sábado, 18 de fevereiro de 2012

Júlio Magalhães ~ Dez mil guitarras de Catherine Clément


"E agora, que vai ser de nós sem bárbaros? Essa gente, mesmo assim, era uma solução." C.P. Cavafy

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QUARTA-FEIRA, 16 DE JUNHO DE 2010


DEZ MIL GUITARRAS



A escritora francesa Catherine Clément, autora de uma vasta obra de ficção, ensaio e poesia, de que se destacam, entre muitos títulos, La Putain du diable e Le Voyage de Théo, publicou recentemente Dix mille guitares, um romance (histórico) em que são personagens principais três soberanos excêntricos: D. Sebastião de Portugal, o imperador Rodolfo de Habsburgo e a rainha Cristina da Suécia; e ainda um rinoceronte. Atravessam o romance outras figuras como Filipe II de Espanha, a princesa de Éboli, o embaixador imperial conde Hans Khevenhüller, o cheikh Tidjane Abdallah, o palafreneiro Pedro da Silva (tratador do rinoceronte), o rabi Yehudah Loewe ben Bezalel (Maharal de Praga), etc. e, em fundo, a sombra tutelar de Carlos-Quinto, osommo imperatore, em cujos territórios "o Sol nunca se punha".

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Este livro divide-se em três partes: a primeira, dedicada ao rei de Portugal, que "desapareceu" na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578; a segunda, ao imperador Rodolfo II do Santo Império Romano- Germânico; a terceira, à Rainha Cristina da Suécia. O rinoceronte, primeiro vivo, depois apenas o seu corno, atravessa todo o livro, num monólogo em que assume um papel de narrador. Também D. Sebastião surge, intermitentemente, na 2ª e na 3ª parte da obra.


Importa salientar quão bem informada está Catherine Clément sobre estas imperiais e reais figuras, emprestando à ficção um indiscutível suporte histórico. É claro que a personagem central é D. Sebastião (deve-se-lhe o título do livro, numa alusão às dez mil guitarras que os combatentes portugueses teriam deixado no solo de Alcácer-Quibir), que a autora faz viver até cerca dos cem anos, deformado em consequência da batalha, oculto nas terras de Marrocos. No entanto, casado com uma princesa muçulmana e pai de numerosa prole, o que se afigura pouco consentâneo com a verdade histórica, mas sem a efabulação o que seria dos romances.


De facto, o prof. Harold B. Johnson, da Universidade de Virginia, e que foi professor convidado da Universidade Nova de Lisboa, no seu livro Dois Estudos Polémicos, alude à homossexualidade de dois ícones portugueses: o Infante D. Henrique e D. Sebastião. Segundo o eminente académico, baseado nas fontes (mencionadas) da história de Portugal e nos trabalhos de diversos historiadores e escritores, concluiu que as sempre citadas enfermidades de D. Sebastião e a sua ostensiva misoginia se deviam não só às taras decorrentes da muito próxima consanguinidade dos seus antepassados (os sucessivos casamentos das Casas de Avis e de Habsburgo) mas a um facto sistematicamente ocultado ou disfarçado, à época e ao longo dos tempos: a homossexualidade do rei. Segundo Johnson, D. Sebastião teria sido abusado sexualmente pelo seu preceptor e confessor, o padre jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, que passara muito tempo no norte de África, onde integrara um grupo de jesuítas que se encarregavam de dar apoio espiritual aos trabalhadores presidiários cristãos em Tétuan. Passo a citar Johnson, a propósito de Câmara: «Conforme diz o seu biógrafo "para mais os consolarem", Câmara e os seus colegas dormiam lado a lado com os prisioneiros nos escuros semi-calabouços (enxovas) onde ficavam presos quando não estavam a trabalhar. Foi durante este período que, segundo se consta, Câmara adoeceu com uma enfermidade não especificada, tendo ido para Ceuta para recuperar.»  Em 1560, Câmara, por vontade do Cardeal D. Henrique e contra a opinião da avó D. Catarina de Áustria, viúva de D. João III e irmã de Carlos-Quinto, tornou-se preceptor e confessor do futuro rei.  É em 1564, ao completar dez anos, que o jovem dá sinais de «sofrer de uma enfermidade incomodativa descrita como "fluxes seminales" ou, mais especificamente, umas secreções cremosas no pénis.», apesar da sua robusta constituição física. O estado de saúde do rei inquietou as cortes europeias, uma vez que seria um potencial esposo para uma princesa. Filipe II chegou a enviar médicos a Portugal mas é o barão de Fourquevaulx, agente de Catarina de Medici quem descobre a embaraçosa enfermidade de D. Sebastião, que identifica numa carta enviada á rainha: "gonorrhea". Atendendo á idade do rei os às pessoas com quem privava, parece não haver dúvidas de que uma doença sexualmente transmissível só lhe poderia ter sido transmitida por um adulto em que depositasse muita confiança. E o único nessas condições, ele mesmo certamente infectado, como se disse acima, era o padre Luís Gonçalves da Câmara, naturalmente familiarizado com os costumes adquiridos em Marrocos. Em 1566, quando os sintomas de D. Sebastião se tornaram conhecidos na corte, a rainha-avó D. Catarina substituiu o padre Câmara por Frei Luís de Montoya, mas dois anos mais tarde, quando atingiu a maioridade para reinar, o jovem reempossou Câmara como seu confessor.





O facto de D. Sebastião ter sido sexualmente abusado pelo seu preceptor não significa, só por isso,  que ele se tornasse homossexual. Mas, ainda segundo Johnson, a misoginia do rei, que se afastava de todas as mulheres e descartava qualquer ideia de casamento, e a sua permanente intimidade com rapazes, de todas as categorias sociais, desde que começou a reinar, são testemunho da sua orientação sexual, sendo que na corte muitos o consideravam sodomita. E até é possível que a sua obsessão pelo norte de África, mais do que converter os infiéis, tivesse a ver com histórias que lhe foram contadas pelo seu confessor, grande conhecedor daquelas paragens. O escritor belga Paul Dresse, na sua peça D. Sebastião de Portugal, que o Grupo de Teatro de Carnide apresentou, em 1991, no Teatro da Trindade, numa encenação do falecido Bento Martins, demonstra claramente as inclinações do rei.

Regressando ao livro de Catherine Clément (as aventuras homossexuais de D. Sebastião estão descritas na obra de Johnson e a ela voltaremos oportunamente), surge na 2ª parte a figura bizarra de Rodolfo II, imperador Romano-Germânico, filho de Maximiliano II de Áustria e de Maria de Espanha, irmã de Filipe II. Educado em Madrid, na corte de seu tio, viveu primeiro em Viena onde foi proclamado imperador, por morte de seu pai, em 1576. Tendo visitado várias vezes Praga (também era rei da Boémia), para aí transfere a capital do Império em 1586.  Rodolfo transforma o castelo de Praga num laboratório alquímico e num museu e convive com o pintor Arcimboldo, que o retrata, com os astrónomos Tycho Brahé e Johannes Kepler e com o rabi Loewe, Maharal de Praga. É no Castelo (Hradcany), que mandou engrandecer, que recebe o corno do rinoceronte e o transforma em taça.  Diga-se que o rinoceronte, que fazia as delícias de D. Sebastião e era há muito cobiçado por Rodolfo, por morte do rei português foi enviado para Madrid, onde se irritou e provocou duas mortes. Mandado abater por Filipe II, a sua pele e o corno são levados para Praga por Hans Khevenhüller. Estando a pele repleta de bichos porque mal tratada, o imperador só aproveita o corno.






Também Rodolfo II não casou, embora tenha tido dois filhos naturais. Angelo Ripellino, no seu livro Praga Magica, dá uma ideia da corte de Rodolfo e também das suas progressivas excentricidades, já muito perto da demência. Acabaria por ser substituído por seu irmão Matias em 1612.

A 3ª parte do livro é dedicada à rainha Cristina da Suécia, também uma figura estranha, apaixonada das letras mas ostensivamente lésbica, que sucedeu a seu pai Gustavo-Adolfo II em 1632, com apenas seis anos, começou a reinar em 1644 e viria a abdicar em 1654, viajando depois pela Europa e instalando-se em Roma, no Palácio Farnèse. Também Cristina não contraiu matrimónio, o que se compreende. Recebeu em Estocolmo em 1649 o filósofo Descartes, que aí morreria no ano seguinte.






As vicissitudes da Guerra dos Trinta Anos determinaram que o corno do rinoceronte fosse parar à corte de Cristina. O conde Koenigsmark, um dos generais suecos, tomou o Castelo e os seus soldados embalaram todas as colecções de Rodolfo e transportaram-nas para Estocolmo. O que resta dessas colecções encontra-se hoje no Kunsthistorisches Museum de Viena.

Espero que estas breves notas sobre Dix mille guitares suscitem nos leitores o interesse de lerem uma obra de ficção, historicamente suportada, e que lhes agucem a curiosidade de mais saberem sobre três figuras míticas da história universal, nomeadamente D. Sebastião que é, afinal, a origem e o fio condutor do livro, como a leitura do mesmo permitirá constatar.

2 comentários:

Renato Mendez disse...

Fico intrigado como os homossexuais ainda exercem enorme poder de magnetismo sobre vocês. Tratam essa gente como se fosse alienígena, algo que não é do nosso planeta.
Quando vocês se acostumarão com verdade que os homossexuais desde a epopeia de Gilgamesh (lá no tempo da Suméria, momento que brotava a civilização) são citados e existem e convivem com a gente fazendo parte da humanidade...O problema é que a maioria não quer vê-los para não aceita-los, então fingem que não existem ou se for difícil construir essa falsa realidade (ou desconstruir a realidade), fingem que são exóticos e o ridículo da humanidade. Extraem de Alexandre o Magno, de Leonardo da Vinci e de Santos Dumont o que eles têm de melhor e tornam obscuro a sexualidade desses gênios da humanidade para que não sirvam eles de exemplo negativo para as futuras gerações que poderiam associar genialidade e benevolência com homossexualidade.

Victor Nogueira disse...

Público o comentário do anónimo Renato Mendes embora o "vocês" me pareça excessivo e o teor do comentário descabido relativamente amim e ao post.