terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Rui Pereira - O CANTO DA SEREIA LIBERAL E OS PUXADORES DE CARROÇA


Publicação de Rui Pereira


2025 12 01

Quando a 18 de novembro deste ano (2025) Miguel Maya, presidente do BPI, reivindicou maior liberdade para despedir, alegou que “há muita gente nas empresas que não puxa a carroça" [1]. Outros banqueiros disseram coisas parecidas, num seminário promovido pela sua imprensa, Jornal de Negócios, sob o título, “A Banca do Futuro”.

Pela mesma altura em que o banqueiro tratava os trabalhadores como bestas de carga, e igualmente embalado pelo extremismo da direitização da vida política do país, o candidato “liberal” a PR, João Cotrim de Figueiredo, em diálogo na CNN com os comentadores residentes da estação, Pedro Costa e Francisco Rodrigues dos Santos, defendeu, por exemplo e sem se rir, que uma maior liberdade de despedimentos produz uma melhoria do nível salarial.

Já em debate com o candidato comunista, António Filipe, o “liberal” Cotrim de Figueiredo meteu a viola no saco e, escandalizando os mais hardcore defensores da selvajaria neoliberal em Portugal, recuou em toda a sua linha habitual de argumentação “liberal”. Quem duvidar volte atrás, como eu fiz, e veja a emissão, incluída a reação de Miguel Pinheiro (ex- O Diabo e hoje diretor executivo do “Observador) que, sobressaltado de indignação, sublinhou como o Papa liberal “concordou com o PCP”, rematando com um eloquente “quero lá saber do Cotrim de Figueiredo”, entre outros mimos com que lhe atribuiu uma copiosa “derrota” no debate com Filipe.

Tem e não tem razão, Miguel Pinheiro. Tem razão, Miguel Pinheiro, do seu ponto de vista de propagandista cujo salário lhe é pago pelos seus patrões liberais, independentemente de “O Observador” dar lucro ou prejuízo, porque o seu negócio é outro. Não tem razão Miguel Pinheiro do ponto de vista de quem tem de, árdua e mentirosamente, ganhar os votos que asseguram eleitoralmente o sistema que permite aos patrões de Miguel Pinheiro pagarem-lhe o ordenado, como é o caso, entre outros, de João Cotrim de Figueiredo.

O motivo é simples. É que tanto nos nossos dias como historicamente, o liberalismo podia inspirar qualquer história do tipo “A Bela e o Monstro”, sendo a primeira a doutrina e o segundo a sua prática. Profundamente antidemocrático (ver de Benjamin Constant “A liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, de 1819, ou o Alexandre Herculano, que bem se proclamava “liberal dos quatro costados e antidemocrata" [2]), o liberalismo nunca passou de uma cobertura lírico-doutrinária para sustentar, ocultando-as, as novas e tremendas modalidades de exploração do trabalho pelo capital industrial primeiro e industrial-tecno-financeiro por fim.

Da “mão invisível” de Adam Smith, na Teoria dos Sentimentos Morais (de 1759) à regra de não intervenção estatal na fixação dos salários, de David Ricardo, passando pelo John Locke do Relatório para a Comissão do Comércio de 1699 em que prescrevia que “os vagabundos válidos de 14 a 50 anos apanhados a pedir deveriam ser condenados a servir três anos na Frota, para os que vivem nos condados junto ao mar, ou a trabalhar três anos na workhouse, para os restantes” e que “os pedintes com menos de 14 anos deviam ser chicoteados e colocados numa escola de trabalho” [3], todos estes dispensam o mal-amado liberal e melhor-esquecido reverendo Malthus, para quem “um homem que nasceu num mundo já partilhado, se não pode obter dos seus pais a subsistência que justamente lhes pode pedir, e se a sociedade não tem necessidade do seu trabalho, não tem nenhum direito de reclamar a mais pequena porção de alimento e, de facto, está a mais. No grande banquete da natureza não há lugar vago para ele. […] o rumor de que há alimentos para todos que chegarem enche a sala de numerosos reclamantes. A ordem e a harmonia da festa são perturbadas, a abundância que aí reinava transforma-se em escassez e a felicidade dos convivas é destruída pelo espectáculo da miséria e do embaraço que reinam em toda a sala”[4].

Em “A Grande Transformação”, Karl Polanyi descreveu esta guinada histórica como uma “mutação antropológica” em que a humanidade inscreveu pela primeira vez na sua história a (livre) hipótese da morte por inanição. Esse é o grande feito do capital que o liberalismo pretende ocultar, com a sua teologia genérica de uma "liberdade" em abstrato, que sempre que procura concretizar se vê tansformada num bem de consumo. E, para o conseguir, não pode investir com o seu argumentário de plástico contra a solidez de um candidato de origem comunista, bem preparado, como António Filipe. Sei que Cotrim lamenta, caro Miguel Pinheiro. “Mas, da próxima vá lá você ou peça a algum banqueiro para o fazer por si”, pensará o liberal Cotrim com os seus botões, entre muitas outras cogitações que decerto não deixará de fazer.

[1] Para as declarações de Maya: https://www.tsf.pt/.../banca-defende-reforma-da.../18021216

[2] Citado em Sottomayor Cardia (1998) Cinco Tipos de Democracia Institucional (p. 314). In Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.° 12, Lisboa, Edições Colibri (pp. 309-316)

[3] Beaud, Michel (1992], História do Capitalismo de 1500 aos nossos dias. Teorema p. 42

[4] Beaud, id. p. 105.

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