual situação política, o que só poderá agudizar as dificuldades existentes».

Os acontecimentos do 25 de Novembro, porventura, nunca teriam acontecido se os golpistas liderados por Spínola não tivessem sido derrotados em 11 de Março, uma derrota que originou a imediata tomada de decisões históricas como a institucionalização do Movimento das Forças Armadas (MFA), a extinção da Junta de Salvação Nacional e do Conselho de Estado, a criação do Conselho da Revolução, a nacionalização da banca, dos seguros e de empresas como a TAP, a CP, a CIDLA, a SACOR, e ainda o aumento do Salário Mínimo Nacional para quatro mil escudos. A democracia portuguesa escolhe o rumo do socialismo.

Após a derrota do golpe de 11 de Março, em «meados de Julho» de 1975, como nos relata o insuspeito historiador José Freire Antunes (antigo deputado e dirigente do PPD/PSD) no livro O segredo do 25 de Novembro, o então major Ramalho Eanes, usando o nome de «João Silva», faz um contacto telefónico com o tenente-coronel Tomé Pinto, que se encontrava na 2.ª repartição do Estado-Maior do Exército. Era o pontapé de saída para a constituição do «Grupo Militar» que haveria de promover o golpe do 25 de Novembro.

Curiosamente, o mesmo Tomé Pinto, agora tenente-general na reforma, foi escolhido por Nuno Melo para presidir à comissão das comemorações dos 50 anos do 25 de Novembro.

O golpe do 25 de Novembro significou a criação de uma nova situação política, uma viragem à direita na vida nacional, mas os mais ambiciosos objectivos contra-revolucionários foram derrotados. A força e a dinâmica do movimento operário e popular e a intervenção esclarecida do PCP foram factores determinantes para a contenção do golpe. Em lugar de reprimido e ilegalizado, o PCP continuou no Governo e a reforçar a sua influência social e política. A aprovação da Constituição e a sua entrada em vigor constituiu um factor de primeiro plano para travar os planos golpistas. Será com a formação do primeiro governo constitucional do PS sozinho, mas de facto aliado à direita, que se virá a institucionalizar o processo contra-revolucionário.


Revolução de AbrilEdição Nº 399 - Nov/Dez 2025

https://omilitante.pcp.pt/pt/399/447/2218/Os-revanchistas-de-Novembro-de-1975.htm? 


Mistificações em torno do 25 de Novembro

 
* Ana Sousa

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Da responsabilidade do esquerdismo no 25 de Abril não se fala. Não se fala de um Otelo que abandonou os seus e foi para casa. Não se fala das mistificações de Vasco Lourenço a tentar retocar a sua imagem para a posteridade . Não se fala do ElP , do MDLP e de um Carlucci maestro e financiador da contra revolução a mando do Império . 

Os ditos historiadores que participaram nos acontecimentos fazem a história pelas lunetas da sua facção, como é o caso de um Rosas ou de um  Pacheco Pereira  , no Público , no seu mal disfarçado anti comunismo , diz-nos que por alturas do 25 de Novembro eram as forças esquerdistas que dominavam as ruas de Lisboa..Coitado, nenhum oftalmologista  o consegue curar

...Até descobriu um inexistente discurso secreto de Álvaro  Cunhal que  certamente lhe terá sido dado por Zita Seabra que o terá descoberto numa das suas peregrinações ao Santuário de Fátima .

Dos mais recentes não posso deixar de citar o livro da brilhante estúpida Varela que no seu militantismo trotsquista avant lá lettre ainda não percebeu o que é a relação de forças ou a correlação de forças. Valha-nos Deus e a Santíssima Trindade 


26 Novembro 2025 
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Aurélien -- Você não consegue chegar lá partindo daqui.

 

* Aurélien

Todas aquelas coisas chatas depois da derrota na Ucrânia.


Os especialistas têm nos proporcionado muita diversão inocente ultimamente, e gerado muita controvérsia interessante, ao opinarem sobre temas como possíveis planos de paz para a Ucrânia, possíveis golpes de Estado em Kiev, supostas tentativas ocidentais de substituir Zelensky, o impacto potencial de investigações de corrupção, hipotéticos futuros destacamentos de forças ocidentais na Ucrânia, e assim por diante. Tudo isso é (em sua maioria) diversão inofensiva, e mantém os especialistas, que precisam de audiência e dinheiro, mas não possuem qualquer conhecimento político ou militar, ocupados de forma inócua. Contudo, grande parte disso permanece no nível de especulação desenfreada.

Por outro lado, há vários anos venho tentando incentivar as pessoas a analisarem questões mais fundamentais e de longo prazo sobre as adaptações que o Ocidente terá de fazer em função de uma vitória russa e da preeminência militar da Rússia na Europa. Hoje, quero abordar uma questão que, até onde sei, sequer foi levantada, muito menos devidamente considerada. Se a relação entre a Rússia e o Ocidente após a Ucrânia for tensa e conflituosa, e se a possibilidade de um conflito aberto não for descartada, como podemos sequer compreender o que isso poderá significar e como, se é que é possível, podemos nos preparar para tal?

É claro que alguns políticos e especialistas já acreditam ter a resposta. Assim, fantasias de gastar 5% do PIB em defesa, planos mirabolantes para retomar o serviço militar obrigatório (ou algo parecido), tentar reconstruir a capacidade de produção militar, comprar mais deste ou daquele tipo de equipamento… certamente a resposta está aí em algum lugar, não é? Mas não está. Como já enfatizei repetidamente, nada disso faz sentido, e a maior parte é um desperdício de dinheiro, até que se reflita bastante e se tenha uma ideia clara do que se pretende alcançar. Caso contrário, é como ir a uma loja de jardinagem e voltar com uma coleção aleatória de ferramentas e plantas sem a menor ideia do que fazer com elas. Mas, para o Ocidente, é claro, o problema é ainda pior: imagine trinta famílias de diferentes tamanhos e rendas tentando decidir os detalhes de como, se é que é possível, recuperar um terreno baldio, e você terá uma vaga ideia dos problemas envolvidos.

Neste ensaio, abordarei três questões. Primeiro, como devemos entender essa conversa sobre conflito e até mesmo “guerra” entre a Rússia e o “Ocidente”, e é sequer possível discuti-la de forma sensata? Segundo, o que essa compreensão implicaria em termos práticos? E terceiro, supondo que as duas primeiras questões possam ser respondidas, o que seria realmente necessário caso se decidisse dar uma resposta? É evidente que essas questões são interdependentes e, em certa medida, se sobrepõem, mas tentarei, mesmo assim, abordá-las em uma sequência lógica e, em particular, utilizarei exemplos históricos. Quero enfatizar o quão impreciso é o conceito de “guerra” com a Rússia e como estamos vivendo um momento de incerteza estratégica sem precedentes, mesmo que nossos políticos e especialistas pareçam não perceber isso.

Para começar, já nem sabemos o que é “guerra”. Tecnicamente, claro, não existem mais guerras, exceto aquelas autorizadas pelo Conselho de Segurança. Em vez de “guerras”, que eram situações legais declaratórias , temos “conflitos armados”, que são situações objetivas definidas por níveis de violência em certas áreas. (Não temos tempo para entrar nos porquês e nos detalhes: basta dizer que essa simples mudança é evidentemente complexa demais para a maioria dos políticos e especialistas compreenderem.) Mas os velhos hábitos de pensamento persistem, e especialistas falam da Grã-Bretanha ou da França “em guerra” com a Rússia, enquanto políticos dizem acreditar que uma “guerra” pode “eclodir” na próxima década, mesmo que nenhum dos dois tenha muita ideia do que isso significa.

Vamos tentar dissipar um pouco a confusão dizendo que o que está sendo invocado aqui é a ideia de que, em algum momento num futuro próximo, forças ocidentais e russas poderiam entrar em confronto, levando a uma troca de tiros, possíveis baixas e uma possível escalada para um conflito maior. Se isso corresponde ou não à compreensão popular de "guerra" é irrelevante, principalmente porque um simples choque entre aeronaves sobre o Mar do Norte seria suficiente, por si só, para gerar uma crise diplomática no Ocidente, mesmo que a situação não se deteriorasse ainda mais.

O problema é que, essencialmente pela primeira vez na história, não temos ideia de como seria um conflito sério com outro Estado (ou "guerra", se preferir) na prática, nem como, ou mesmo por que, ele seria travado. Assim, a "guerra" com a Rússia hoje é apenas uma espécie de conceito existencial. Durante a maior parte da história da humanidade, não foi assim. No século XVIII, na Europa, a guerra era uma questão de objetivos políticos, batalhas planejadas, exércitos profissionais, campanhas eleitorais, tratados de paz e ganhos e perdas. As consequências a longo prazo da Revolução Francesa e a crescente sofisticação dos governos fizeram com que, no final do século XIX, a guerra fosse vista como um empreendimento contínuo, com grandes exércitos de recrutas, travada por objetivos importantes, geralmente territoriais. Antes de 1914, a guerra era vista principalmente como algo relacionado à industrialização, à mobilização de forças muito grandes, ao transporte ferroviário e a um conflito longo e sangrento. (É um mito que os exércitos europeus em 1914 esperassem uma guerra curta, embora certamente desejassem que fosse.) Antes de 1939, a guerra era concebida como algo que exigia toda a capacidade de uma nação, envolvendo destruição massiva e o uso de novas tecnologias, como aeronaves, além do potencial de exterminar a civilização europeia. Além de divagarem sobre drones, poucos dos especialistas de hoje parecem ter sequer a mais remota ideia de como um conflito futuro poderá ser, o que talvez seja perdoável no momento, ou mesmo de terem pensado nisso de forma organizada antes de escreverem algo, o que não é.

A questão aqui não é que estudos, planos, exercícios etc. impliquem previsão. Essa é uma suposição comum, mas está errada. O ponto é que você precisa ter algumas premissas básicas sobre a natureza e a extensão de qualquer conflito em que possa se envolver, ou simplesmente não conseguirá planejar nada. Essas premissas podem ser parcial ou até mesmo totalmente invalidadas com o tempo, mas pelo menos fornecem uma base para o trabalho e para que os militares elaborem planos. Não faz sentido a liderança política pedir aos militares que "planejem para a guerra" sem essas premissas mínimas: seria o mesmo que ir a uma seguradora e pedir "uma apólice de seguro". Vejamos alguns exemplos.

O fator que mudou tudo após a Primeira Guerra Mundial foi o bombardeiro tripulado, cuja capacidade de "ultrapassar" fronteiras e até oceanos, lançando bombas diretamente sobre cidades, aterrorizou tanto os governos quanto o público em geral. Medidas de defesa passiva, na medida do possível, foram tomadas e, num vislumbre precoce da teoria da dissuasão, discutiu-se a construção de bombardeiros de longo alcance para desencorajar potenciais inimigos. Naquela época, porém, não havia defesa contra tal ataque: o político britânico Stanley Baldwin foi muito ridicularizado por sua declaração de 1932 de que "o bombardeiro sempre conseguirá passar", mas ele não disse nada além da verdade. Como Baldwin apontou, mesmo com caças em alerta máximo, quando estes pudessem ser acionados e localizar seus alvos, os bombardeiros já estariam a caminho de casa. Contudo, essa constatação forneceu uma orientação para a futura política aérea britânica: desenvolvimento de caças de alta velocidade capazes de se comunicar com o solo e entre si, desenvolvimento de radares para alerta antecipado e formação de um sistema central de comando e controle para a defesa aérea. Ao mesmo tempo, a frota de bombardeiros foi enormemente expandida e novos tipos de aeronaves foram encomendados, na esperança de desferir um golpe rápido e decisivo contra a Alemanha. É verdade que a realidade acabou sendo um pouco diferente, como geralmente acontece, mas foi essencialmente essa estrutura que permitiu aos britânicos vencer a Batalha da Grã-Bretanha e que significou que eles começaram a guerra com um conjunto coerente de políticas e planos.

Em contraste, a enorme guerra convencional e nuclear na Europa, temida entre as décadas de 1950 e 1980, nunca chegou a ser travada. Mas ambos os lados levaram a possibilidade extremamente a sério, e por isso existiam planos e doutrinas coerentes para tal guerra. Isso era particularmente verdadeiro para a União Soviética, para quem essa seria a Grande Guerra: o conflito final, inconcebivelmente destrutivo, lançado pelo Ocidente num esforço desesperado para frustrar o triunfo mundial do comunismo e que definiria o futuro da humanidade. Esperava-se que a guerra fosse total, incluindo o que na época era descrito timidamente como uma “troca nuclear estratégica”, e que resultasse numa devastação pior do que a da Segunda Guerra Mundial, da qual levaria décadas para se recuperar. Mas a prioridade incondicional dada aos gastos militares, uma economia de guerra permanente e uma preparação antecipada massiva levariam a União Soviética à vitória. Se tiver interesse, você pode acompanhar essa mentalidade apocalíptica em todos os níveis dos preparativos militares soviéticos.

O Ocidente não pensava nesses termos e, por razões políticas, não podia, mas isso não o impediu de desenvolver doutrinas e estruturas que tentassem contrariar os preparativos soviéticos. Presumia-se que a União Soviética seria a atacante (o que, de fato, era sua doutrina) e que uma crise levaria semanas para se desenvolver. Isso significava que as forças da OTAN poderiam ser otimizadas para a defesa (portanto, tanques mais lentos e pesados, por exemplo) e que forças relativamente pequenas em tempos de paz poderiam ser complementadas por milhões de reservistas mobilizados, o que, incidentalmente, implicava um serviço militar obrigatório ou algo semelhante. Por sua vez, e importante para os dias de hoje, havia pouca necessidade de se preocupar com a logística da projeção de forças para a frente de batalha. A OTAN também dava muita importância ao poder aéreo, onde o considerava superior ao do Pacto de Varsóvia.

Felizmente, nunca saberemos como uma guerra desse tipo teria sido na prática, mas o fato de cada lado ter um conceito bastante preciso, e de isso ter servido de base para planos, estruturas de força, treinamento e exercícios, mostra o quão distantes estamos, em comparação, de qualquer reflexão organizada sobre um hipotético “conflito” futuro. Portanto, teremos que fazer isso por eles. Proponhamos que analisemos uma gama de possibilidades, desde confrontos de pequena escala entre forças russas e ocidentais, sem necessariamente causar baixas, até algum tipo de engajamento direto por terra e ar no continente europeu para objetivos limitados. Podemos supor conflitos de maior escala e abrangência, se quiserem, mas a realidade é que eles estão agora, e provavelmente sempre estarão, além da capacidade do Ocidente de conduzi-los. Nada do que se viu na evolução da doutrina militar ocidental desde 2022, muito menos na prática militar, sugere que o Ocidente sequer tenha começado a assimilar as lições do conflito na Ucrânia.

Antes de prosseguirmos, preciso enfatizar que definir os cenários militares para o planejamento é apenas parte da tarefa. A outra parte, muito mais difícil, é elaborar algum tipo de doutrina política e procedimentos para lidar com o surgimento de conflitos ou com a ameaça de um conflito. Fazer isso em nível nacional não é fácil. Fazer isso em nível internacional pode ser uma agonia. A única vez em que uma OTAN (bem menor) teve que enfrentar uma operação militar séria foi no Kosovo, em 1999, e isso quase destruiu a aliança. Tentar lidar, por exemplo, com uma exigência russa de que os navios da OTAN mantenham uma certa distância de embarcações russas em exercício, sob a ameaça de serem atacadas, provavelmente seria suficiente para paralisar o processo de tomada de decisão em Bruxelas após apenas alguns minutos de discussão, sem uma solução óbvia. Portanto, o primeiro objetivo, e um que eu acho que nunca alcançaremos, será um conceito político-militar da OTAN acordado para lidar com provocações, acidentes e escaladas com a Rússia.

Certo, mas vamos supor que sim. Que tipos de planos devemos orientar os militares a elaborar, para quais tipos de contingências? Aqui estão alguns exemplos e, mais uma vez, não os apresento como profecias. Em vez disso, são exemplos genéricos dos tipos de suposições necessárias para que toda essa conversa sobre "preparação para a guerra" se concretize de fato.

A primeira, que considero bastante realista, é o policiamento das fronteiras aéreas e marítimas. Uma grande potência militar, como a Rússia é atualmente, possui, em virtude desse status, uma capacidade de intimidação contra nações mais fracas, como as da Europa, ou os Estados Unidos, enquanto potência europeia. Essa capacidade é existencial, independentemente de ser usada deliberadamente ou não. Mas eu esperaria que os russos, tanto por princípios gerais quanto por razões específicas, sondassem as fronteiras aéreas e marítimas ocidentais, buscando interromper exercícios da OTAN, perturbar o tráfego marítimo e aéreo e assim por diante. Se os russos estivessem pressionando, ao mesmo tempo, por algum tipo de Tratado de Segurança Europeu que os favorecesse fortemente, então esse tipo de comportamento seria bastante lógico e razoável. Algum tipo de política da OTAN para responder a tais situações será necessária, e duvido que seja fácil de elaborar. Mas chegaremos às consequências práticas mais adiante.

Em seguida, há os cenários de fronteira terrestre, que poderiam envolver conflito direto entre as forças russas e da OTAN através de fronteiras internacionais. Na prática, esses cenários se limitam aos Estados Bálticos e à Finlândia, que, convenientemente, concedeu à OTAN uma extensa fronteira com a Rússia, que esta não consegue defender. Não precisamos nos preocupar, por ora, com a forma como tal crise poderia surgir, até porque a história sugere que essas tentativas costumam ser fúteis. Vale apenas ressaltar, talvez, que outro conflito na Geórgia também poderia provocar exigências, por parte de pessoas ignorantes e belicosas, pela intervenção da OTAN, e isso teria que ser levado em consideração, ao menos em teoria.

Por fim, haveria um conflito deliberado em larga escala entre a Rússia e a OTAN, por algum motivo que nem vamos abordar aqui. Na prática, isso teria que ser iniciado pela Rússia, porque a OTAN não tem forças nem capacidade logística para lançar um ataque por conta própria, mesmo que tivesse coesão política, como veremos adiante. Isso envolveria forças russas transitando pela Bielorrússia e Ucrânia e invadindo, provavelmente, a Polônia, a Hungria, a Eslováquia e a Romênia, antes de, possivelmente, ir além.

Neste ponto, quero abordar aspectos tediosos, porém essenciais para a compreensão, como mapas, distâncias, estradas e rotas de transporte aéreo e marítimo. O primeiro ponto a ressaltar é que não estamos falando da Guerra Fria. Naquela época, forças maciças eram mobilizadas, efetivamente frente a frente. Só a Bundeswehr (Forças Armadas Alemãs) podia mobilizar doze divisões em 48 horas (e em seu próprio território, é claro), além de unidades de defesa territorial. Belgas, holandeses e franceses já tinham forças posicionadas. Reforços (principalmente pessoal e unidades leves) chegariam por terra e trem para a batalha apocalíptica no que hoje é o centro da Alemanha. Os britânicos, com tropas ainda mais distantes, teriam transportado cerca de 40.000 soldados para reforçar suas quatro divisões, mas, novamente, a maior parte dos reforços era composta por pessoal ou unidades leves, e eles estavam a apenas algumas horas de Antuérpia. Praticamente nenhuma infraestrutura para isso existe hoje.

As forças do Pacto de Varsóvia também não tinham um longo caminho a percorrer. O Grupo de Forças Soviéticas na Alemanha, com cerca de 350.000 homens e mantido em alerta máximo permanente, deveria ser aniquilado nos primeiros dias de combate, por isso levaram consigo toda a sua logística. Esperava-se, então, que o segundo e o terceiro escalões conseguissem avançar até o Canal da Mancha, praticamente sem resistência. Em contraste, um ataque russo hoje contra a Polônia, através da Ucrânia ou da Bielorrússia, mesmo partindo de um ponto como Kharkiv, teria que avançar mil quilômetros apenas para chegar à fronteira polonesa. Isso talvez coloque em perspectiva as sugestões sobre uma "ameaça" russa à França ou ao Reino Unido.

Manteremos essa possibilidade em mente como teórica, sobretudo porque se trata de um caso extremo do que será um tema recorrente no restante deste ensaio: as distâncias, o terreno, a disponibilidade de forças, os problemas de reabastecimento logístico seriam uma ordem de grandeza mais graves do que qualquer operação militar já enfrentada, e os recursos disponíveis, mesmo no caso russo, são drasticamente menores do que em tempos recentes.

A realidade é que um conflito armado de grande escala entre a Rússia e o Ocidente seria travado predominantemente com mísseis e drones, e seria extremamente unilateral. Os russos não têm capacidade, se é que alguma vez tiveram, para invadir a Europa Ocidental com forças terrestres convencionais: aliás, eu argumentei, e continuo a acreditar, que mesmo a ocupação total da Ucrânia seria uma meta ambiciosa demais. Mas os mísseis e drones russos atuais, quanto mais os de um futuro próximo, poderiam atingir alvos ocidentais por terra, mar e ar: o Pentágono, o Palácio do Eliseu, o número 10 de Downing Street, todos seriam vulneráveis, e mesmo cobrir a superfície dos países ocidentais com baterias Patriot (se é que algum dia poderiam ser implantadas em tal número) não seria suficiente para detê-los. E basta olhar um mapa para perceber por que, mesmo que o Ocidente desenvolvesse mísseis semelhantes, suas aeronaves não conseguiriam se aproximar o suficiente para lançá-los. A geografia é implacável. Mas isso não é nenhuma novidade. Numa das partes menos estudadas do Livro 1 de Da Guerra , Clausewitz insistiu no “país” como um “elemento integrante” do conflito, e na importância de fortalezas, rios e montanhas para absorver forças que, de outra forma, estariam disponíveis para o combate: algo sobre o qual aqueles que reclamam da “lentidão” dos russos na Ucrânia fariam bem em refletir.

Para manter as coisas em proporções administráveis, vamos considerar o caso do destacamento de forças da OTAN em algum tipo de função “dissuasora” ou “preventiva”, no caso de um confronto que pudesse levar a combates reais. Os cenários mais óbvios incluiriam um conflito envolvendo os Estados Bálticos, a Finlândia ou ambos, e uma crise no Mar Negro com o possível risco de confronto naval e operações anfíbias contra a Bulgária e a Romênia. (Poderíamos incluir a Geórgia também para tornar as coisas um pouco mais interessantes.)

Então, o que é um papel “dissuasor” ou “preventivo” em tais situações? Como o próprio nome sugere, trata-se de uma atividade destinada a impedir que algo aconteça ou, no mínimo, a evitar que uma situação piore. Mas como fazer isso? Bem, existem dois elementos fundamentais. Primeiro, é preciso ser capaz de agir rapidamente; segundo, é preciso ter um plano de escalonamento visível para o caso de a dissuasão falhar. Caso contrário, a postura não será credível. Durante a Guerra Fria, e por um tempo depois, existiu uma unidade da OTAN chamada Força Móvel Terrestre do Comando Aliado da Europa. Era uma pequena unidade multinacional de alta prontidão, destinada a ser mobilizada rapidamente para os flancos da OTAN. Por razões políticas, praticamente todos os membros da OTAN designaram um contingente, mesmo que pequeno. Ela foi mobilizada muitas vezes em exercícios ao longo dos anos e provavelmente poderia ter sido mobilizada em uma crise real, desde que houvesse um acordo político. No entanto, ela tinha duas características importantes. Primeiro, seu componente terrestre era uma brigada leve de cerca de 5.000 homens. Seu potencial militar era, portanto, muito limitado, e seu objetivo principal era servir como um sinal político. No entanto, por trás da AMF(L) havia uma máquina militar muito maior, capaz de ser mobilizada com relativa rapidez. Assim, a mobilização da AMF(L) visava ser um aviso político: estamos prontos para lutar, se necessário, e a cavalaria não está longe.

É evidente que tal lógica não é possível hoje. De tempos em tempos, falava-se sobre o envio de forças “dissuasoras” europeias para partes da Ucrânia, e comentaristas entusiasmados frequentemente afirmavam que isso iria acontecer. Claro que não aconteceu, porque havia uma falha fundamental: se os russos não se intimidassem com a mera presença das forças europeias e simplesmente as ignorassem, quanto mais as atacassem, não haveria mais nada que o Ocidente pudesse fazer. Nessa situação, os russos teriam o que se chama de “domínio da escalada”, ou seja, poderiam passar a níveis progressivamente mais altos de violência, e o Ocidente não. Na prática, a própria força dissuasora proposta foi dissuadida de ser enviada. Podemos esperar uma história mais ou menos semelhante nos flancos da OTAN. Se quiserem, os russos sempre podem superar qualquer contingente da OTAN sem o menor esforço. A única esperança que tal envio teria é que os russos não desejassem um confronto armado com a OTAN por razões políticas mais amplas. Isso pode ser verdade, mas seria imprudente contar com isso, e, claro, depende de quão seriamente os próprios russos encaram a situação. Da mesma forma, nada impediria os russos de ameaçarem simplesmente aniquilar a força com mísseis e drones, a menos que ela fosse retirada, ou mesmo de ameaçarem destruí-la em seu caminho para a posição. Como essa é uma ameaça que eles de fato poderiam cumprir, configura uma postura de dissuasão.

O que nos leva à última parte deste ensaio. Suponhamos que, mesmo assim, se inicie o planejamento de uma operação desse tipo em algum ponto nos flancos da OTAN. O que ela envolveria e seria sequer possível? Minha argumentação é que as respostas são (1) mais do que você provavelmente pode imaginar e (2) não. Mas vamos detalhar um pouco mais.

Durante a Guerra Fria, as forças permanentes eram bastante numerosas: só o Exército Alemão contava com cerca de 350.000 homens em tempos de paz, e o francês um pouco mais, mesmo sem considerar os reservistas que podiam ser mobilizados rapidamente. Isso significava que grandes contingentes podiam ser destacados perto das fronteiras ou na própria Alemanha. As unidades permaneciam em seus postos por longos períodos (eu conhecia alguns oficiais britânicos que passaram quase toda a sua carreira operacional na Alemanha), desenvolviam sua própria infraestrutura e conheciam muito bem a área onde iriam lutar. Nem a OTAN nem o Pacto de Varsóvia precisariam "projetar" as forças para um futuro conflito: as mais importantes já estavam lá. A estrutura logística estava estabelecida, os sistemas de transporte eram altamente desenvolvidos e, em muitos casos, ambos os lados simplesmente haviam assumido o controle das instalações da antiga Wehrmacht.

Agora, se considerarmos um dos exemplos acima, o Exército finlandês normalmente se preocupa com o treinamento em tempos de paz (cerca de 20.000 recrutas por ano). Pelo menos no momento, não possui forças permanentes e profissionais que possam ser estacionadas em sua fronteira com a Rússia — que por si só tem mais de 1.300 quilômetros de extensão — e, portanto, depende da mobilização para qualquer resistência útil. Acontece que, durante a Guerra Fria, a fronteira entre a Alemanha Oriental e Ocidental tinha praticamente a mesma extensão: em tempos de paz, cerca de um milhão de soldados da OTAN estavam posicionados atrás dela.

Claramente, não se pode forçar muito a analogia. O terreno é, para dizer o mínimo, diferente da Alemanha, como o Exército Vermelho descobriu em 1939/40, assim como o clima (Clausewitz novamente). E o único objetivo plausível para os russos seria Helsinque, no extremo sul do país. Acima de tudo, o Exército Russo de hoje é uma fração do que era em 1939, quando mobilizou um milhão de homens apenas para essa operação. Por outro lado, se a OTAN quisesse "dissuadir" ou "demonstrar determinação" ao longo daquela que é hoje sua fronteira mais extensa com a Rússia, de longe, não teria muitas opções. Se as forças pudessem ser encontradas de alguma forma (veja o próximo parágrafo), uma presença permanente da OTAN no país, mesmo no sul, seria um empreendimento logístico fabulosamente caro e difícil, que exigiria talvez uma década de planejamento e construção e, provavelmente, na prática, se resumiria a uma presença apenas nos arredores de Helsinque, com incursões ocasionais fora dessa região.

Mas será que as forças necessárias seriam encontradas, de qualquer forma? Se quisermos uma força apenas simbólica — um batalhão multinacional, por exemplo — então a resposta provavelmente é “sim”. Mas seria um gesto puramente simbólico, sem qualquer significado militar e, como vimos, sem valor dissuasor. (Isso não significa que não vá acontecer, é claro.) Mas as chances de se mobilizar uma força internacional permanente de tamanho útil são remotas. Os exércitos são pequenos hoje em dia em comparação com a Guerra Fria, e há poucos indícios de que se tornarão significativamente maiores. Uma coisa é ter forças belgas mobilizadas na Alemanha durante a Guerra Fria, a poucas horas de casa. Outra é ter unidades de infantaria mobilizadas por alguns meses no Iraque ou no Afeganistão em condições de campo. Mas ter uma fração importante do seu Exército permanentemente mobilizada a milhares de quilômetros de casa em tempos de paz provavelmente está além da capacidade de qualquer Estado europeu hoje em dia, mesmo que fosse politicamente aceitável. Além disso, por que a Finlândia? Não deveríamos fazer o mesmo pelos Estados Bálticos, pela Polônia, pela Romênia e outros também, ou até mesmo em vez deles? As discussões, principalmente sobre financiamento, poderiam se estender por anos. (E acredite, isso é apenas a ponta do iceberg dos problemas.)

Como eles não vêm até nós, e como não podemos chegar até eles, a única maneira pela qual as forças ocidentais (incluindo as dos EUA) poderiam se encontrar "em guerra" com a Rússia seria se fossem mobilizadas em uma crise. Há, como você pode imaginar, alguns problemas com essa ideia. O tempo é o primeiro. Para reiterar, mesmo durante a Guerra Fria, um ataque de curto prazo não era considerado muito provável. Havia toda uma indústria de Indicadores de Alerta que as agências de inteligência de ambos os lados monitoravam, e presumia-se que a guerra se seguiria a um período de tensão política que poderia durar semanas. Assim, os exercícios militares da OTAN (e imagina-se que exercícios semelhantes em Moscou) incluíam uma análise minuciosa sobre quando a crise seria suficientemente grave para mobilizar e deslocar forças. Mas, repetindo novamente, as distâncias e os requisitos de transporte, e, portanto, os prazos naquela época, simplesmente não eram comparáveis ​​à situação atual. Além disso, as unidades eram mobilizadas para áreas que conheciam, juntavam-se a outras unidades já presentes, e os meios de transporte necessários para as distâncias relativamente curtas envolvidas existiam naquela época. Não existem mais.

Vamos nos deter nesse último pensamento. Afinal, embora não haja um aumento exorbitante nos gastos com defesa, nem uma expansão maciça das forças armadas, diversos governos planejam adquirir novos equipamentos ou mais dos mesmos, e é provável que haja um aumento modesto no tamanho e na capacidade das forças ocidentais, teoricamente para enfrentar a “ameaça” russa e enfrentá-la em operações militares. Mas a questão é se isso realmente faz algum sentido, e o argumento até agora sugere que não. Tais forças são pequenas demais e fracas demais para terem qualquer valor dissuasor, e seriam rapidamente aniquiladas em qualquer combate. Mas tudo bem, digamos que, por ser necessário “fazer alguma coisa”, a OTAN estabeleça algum tipo de força de intervenção pronta para se deslocar rapidamente para o local de um possível confronto e fornecer, pelo menos, uma resposta política e uma presença militar simbólica.

Ou talvez não. Lembre-se de que, durante a Guerra Fria, a orientação da OTAN era defensiva. Presumia-se que as forças da OTAN recuariam para suas próprias linhas de logística, utilizando boas estradas e rotas conhecidas. Embora houvesse a esperança de contra-atacar e, em última instância, expulsar o Exército Vermelho do território da OTAN, não havia intenção, e de qualquer forma não havia capacidade, para ir além. Assim, a logística foi relativamente negligenciada, e pouca atenção foi dada ao deslocamento, e nenhuma à projeção de força. Simplesmente não era necessário planejar a projeção de forças a centenas de quilômetros de distância, portanto, as capacidades, habilidades, equipamentos e pessoal para tal nunca foram desenvolvidos. Nos últimos trinta anos, houve apenas um esforço sério de projeção de força à distância, e esse foi o Iraque 2.0. Nesse caso, o deslocamento foi feito por mar, e as forças invasoras tiveram todo o tempo que desejaram e o controle total das rotas aéreas e de transporte. Mas a capacidade para tal operação não existe mais, mesmo que fosse relevante neste caso.

Assim, enviar mesmo uma força simbólica, motivada por razões políticas — digamos, duas brigadas mecanizadas e um quartel-general, com 10 a 12 mil militares — para as fronteiras da OTAN exigiria uma projeção de força a uma distância nunca antes tentada na história militar, num momento em que a capacidade ocidental de movimentar tropas pesadas nunca foi tão limitada. E teria de ser feito rapidamente. Isso cria uma série de problemas, porque uma força multinacional teria de ser mantida em um estado permanente de prontidão elevada, totalmente treinada, totalmente equipada, totalmente exercitada e pronta para ser mobilizada. (Em comparação, vários exércitos europeus orgulham-se de ter um batalhão com esse nível de prontidão.) Mesmo assim, os desafios logísticos de projetar forças a essa distância são enormes. Um tanque moderno pesa cerca de 60 toneladas e só pode ser transportado por ferrovia ou, longe das linhas férreas, por um transportador de tanques de 30 toneladas. Mas os transportadores de tanques são usados ​​hoje em dia apenas para movimentações rotineiras e não há o suficiente deles na Europa para garantir qualquer mobilidade estratégica real. Muitas pontes rodoviárias e ferroviárias na Europa não suportam cargas desse porte. Essencialmente, o mesmo se aplica à maioria dos outros tipos de unidades. Talvez, ao longo de algumas semanas ou um mês, uma única brigada consiga chegar, um tanto desgastada pela viagem, a tempo do fim da crise.

A OTAN realizou exercícios concebidos para, pelo menos, ensaiar essa capacidade, e os resultados não foram nada animadores. Fomos informados de que o Exercício DACIAN FALL, realizado recentemente, "envolveu" o envio de uma brigada multinacional de 5.000 homens para a Romênia, dos quais 3.000 eram franceses. Mas é quase impossível ter certeza até mesmo dos fatos básicos. Algo entre 500 e 800 soldados franceses já estavam posicionados, e alguns dos "envolvidos" nunca chegaram a sair da França. A maioria das estimativas aponta para um número de tropas efetivamente enviadas de, no máximo, 2.000, e mesmo assim, levaram semanas para chegar. Provavelmente, este é o melhor resultado que se pode esperar.

Mas certamente, você deve estar pensando, isso não aconteceu na Segunda Guerra Mundial? Os alemães não conquistaram grandes extensões de território russo em questão de semanas, e ainda por cima enfrentando resistência? Se eles conseguiram mobilizar milhões de homens dessa forma, por que nós não conseguiríamos mobilizar alguns milhares? Bem, por muito tempo, nossa compreensão desse episódio — na ausência de fontes soviéticas confiáveis, diga-se de passagem — veio das memórias tendenciosas de generais alemães, segundo os quais os vitoriosos tanques Panzer teriam aberto caminho até Moscou não fosse a intervenção das chuvas de outono e do frio do inverno, nenhum dos quais poderia ter sido previsto. Mas com a abertura dos arquivos soviéticos e com as pesquisas de uma nova geração de historiadores militares — notadamente David Stahel — fica claro que a invasão estava fadada ao fracasso desde o início, e por razões muito semelhantes às discutidas acima. O Alto Comando Alemão não fez nenhuma tentativa séria de avaliar a capacidade do Exército Vermelho e simplesmente presumiu que, após algumas grandes vitórias alemãs, ele se desintegraria, o regime em Moscou cairia e toda a campanha terminaria em seis ou oito semanas. (Isso pode lhe lembrar algo.) A logística foi simplesmente ignorada, pois a campanha terminaria antes que os problemas logísticos surgissem, ainda mais porque Stalin havia anexado metade da Polônia em 1939 e, portanto, os dois exércitos estavam frente a frente. O consenso atual é que, uma vez que essa fantasia de vitória rápida não se concretizou, a campanha estava basicamente perdida.

De fato, pode-se argumentar que os alemães só chegaram tão longe devido a erros catastróficos do lado soviético. Grande parte da culpa foi de Stalin: por vender aos alemães o combustível usado na invasão, pela destruição do corpo de oficiais do Exército Vermelho, por ignorar os avisos de ataque até o último segundo e, principalmente, por insistir que o Exército Vermelho fosse posicionado perto da fronteira para contra-atacar rapidamente, o que significava que, uma vez que os alemães cruzassem a linha de frente, o Exército Vermelho não tinha muita reserva. Mas, por outro lado, o Exército Vermelho conseguiu operar com sucesso na lama e em temperaturas abaixo de zero porque estava treinado e equipado para isso, e parece ter compreendido o que Clausewitz disse sobre a importância da "pátria", usando isso a seu favor.

O que é mais do que a nossa geração atual de especialistas (incluindo especialistas militares, infelizmente) parece ser capaz de compreender. A distância não pode ser simplesmente ignorada. É preciso combustível para mover qualquer coisa, inclusive o veículo que a move. Uma brigada blindada pode ter até 250 veículos de combate, e outros tantos em funções de apoio, e você não pode enviar tudo isso como anexo de um e-mail ou como um pacote da Amazon. Veículos e equipamentos exigem manutenção em instalações sofisticadas. Uma brigada blindada consome talvez de quinze a vinte toneladas métricas de alimentos por dia. E assim por diante.

Em outras palavras, a “guerra” que políticos e especialistas parecem antecipar com entusiasmo não acontecerá, porque não pode acontecer. Há uma série de coisas que poderiam ocorrer, desde confrontos aéreos e navais de pequena escala até ataques russos massivos e paralisantes contra um ou mais países ocidentais, passando por movimentações políticas de pequena escala nas fronteiras. Mas nada muito além disso. A ideia de batalhas blindadas massivas nos Estados Bálticos é uma fantasia, e esperemos que nenhum governo ocidental jamais a leve a sério. Há questões mais importantes e fundamentais com que nos preocuparmos neste momento.

26 de novembro de 2025

https://aurelien2022.substack.com/p/you-cant-get-there-from-here? 

Portugal, 1975: seis livros para compreender o 25 de Novembro

 

Manuel Moura/Lusa

A situação como estava não podia continuar: essa é a certeza que uma série de livros recentes confirma. O que, 50 anos depois, sabemos sobre o 25 de Novembro?  

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06 novembro 2025 20:59

Luís M. Faria

Jornalista

Só nas semanas imediatamente anteriores ao 25 de Novembro, tinha havido um cerco à Assembleia Constituinte, ataques (alguns à bomba) a sedes (“centros de trabalho”) do PCP pelo país fora, greves e manifestações mais ou menos diárias, a entrada em greve do próprio Governo, dissensões marcadas e públicas dentro das Forças Armadas, rumores insistentes de golpes de várias tendências...

DO 25 DE ABRIL DE 1974 AO 25 DE NOVEMBRO DE 1975: EPISÓDIOS MENOS CONHECIDOS

Irene Flunser Pimentel

Temas e Debates, 2024, 472 págs., €20,90


Enquanto isso, a economia portuguesa era atingida não só pelas greves e outras movimentações que levaram importantes empresas, estrangeiras e não só, a deixar o país, como por uma conjuntura internacional grave em consequência do boicote petrolífero decretado em 1973 pelos países árabes. Tudo parecia jogar contra as promessas de uma melhoria de vida enunciadas no programa do MFA (um dos três ‘D’ do programa era desenvolver, a par com descolonizar e democratizar).

Se a promessa inicial de liberdade após meio século de ditadura fora saudada por grande parte da população portuguesa, a divergências que se foram acentuando ao longo do ano e meio seguinte, não apenas entre esquerda e direita como dentro da esquerda — onde havia socialistas, gente do PCP, otelistas e grupos sortidos de extrema-esquerda, alguns com um grau de influência real que hoje parece insólito — tinham provocado já várias situações de enfrentamento potencialmente perigosas. No imediato, a ameaça viera da direita. Logo nos primeiros meses da Revolução, o então presidente da República, o general António de Spínola, que não participara no 25 de Abril nem integrava o MFA mas foi por este escolhido como figura política superior, tentara uma manobra para impor eleições presidenciais diretas em poucos meses, ao arrepio do que estava previsto. Falhado esse golpe palaciano — onde estava em causa não só uma ambição de poder do general como as suas ideias sobre o que deveria acontecer ao império colonial português — foi tentado um outro a 28 de setembro, com a projetada manifestação da “maioria silenciosa”, conceito importado da América. A manifestação acabou por ser impedida, mas a 11 de março do ano seguinte veio um golpe mais real, com aviões militares a sobrevoar Lisboa e a atacar um regimento, provocando um morto e dezena e meia de feridos. Também esse golpe falhou, e deu pretexto para a instituição política formal do MFA num órgão chamado Conselho da Revolução.

OTELO, O HERÉTICO: DO 25 DE ABRIL ÀS FP 25

Carlos de Matos Gomes

Tinta-da-china, 2025, 224 págs., €17,90


Outra consequência foi desencadear uma onda de nacionalizações e o chamado Verão Quente, durante o qual a influência do partido comunista, exercida através de figuras como o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, atingiu o seu auge, antes de começar a regredir sob o efeito da resistência de parte substancial do país, sobretudo no centro e norte, bem como da resistência política civil dirigida por figuras como Mário Soares, e da própria resistência da instituição militar, com as fações moderadas dentro do MFA a ganharem progressivamente ascendente a partir de meados de agosto.

Conforme revela Rodrigo Sousa e Castro, um capitão de Abril que também participou no 25 de Novembro — o seu importante livro de memórias intitula-se justamente “Capitão de Abril, Capitão de Novembro” — aquilo que se designa por 25 de Novembro não foi um evento único, mas um processo. Teve início formal com a aprovação do Documento dos Nove (assim chamado por ter origem num grupo de nove militares no Conselho da Revolução) a 7 de agosto, prosseguiu decisivamente com o pronunciamento de Tancos em setembro, quando houve uma recomposição do Conselho da Revolução e foi recusada a nomeação do primeiro-ministro demissionário Vasco Gonçalves para chefe do Estado-Maior do Exército. A conclusão a 25 de Novembro, com o movimento militar a que ficou associada a figura de António Ramalho Eanes, o futuro primeiro Presidente livremente eleito do país, não foi mais do que a conclusão desse processo, o qual por sua vez deu por terminado o chamado PREC (Processo Revolucionário em Curso), embora não a supervisão da política pelos militares, a qual se prolongaria até à primeira revisão constitucional, em 1982, que extinguiu o Conselho da Revolução.

António Ramalho Eanes (à dir.), na altura tenente-coronel, explica aos capitães Vasco Lourenço (à esq.) e Marques Júnior (de pé) a operação que dirigiu a partir do quartel-general da Amadora

Rui Ochoa

Os pontos de interrogação

Dos livros que agora surgem no 50º aniversário do 25 de Novembro, cobrindo o 25 de Abril e o PREC até ao golpe, é justo dizer que nenhum tem a envergadura histórica do de Sousa e Castro (ou, lá por isso, daquele que Otelo Saraiva de Carvalho escreveu sobre o golpe que dirigiu em 1974, “Alvorada em Abril”). Editado na Guerra e Paz, “Capitão de Abril, Capitão de Novembro” merecia bem uma reedição, talvez revista. Enquanto isso não acontece, surgem obras de tipo diverso, desde sínteses históricas de produção nacional até um livro com quase meio século escrito por um jornalista australiano em tempos famoso. Redescoberto após um paciente trabalho de busca e edição, “O Golpe dos Capitães” (ed. Edições 70), de Wilfred Burchett, é um extenso trabalho de reportagem onde ganham voz tanto figuras políticas como cidadãos comuns. Uma preciosidade cujo interesse ultrapassa em muito o arqueológico.

“Se em vez de um 25 de novembro tivesse acontecido um 25 de janeiro ou de fevereiro, o país tinha ido para a extrema-direita de imediato”, diz Vasco Lourenço em “Breve História do 25 de Novembro”

A extensa cronologia (mais de 60 páginas) fornecida por Rui Cardoso em “Breve História do PREC” (ed. Oficina do Livro) pode ser usada para verificar pontos em particular ou simplesmente para ir debicando aqui e ali, refrescando a memória ao sabor do acaso. Nascido em 1953, o autor foi jornalista, primeiro no “Diário Popular” e depois no Expresso, durante décadas. Inevitavelmente, no seu texto há elementos de recordação pessoal — sobre imprensa, mas não só — que o valorizam. Em relação ao 25 de Novembro, ele socorre-se em parte da obra de um outro (e muito mais novo) ex-jornalista do Expresso, Filipe Garcia, que explorou o 25 de Novembro em artigos desenvolvidos para este jornal, entrevistando participantes-chave. Entre eles, o coronel Vasco Lourenço, que lembra como o 25 de Novembro não se limitou a conter extremismos à esquerda.

BREVE HISTÓRIA DO PREC

Rui Cardoso

Oficina do Livro, 2025, 224 págs., €15,90


“Se em vez de um 25 de novembro, tivesse acontecido um 25 de janeiro ou de fevereiro, o país tinha ido para a extrema-direita de imediato”, diz Lourenço em “Breve História do 25 de Novembro” (ed. Ideias de Ler). “Não tenho dúvida nenhuma. A situação estava a degradar-se de tal maneira, nós a perder o controlo e a extrema-direita a impor-se de tal maneira que, se não tivesse acontecido o que aconteceu, em janeiro ou fevereiro não sei se teríamos tido condições para responder a uma tentativa de golpe à direita.” Uma ideia entretanto confirmada pelo cónego Melo, um líder do movimento contrarrevolucionário a norte que ficou associado a múltiplas ações violentas.

Entre as sínteses recentes merece ainda menção “A Revolução dos Cravos” (ed. Relógio D’Água), de Alex Fernandes, autor de uma geração mais recente, que vive em Londres. Quem quiser entrar nessa história tem por onde escolher, portanto. Contudo, permanecem questões em aberto. Pesem as investigações oficiais e as obras académicas, não ficou completamente esclarecido o que se passou a 25 de novembro. Quando os paraquedistas ocuparam as bases aéreas de Tancos, Montijo e Monte Real (houve ações paralelas de militares do RALIS e da EPAM, bem como na Polícia Militar), o que pretendiam fazer? Um golpe de estado? Uma sublevação militar? Ligada a essa questão está a de quem o dirigiu. Também aí, mesmo a esta distância, encontramo-nos longe de ter atingido clareza absoluta, ao ponto de a historiadora Irene Flunser Pimentel, no seu livro “Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975: Episódios Menos Conhecidos” (ed. Temas e Debates), publicado em 2024, falar num efeito Rashomon, expressão usada para referir situações cujas testemunhas são total ou parcialmente infiáveis e não permitem descobrir o que realmente aconteceu.

Tropas da Escola Prática de Cavalaria, com o capitão Salgueiro Maia, na autoestrada do Norte, a 25 de novembro de 1975 

Rui Ochoa

A interpretação de Cunhal

Existe hoje um certo consenso de que a ação dos paraquedistas não visava atacar diretamente as estruturas centrais de poder em Portugal. Mesmo historiadores associados à direita como Rui Ramos falam de uma “demonstração de força” por parte de militares (in “História de Portugal”), não de um golpe de Estado. Motivados pelo que viam como ameaças à sua situação profissional, e talvez também por uma certa vontade de redenção após o seu papel em algumas ações anteriores vistas como antirrevolucionárias, os revoltosos não tomaram medidas tradicionalmente associadas aos golpes de Estado, como o assalto aos centros de poder político. Ainda que esperassem que outras unidades e quartéis pelo país fora se associassem a eles, não havia nada que se assemelhasse a um plano ou um comando unificado.

BREVE HISTÓRIA DO 25 DE NOVEMBRO

Filipe Garcia

Ideias de Ler, 2025, 248 págs., €18,85


Citado por Pimentel, Vasco Lourenço continua convencido de que a ordem partiu do Copcon, o comando operacional dirigido por Saraiva de Carvalho, e que o líder deste, a quem tinha acabado de ser retirado o comando da região militar de Lisboa — outra alegada motivação da ação dos paraquedistas — tinha de estar informado. Quanto ao PCP, segundo a interpretação de Lourenço, “Costa Gomes deve ter encostado Cunhal à parede. Que era a guerra civil, que estava contra e ia oferecer resistência, tendo convencido Cunhal a recuar”. Vasco Lourenço elogiou nesse sentido o líder comunista: “Percebeu e não avançou. E com isso evitou a guerra civil.” O mesmo elemento do Grupo dos Nove lembrou que “o major Tomé e outros gritam ainda hoje que quem fez o golpe fomos nós e não eles”, contrapondo com a afirmação: “Quem vai desencadear uma ação militar, quem vai ocupar as bases são eles!”

A narrativa muitas vezes repetida, e que recentemente voltou a ser reforçada por declarações de Zita Seabra, na altura dirigente do PCP, é que por parte desse partido houve uma instrução para avançar que a seguir foi anulada quando se percebeu que não havia armas suficientes para triunfar. Um telefonema de um alto responsável do partido para uma unidade militar foi horas depois seguido por outro telefonema do mesmo responsável a mandar recuar. Neste último telefonema, o dito responsável terá passado a palavra ao secretário-geral do PCP, o qual reiterou a segunda ordem ao militar, explicando que se tratava de evitar uma guerra civil.

Para Cunhal, a explicação do 25 de Novembro é mais simples. Em “A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril” (ed. Avante, 1999), escreve: “Está mais que provado, assumido e confessado, que se tratou de um golpe militar contrarrevolucionário há muito em preparação num turbulento processo de arrumação e rearrumação de forças.” O então líder do PCP garante que a preparação do 25 de Novembro “começou muito antes das insubordinações e sublevações militares do Verão Quente e de outubro e novembro de 1975”. Reconhecendo a grande diversidade de entidades militares e políticas envolvidas, resume: “Todas estavam aliadas para pôr fim à influência do PCP e ao processo revolucionário, restabelecer uma hierarquia e disciplina nas forças armadas e extinguir o MFA insanavelmente em vias de destruição pelas suas divisões e confrontos internos.”

O GOLPE DOS CAPITÃES

Wilfred Burchett

Edições 70, 2025, 348 págs., €25,11


Cunhal cita uma posterior entrevista de Melo Antunes, membro do Grupo dos Nove e um dos envolvidos: “Além das ações legais ou semilegais a que deitámos mão para obter a supremacia militar, também desenvolvemos ações clandestinas para nos prepararmos para uma confrontação que eu julgava inevitável. (…) Tínhamos uma organização militar em marcha.” A preparação do golpe “para pôr fim a uma situação insustentável” vinha pois de longe. Foi ulteriormente dado a conhecer que, no Verão Quente, muitos Comandos “deixaram os postos civis e se alistaram de novo para estarem operacionais”, diz Cunhal.

Ainda que a operação contrarrevolucionária estivesse prevista há muito — e é forçoso admitir que nenhum exército no mundo pode tolerar uma situação de caos durante um período prolongado — os paraquedistas forneceram-lhe o pretexto perfeito. Em teoria, eles estavam a responder à substituição de Otelo por Vasco Lourenço, bem como a algumas evoluções nas suas unidades. O que pretendiam, segundo Rodrigo e Castro, “era um reequilíbrio político-militar, a conseguir mediante nova recomposição do Conselho da Revolução, após a purga de quatro oficiais afetos à linha PCP, sendo que para isso era fulcral demonstrar a sua força militar aos Nove”.

À credibilidade limitada dos partidos recém-criados, Otelo contrapunha algo consonante com uma embriaguez de liberdade, que não queria voltar a submeter-se imediatamente a estruturas institucionais de tipo convencional

O resultado foi o oposto. “O 25 de Novembro põe termo à degradação da situação militar e confere mais espaço, mas também maior responsabilidade aos partidos políticos, para repensarem as suas relações e assumirem a correlação de forças no terreno. Isto, recorde -se, enquanto procuravam, na Assembleia Constituinte, cinzelar o novo modelo de organização da sociedade portuguesa”, diz Rodrigo Sousa e Castro. Fazendo uma ressalva: “Não se pode falar de uma vitória da sociedade política sobre a sociedade militar, porque os partidos políticos vivem à sombra dos militares durante todo o Verão Quente e até ao desencadeamento das operações militares do 25 de Novembro. Isto é absolutamente inequívoco. Ninguém fazia nada que não fosse de acordo com o seu grupo de pressão militar.”

Em relação ao papel de Otelo e à sua personalidade, não faltam opiniões categóricas. Vasco Pulido Valente, sempre rápido a desprezar a perspicácia alheia, considera-o “um mitómano pouco inteligente, que muitas vezes roçava o patológico”, e afirma que nele “é inútil procurar um pensamento racional. A sua própria ideologia, aliás (se meia dúzia de slogans merecem o nome), o encorajava a esperar a salvação da iluminada iniciativa do ‘povo’ e do tumulto ‘criador’ que ele eventualmente produzisse”.

Movimento de militares nas ruas a 25 de novembro de 1975 

Rui Ochoa

O papel de Otelo

Outra forma de ver isto é notar que, face à incerteza quanto ao tipo de regime a criar e ao estado ainda incipiente — e portanto, à credibilidade limitada dos partidos recém-criados, Otelo contrapunha algo mais consonante com uma certa embriaguez de liberdade reencontrada, que não queria voltar a submeter-se imediatamente a estruturas institucionais de tipo convencional. É a perspetiva de Carlos de Matos Gomes, o recentemente falecido Capitão de Abril, historiador e romancista, em “Otelo, o Herético” (ed. Tinta-da-china). Para ele, o instinto de Otelo, “mais do que a deliberada e consciente transformação de uma utopia em realidade, abriu caminho a manifestações apelativas de formas de organização de poder popular e de democracia. (...) Do fim do projeto bonapartista de Spínola até a 25 de novembro de 1975 irão confrontar-se duas conceções incompatíveis de governo. O projeto e a prática de Otelo propunham um regime democrático, enquanto os partidos do sistema e os seus dirigentes pretendiam um regime republicano”.

A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS: O DIA EM QUE CAIU A DITADURA PORTUGUESA

Alex Fernandes

Relógio D’Água, 2025, 376 págs., €22


Se para Pulido Valente a conduta errática do chefe do Copcon nas semanas e meses que precederam o 25 de Novembro (distribuição de armas a civis, passividade antes ações como o cerco do parlamento, o assalto à embaixada de Espanha, politização crescente de unidades do exército e apelos abertos à insurreição armada) ameaçava “um paroxismo de violência e desordem de consequências quase incalculáveis”, Matos Gomes sugere algo diferente. “Todo o seu percurso de vida revela uma personalidade racional, ética, multicultural, e não há qualquer prova de um repentino e radical distúrbio de personalidade”, escreve no livro agora publicado. “Não existem provas de que a participação de Otelo no processo político que conduziu ao 25 de Abril de 1974 e ao seu desenvolvimento tenha sido uma campanha particular ou pessoal, uma cruzada missionária após uma revelação para implantar um programa messiânico, juntamente com um grupo de apóstolos, como algumas obras ao longo destes 50 anos o têm apresentado, algures entre um profeta, um excêntrico e um fanático.”

Filipe Garcia sintetiza: no 25 de Novembro, Otelo “viria a ser considerado um traidor pelos que o viram ir para casa dormir, conversar com Costa Gomes e recolher, mas será sempre um herói para outros, os que lhe agradecem Abril e os que lhe gabam a sensatez de, em novembro, ter recusado sempre avançar”.

 

https://expresso.pt/revista/culturas/2025-11-06-portugal-1975-seis-livros-para-compreender-o-25-de-novembro-cb1afa1a