Manuel Moura/Lusa
A situação como estava não podia continuar: essa
é a certeza que uma série de livros recentes confirma. O que, 50 anos depois,
sabemos sobre o 25 de Novembro?
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06 novembro 2025 20:59
Jornalista
Só nas semanas imediatamente anteriores ao 25 de Novembro, tinha havido um
cerco à Assembleia Constituinte, ataques (alguns à bomba) a sedes (“centros de
trabalho”) do PCP pelo país fora, greves e manifestações mais ou menos diárias,
a entrada em greve do próprio Governo, dissensões marcadas e públicas dentro das
Forças Armadas, rumores insistentes de golpes de várias tendências...
DO 25 DE ABRIL DE 1974 AO 25 DE NOVEMBRO DE 1975:
EPISÓDIOS MENOS CONHECIDOS
Irene Flunser Pimentel
Temas e Debates, 2024, 472 págs., €20,90
Enquanto isso, a economia portuguesa era atingida não só pelas greves e
outras movimentações que levaram importantes empresas, estrangeiras e não só, a
deixar o país, como por uma conjuntura internacional grave em consequência do
boicote petrolífero decretado em 1973 pelos países árabes. Tudo parecia jogar
contra as promessas de uma melhoria de vida enunciadas no programa do MFA (um
dos três ‘D’ do programa era desenvolver, a par com descolonizar e
democratizar).
Se a promessa inicial de liberdade após meio século de ditadura fora
saudada por grande parte da população portuguesa, a divergências que se foram
acentuando ao longo do ano e meio seguinte, não apenas entre esquerda e direita
como dentro da esquerda — onde havia socialistas, gente do PCP, otelistas e
grupos sortidos de extrema-esquerda, alguns com um grau de influência real que
hoje parece insólito — tinham provocado já várias situações de enfrentamento
potencialmente perigosas. No imediato, a ameaça viera da direita. Logo nos
primeiros meses da Revolução, o então presidente da República, o general
António de Spínola, que não participara no 25 de Abril nem integrava o MFA mas
foi por este escolhido como figura política superior, tentara uma manobra para
impor eleições presidenciais diretas em poucos meses, ao arrepio do que estava
previsto. Falhado esse golpe palaciano — onde estava em causa não só uma
ambição de poder do general como as suas ideias sobre o que deveria acontecer
ao império colonial português — foi tentado um outro a 28 de setembro, com a
projetada manifestação da “maioria silenciosa”, conceito importado da América.
A manifestação acabou por ser impedida, mas a 11 de março do ano seguinte veio
um golpe mais real, com aviões militares a sobrevoar Lisboa e a atacar um
regimento, provocando um morto e dezena e meia de feridos. Também esse golpe
falhou, e deu pretexto para a instituição política formal do MFA num órgão
chamado Conselho da Revolução.
OTELO, O HERÉTICO: DO 25 DE ABRIL ÀS FP 25
Carlos de Matos Gomes
Tinta-da-china, 2025, 224 págs., €17,90
Outra consequência foi desencadear uma onda de nacionalizações e o chamado
Verão Quente, durante o qual a influência do partido comunista, exercida
através de figuras como o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, atingiu o seu
auge, antes de começar a regredir sob o efeito da resistência de parte
substancial do país, sobretudo no centro e norte, bem como da resistência
política civil dirigida por figuras como Mário Soares, e da própria resistência
da instituição militar, com as fações moderadas dentro do MFA a ganharem
progressivamente ascendente a partir de meados de agosto.
Conforme revela Rodrigo Sousa e Castro, um capitão de Abril que também
participou no 25 de Novembro — o seu importante livro de memórias intitula-se
justamente “Capitão de Abril, Capitão de Novembro” — aquilo que se designa por
25 de Novembro não foi um evento único, mas um processo. Teve início formal com
a aprovação do Documento dos Nove (assim chamado por ter origem num grupo de
nove militares no Conselho da Revolução) a 7 de agosto, prosseguiu
decisivamente com o pronunciamento de Tancos em setembro, quando houve uma
recomposição do Conselho da Revolução e foi recusada a nomeação do
primeiro-ministro demissionário Vasco Gonçalves para chefe do Estado-Maior do
Exército. A conclusão a 25 de Novembro, com o movimento militar a que ficou
associada a figura de António Ramalho Eanes, o futuro primeiro Presidente
livremente eleito do país, não foi mais do que a conclusão desse processo, o
qual por sua vez deu por terminado o chamado PREC (Processo Revolucionário em
Curso), embora não a supervisão da política pelos militares, a qual se
prolongaria até à primeira revisão constitucional, em 1982, que extinguiu o
Conselho da Revolução.
António Ramalho Eanes (à dir.), na altura
tenente-coronel, explica aos capitães Vasco Lourenço (à esq.) e Marques Júnior
(de pé) a operação que dirigiu a partir do quartel-general da Amadora
Rui Ochoa
Os pontos de interrogação
Dos livros que agora surgem no 50º aniversário do 25 de Novembro, cobrindo
o 25 de Abril e o PREC até ao golpe, é justo dizer que nenhum tem a envergadura
histórica do de Sousa e Castro (ou, lá por isso, daquele que Otelo Saraiva de
Carvalho escreveu sobre o golpe que dirigiu em 1974, “Alvorada em Abril”).
Editado na Guerra e Paz, “Capitão de Abril, Capitão de Novembro” merecia bem
uma reedição, talvez revista. Enquanto isso não acontece, surgem obras de tipo
diverso, desde sínteses históricas de produção nacional até um livro com quase
meio século escrito por um jornalista australiano em tempos famoso.
Redescoberto após um paciente trabalho de busca e edição, “O Golpe dos
Capitães” (ed. Edições 70), de Wilfred Burchett, é um extenso trabalho de
reportagem onde ganham voz tanto figuras políticas como cidadãos comuns. Uma
preciosidade cujo interesse ultrapassa em muito o arqueológico.
“Se em vez de um 25 de novembro tivesse acontecido um
25 de janeiro ou de fevereiro, o país tinha ido para a extrema-direita de
imediato”, diz Vasco Lourenço em “Breve História do 25 de Novembro”
A extensa cronologia (mais de 60 páginas) fornecida por Rui Cardoso em
“Breve História do PREC” (ed. Oficina do Livro) pode ser usada para verificar
pontos em particular ou simplesmente para ir debicando aqui e ali, refrescando
a memória ao sabor do acaso. Nascido em 1953, o autor foi jornalista, primeiro
no “Diário Popular” e depois no Expresso, durante décadas. Inevitavelmente, no
seu texto há elementos de recordação pessoal — sobre imprensa, mas não só — que
o valorizam. Em relação ao 25 de Novembro, ele socorre-se em parte da obra de
um outro (e muito mais novo) ex-jornalista do Expresso, Filipe Garcia, que
explorou o 25 de Novembro em artigos desenvolvidos para este jornal,
entrevistando participantes-chave. Entre eles, o coronel Vasco Lourenço, que lembra
como o 25 de Novembro não se limitou a conter extremismos à esquerda.
BREVE HISTÓRIA DO PREC
Rui Cardoso
Oficina do Livro, 2025, 224 págs., €15,90
“Se em vez de um 25 de novembro, tivesse acontecido um 25 de janeiro ou de
fevereiro, o país tinha ido para a extrema-direita de imediato”, diz Lourenço
em “Breve História do 25 de Novembro” (ed. Ideias de Ler). “Não tenho dúvida
nenhuma. A situação estava a degradar-se de tal maneira, nós a perder o
controlo e a extrema-direita a impor-se de tal maneira que, se não tivesse
acontecido o que aconteceu, em janeiro ou fevereiro não sei se teríamos tido
condições para responder a uma tentativa de golpe à direita.” Uma ideia
entretanto confirmada pelo cónego Melo, um líder do movimento
contrarrevolucionário a norte que ficou associado a múltiplas ações violentas.
Entre as sínteses recentes merece ainda menção “A Revolução dos Cravos”
(ed. Relógio D’Água), de Alex Fernandes, autor de uma geração mais recente, que
vive em Londres. Quem quiser entrar nessa história tem por onde escolher,
portanto. Contudo, permanecem questões em aberto. Pesem as investigações
oficiais e as obras académicas, não ficou completamente esclarecido o que se
passou a 25 de novembro. Quando os paraquedistas ocuparam as bases aéreas de
Tancos, Montijo e Monte Real (houve ações paralelas de militares do RALIS e da
EPAM, bem como na Polícia Militar), o que pretendiam fazer? Um golpe de estado?
Uma sublevação militar? Ligada a essa questão está a de quem o dirigiu. Também
aí, mesmo a esta distância, encontramo-nos longe de ter atingido clareza absoluta,
ao ponto de a historiadora Irene Flunser Pimentel, no seu livro “Do 25 de Abril
de 1974 ao 25 de Novembro de 1975: Episódios Menos Conhecidos” (ed. Temas e
Debates), publicado em 2024, falar num efeito Rashomon, expressão usada para
referir situações cujas testemunhas são total ou parcialmente infiáveis e não
permitem descobrir o que realmente aconteceu.
Tropas da Escola Prática de Cavalaria, com o capitão
Salgueiro Maia, na autoestrada do Norte, a 25 de novembro de 1975
Rui Ochoa
A interpretação de Cunhal
Existe hoje um certo consenso de que a ação dos paraquedistas não visava
atacar diretamente as estruturas centrais de poder em Portugal. Mesmo
historiadores associados à direita como Rui Ramos falam de uma “demonstração de
força” por parte de militares (in “História de Portugal”), não de um golpe de
Estado. Motivados pelo que viam como ameaças à sua situação profissional, e
talvez também por uma certa vontade de redenção após o seu papel em algumas
ações anteriores vistas como antirrevolucionárias, os revoltosos não tomaram
medidas tradicionalmente associadas aos golpes de Estado, como o assalto aos
centros de poder político. Ainda que esperassem que outras unidades e quartéis
pelo país fora se associassem a eles, não havia nada que se assemelhasse a um
plano ou um comando unificado.
BREVE HISTÓRIA DO 25 DE NOVEMBRO
Filipe Garcia
Ideias de Ler, 2025, 248 págs., €18,85
Citado por Pimentel, Vasco Lourenço continua convencido de que a ordem
partiu do Copcon, o comando operacional dirigido por Saraiva de Carvalho, e que
o líder deste, a quem tinha acabado de ser retirado o comando da região militar
de Lisboa — outra alegada motivação da ação dos paraquedistas — tinha de estar
informado. Quanto ao PCP, segundo a interpretação de Lourenço, “Costa Gomes
deve ter encostado Cunhal à parede. Que era a guerra civil, que estava contra e
ia oferecer resistência, tendo convencido Cunhal a recuar”. Vasco Lourenço
elogiou nesse sentido o líder comunista: “Percebeu e não avançou. E com isso
evitou a guerra civil.” O mesmo elemento do Grupo dos Nove lembrou que “o major
Tomé e outros gritam ainda hoje que quem fez o golpe fomos nós e não eles”,
contrapondo com a afirmação: “Quem vai desencadear uma ação militar, quem vai
ocupar as bases são eles!”
A narrativa muitas vezes repetida, e que recentemente voltou a ser
reforçada por declarações de Zita Seabra, na altura dirigente do PCP, é que por
parte desse partido houve uma instrução para avançar que a seguir foi anulada
quando se percebeu que não havia armas suficientes para triunfar. Um telefonema
de um alto responsável do partido para uma unidade militar foi horas depois
seguido por outro telefonema do mesmo responsável a mandar recuar. Neste último
telefonema, o dito responsável terá passado a palavra ao secretário-geral do
PCP, o qual reiterou a segunda ordem ao militar, explicando que se tratava de
evitar uma guerra civil.
Para Cunhal, a explicação do 25 de Novembro é mais simples. Em “A Verdade e
a Mentira na Revolução de Abril” (ed. Avante, 1999), escreve: “Está mais que
provado, assumido e confessado, que se tratou de um golpe militar
contrarrevolucionário há muito em preparação num turbulento processo de
arrumação e rearrumação de forças.” O então líder do PCP garante que a
preparação do 25 de Novembro “começou muito antes das insubordinações e
sublevações militares do Verão Quente e de outubro e novembro de 1975”. Reconhecendo
a grande diversidade de entidades militares e políticas envolvidas, resume:
“Todas estavam aliadas para pôr fim à influência do PCP e ao processo
revolucionário, restabelecer uma hierarquia e disciplina nas forças armadas e
extinguir o MFA insanavelmente em vias de destruição pelas suas divisões e
confrontos internos.”
O GOLPE DOS CAPITÃES
Wilfred Burchett
Edições 70, 2025, 348 págs., €25,11
Cunhal cita uma posterior entrevista de Melo Antunes, membro do Grupo dos
Nove e um dos envolvidos: “Além das ações legais ou semilegais a que deitámos
mão para obter a supremacia militar, também desenvolvemos ações clandestinas
para nos prepararmos para uma confrontação que eu julgava inevitável. (…)
Tínhamos uma organização militar em marcha.” A preparação do golpe “para pôr
fim a uma situação insustentável” vinha pois de longe. Foi ulteriormente dado a
conhecer que, no Verão Quente, muitos Comandos “deixaram os postos civis e se
alistaram de novo para estarem operacionais”, diz Cunhal.
Ainda que a operação contrarrevolucionária estivesse prevista há muito — e
é forçoso admitir que nenhum exército no mundo pode tolerar uma situação de
caos durante um período prolongado — os paraquedistas forneceram-lhe o pretexto
perfeito. Em teoria, eles estavam a responder à substituição de Otelo por Vasco
Lourenço, bem como a algumas evoluções nas suas unidades. O que pretendiam,
segundo Rodrigo e Castro, “era um reequilíbrio político-militar, a conseguir
mediante nova recomposição do Conselho da Revolução, após a purga de quatro
oficiais afetos à linha PCP, sendo que para isso era fulcral demonstrar a sua
força militar aos Nove”.
À credibilidade limitada dos partidos recém-criados,
Otelo contrapunha algo consonante com uma embriaguez de liberdade, que não
queria voltar a submeter-se imediatamente a estruturas institucionais de tipo
convencional
O resultado foi o oposto. “O 25 de Novembro põe termo à degradação da
situação militar e confere mais espaço, mas também maior responsabilidade aos
partidos políticos, para repensarem as suas relações e assumirem a correlação
de forças no terreno. Isto, recorde -se, enquanto procuravam, na Assembleia
Constituinte, cinzelar o novo modelo de organização da sociedade portuguesa”,
diz Rodrigo Sousa e Castro. Fazendo uma ressalva: “Não se pode falar de uma
vitória da sociedade política sobre a sociedade militar, porque os partidos
políticos vivem à sombra dos militares durante todo o Verão Quente e até ao
desencadeamento das operações militares do 25 de Novembro. Isto é absolutamente
inequívoco. Ninguém fazia nada que não fosse de acordo com o seu grupo de pressão
militar.”
Em relação ao papel de Otelo e à sua personalidade, não faltam opiniões
categóricas. Vasco Pulido Valente, sempre rápido a desprezar a perspicácia
alheia, considera-o “um mitómano pouco inteligente, que muitas vezes roçava o
patológico”, e afirma que nele “é inútil procurar um pensamento racional. A sua
própria ideologia, aliás (se meia dúzia de slogans merecem o nome), o
encorajava a esperar a salvação da iluminada iniciativa do ‘povo’ e do tumulto
‘criador’ que ele eventualmente produzisse”.
Movimento de militares nas ruas a 25 de novembro de
1975
Rui Ochoa
O papel de Otelo
Outra forma de ver isto é notar que, face à incerteza quanto ao tipo de
regime a criar e ao estado ainda incipiente — e portanto, à credibilidade
limitada dos partidos recém-criados, Otelo contrapunha algo mais consonante com
uma certa embriaguez de liberdade reencontrada, que não queria voltar a
submeter-se imediatamente a estruturas institucionais de tipo convencional. É a
perspetiva de Carlos de Matos Gomes, o recentemente falecido Capitão de Abril,
historiador e romancista, em “Otelo, o Herético” (ed. Tinta-da-china). Para
ele, o instinto de Otelo, “mais do que a deliberada e consciente transformação
de uma utopia em realidade, abriu caminho a manifestações apelativas de formas
de organização de poder popular e de democracia. (...) Do fim do projeto bonapartista
de Spínola até a 25 de novembro de 1975 irão confrontar-se duas conceções
incompatíveis de governo. O projeto e a prática de Otelo propunham um regime
democrático, enquanto os partidos do sistema e os seus dirigentes pretendiam um
regime republicano”.
A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS: O DIA EM QUE CAIU A
DITADURA PORTUGUESA
Alex Fernandes
Relógio D’Água, 2025, 376 págs., €22
Se para Pulido Valente a conduta errática do chefe do Copcon nas semanas e
meses que precederam o 25 de Novembro (distribuição de armas a civis,
passividade antes ações como o cerco do parlamento, o assalto à embaixada de
Espanha, politização crescente de unidades do exército e apelos abertos à
insurreição armada) ameaçava “um paroxismo de violência e desordem de
consequências quase incalculáveis”, Matos Gomes sugere algo diferente. “Todo o
seu percurso de vida revela uma personalidade racional, ética, multicultural, e
não há qualquer prova de um repentino e radical distúrbio de personalidade”,
escreve no livro agora publicado. “Não existem provas de que a participação de
Otelo no processo político que conduziu ao 25 de Abril de 1974 e ao seu
desenvolvimento tenha sido uma campanha particular ou pessoal, uma cruzada
missionária após uma revelação para implantar um programa messiânico,
juntamente com um grupo de apóstolos, como algumas obras ao longo destes 50
anos o têm apresentado, algures entre um profeta, um excêntrico e um fanático.”
Filipe Garcia sintetiza: no 25 de Novembro, Otelo “viria a ser considerado
um traidor pelos que o viram ir para casa dormir, conversar com Costa Gomes e
recolher, mas será sempre um herói para outros, os que lhe agradecem Abril e os
que lhe gabam a sensatez de, em novembro, ter recusado sempre avançar”.
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