Breves histórias
“Vinte e dois anos antes, ela vagueia pelo corredor solene de uma livraria vazia”
- 15 Janeiro 2012
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Um dia, muito mais tarde, ele morreu ali na sala, na sua cadeira de sempre, que preferia por causa das costas. Ela disse-lhe vou à rua comprar pão, e quando voltou encontrou-o de olhos abertos, um olhar quase sonhador, um sorriso nos lábios. Morreu feliz e deixou-lhe um último sorriso, como que a dizer não te preocupes porque tive uma boa vida contigo. Não contou isto a ninguém para que não pensassem que era um devaneio de uma velha à deriva no seu desgosto.
Vinte e dois anos antes, ela vagueia pelo corredor solene de uma livraria vazia à hora de almoço. Tem um livro apertado contra o peito. O corredor acaba num gradeamento. Ela aproxima-se daquela varanda interior e ali se queda a cismar de olhos perdidos para lá da montra do fundo da loja. O livro queima-lhe as entranhas, numa angústia inexplicável ao fim de cinco anos de pesado silêncio. Então, volta-se por um pressentimento e ali está ele de pé a sorrir-lhe do outro lado do corredor.
Bem me parecia que eras tu, diz ele com a sua voz alta de tenor alegre que, ela recorda-se, enchia uma sala. Essa voz enorme tem uma familiaridade surpreendente, como se não tivessem passado cinco anos. Nesses cinco segundos, enquanto a reconhece e percorre os curtos metros do corredor, ela pergunta-se quais seriam as probabilidades de o encontrar, estando a pensar nele com aquele livro na mão. Os olhos ficam húmidos de uma emoção contrariada, as pernas tremem-lhe numa traição do corpo à mente. Ele vem de lá contente, segura-lhe os braços com as suas mãos grandes, beija-a no rosto.
Que bom que é encontrar-te, exclama, afastando-se com os braços esticados, segurando-a ainda pelos ombros, teatral, não soubesse ela que ele é mesmo assim: naturalmente espalhafatoso. Repara que ela tem consigo o livro preferido dele. Ela sente-se a corar como uma menina apanhada em flagrante. Estava a pensar em ti, confessa numa voz sumida, embargada pelo alvoroço que vai dentro de si, incapaz de assumir a indiferença que calculou tantas vezes nos seus pensamentos implacáveis. Estou a ver que sim, diz ele, inconvenientemente triunfante.
Convida-a para um café, ela aceita sem vontade própria, furiosa por não dizer que não. Ela mal fala, entupida na sua perplexidade, ele conta-lhe a vida, eloquente, os cinco anos, o casamento falhado, o emprego bem sucedido. Quero ver-te outra vez, afirma. Não sei, hesita, porque me deixaste?, pergunta-lhe sem pensar. Porque sou estúpido, responde ele, simplesmente, e, nem duas semanas mais tarde acrescenta: desta vez vou compensar-te, vou fazer-te feliz e, quando morrer ao teu lado daqui a muitos anos, hei-de estar a sorrir para que saibas que também fui feliz contigo.
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