* João Costa
Professor universitário,
ex-ministro da Educação
Não precisamos de nenhum Salazar,
mas precisamos de muitos jornalistas como a Joana Gorjão Henriques. Que sai da
espuma dos dias para investigar e mostrar o que não vemos nas bolhas do
privilégio em que estamos. Que sabe onde estão os imigrantes todos os dias. São
os que cuidam de nós
Tive a oportunidade de ver esta
semana o documentário Racismo. Uma descolonização em curso, de
Joana Gorjão Henriques e Mariana Godet. Recomendo vivamente a todos os que
procuram perceber o fenómeno do racismo em Portugal. Aprendi, espantei-me sem
me surpreender e comovi-me. Sobretudo, vi novas portas abertas para percebermos
o racismo num país em que ele sempre existiu, mas que agora o encontra
legitimado no discurso político.
Este documentário mostra a
realidade dos últimos anos do colonialismo português, como era a relação entre
brancos e negros, tendo eu encontrado o seu máximo valor nas entrevistas feitas
a quem cresceu em África e percebeu, mais tarde, a banalização da discriminação
que não via em criança.
Os negros era menos pessoas e
ninguém achava estranho. Os negros viviam em condições sub-humanas e isso não
era questionado. Na casa dos patrões, mas sem direito a cama. A cuidar das
crianças dos brancos, mas sem poderem ter as suas. Eram vistos como seres
menores, que serviam para servir. As mulheres podiam ser usadas, apenas porque
eram negras, podendo ser violadas de formas que não se admitiam possíveis nem
legítimas fossem elas brancas.
Impressiona ouvir o relato de uma
das entrevistadas, que tem hoje a consciência de que, ao vir a Portugal,
advogava valores certos, mas ao regressar a África assumia de novo a
normalidade do mal. Porque lá era simplesmente assim.
Este é um documentário sobre a
banalização do mal. Não há culpas nos que cresceram assim e só muito mais tarde
perceberam que esse “assim” não tinha razão de ser e era iníquo. Há, porém,
muitas culpas em quem fomentou e alimentou este regime para lá de todos os
tempos em que o colonialismo já tinha sido identificado como inaceitável por
todo o mundo. As colónias alimentavam os vícios de uma metrópole em que a
ditadura se prolongava, alimentada pela exploração de partes do mundo, com o
dinheiro de formas não oficiais de escravatura e com esquemas de corrupção
escondidos para sustentar o status quo político e social. O mal banaliza-se
quando nem sequer é questionado, como este documentário tão bem mostra. O outro
estava lá para servir e os seus direitos não existiam. Os poucos direitos que
conseguiam ter eram vistos como um favor daqueles que eram servidos. Não
questionar a igualdade de direitos, porque se considera que o outro é
diferente, é viver na bolha da indiferença.
Joana Gorjão Henriques e Mariana
Godet instam-nos a refletir sobre este passado para percebermos o presente
assustador para que nos precipitam. São demasiados assuntos não resolvidos e
feridas que não sararam. A fuga dos brancos, deixando para trás o que era seu,
foi associada, explícita ou implicitamente, a uma apropriação dos seus direitos
por aqueles que se habituaram a ver como não os tendo. Muitos dos que chegaram
e foram alvo de ódio canalizaram a sua frustração para aqueles que ficaram nos
seus lugares e que não eram vistos como iguais. O ressentimento veio nas malas
e nunca foi desempacotado. Há uma aceitação da superioridade de uns sobre os
outros, que nunca foi superada, ainda que tenha ficado em modo mais ou menos
latente durante algumas décadas.
Cresci a ver racismo por todo o
lado. Sobretudo entre os utilizadores frequentes da adversativa. “Não sou
racista, mas…”. O que não era racista, mas não gostava que a filha namorasse
com um negro. O que não era racista, mas achava que eles não “falavam bem” O
que não era racista, mas preferia não morar no mesmo prédio que os outros.
Estes “mas” não foram suficientemente observados nem escrutinados e vivemos
demasiado tempo na ilusão de que não havia um problema estrutural a tratar no
nosso país. Joana Gorjão Henriques e Mariana Godet desmontam bem as narrativas
que ainda invadem a forma como aprendemos história de Portugal. Onde está o
colonialismo fofinho português nos relatos da escravatura recente do trabalho
não pago, nas fotos que se tiram com o direito a tocar no peito das mulheres
negras ou no recrutamento de trabalhadores forçados a deixar as suas famílias?
Entender que tudo não passou de uma narrativa montada, e ainda alimentada, é
fundamental para percebermos o recrudescimento da violência racial. Convencemo-nos
que éramos bons, por isso não podemos acreditar que ainda hoje podemos viver a
herança dos sentimentos maus fomentados.
Hoje interessa à extrema-direita
alimentar o ressentimento e o ódio. Encontrar novos e velhos culpados por tudo
o que nos corre mal. Oportunistas e cobardes, atacam os que já são mais
vulneráveis. André Ventura quer expulsar os imigrantes, mas fica atrapalhado
quando se lhe pergunta por que motivo não fala sobre os milionários
extrativistas. Não fala porque não lhe convém, porque sabe que é mais fácil
construir em cima de ódios reprimidos. O Chega pede três Salazares para “pôr
ordem” em Portugal. Mente sobre o passado para iludir sobre o presente e reza
para que ninguém veja estes documentários, que mostram os discursos sinistros e
enganadores do próprio Salazar, a negar as evidências, corrupto, a mentir sobre
o que se passava em África.
Não precisamos de nenhum Salazar,
mas precisamos de muitos jornalistas como a Joana Gorjão Henriques. Que sai da
espuma dos dias para investigar e mostrar o que não vemos nas bolhas do
privilégio em que estamos. Que sabe onde estão os imigrantes todos os dias. São
os que cuidam de nós. Os que já se foram embora quando chegamos aos nossos
locais de trabalho e fizeram tudo o que nenhum português quer fazer. Andam nos
transportes em sentido contrário e não têm direito de ver os seus filhos
acordar, porque ainda não chegaram a casa. Para cada entrevista a André
Ventura, façam duas entrevistas às vítimas do seu racismo. Hoje como ontem,
começa-se a encolher os ombros a cada disparate dito pelos amigos do Chega,
como se fosse apenas mais um. O problema é que, de cada vez que encolhemos os
ombros, voltamos a banalizar este ódio pela cor da pele do outro.
Para cada Ventura, três Joanas,
porque três Venturas não valem um terço de Joana. Para pôr ordem neste mal,
para nos lembrar que é pela informação e pelo conhecimento que vamos. Levem
documentários como este às escolas e ajudem os mais jovens a perceber a
diferença entre a profundidade da investigação e a boçalidade irresponsável dos
tik-tok da extrema-direita.
2025 12 02
https://expresso.pt/opiniao/2025-12-02-tres-joanas-gorjao-henriques-para-cada-ventura-60cb83a5

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