segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

José Viale Moutinho ~ autobiografia


 Biografia

Poderei não ter sido assim
- arremedo autobiográfico
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Retrato de José Viale Moutinho, da autoria de Siza Vieira (2004)
Eu não fazia parte do elenco da peça, estava sentado na coxia da terceira fila, talvez perdido entre dois blues, mas ergui-me da poltrona e galguei os degraus para o proscénio. Chabela Vargas cantava nas minhas veias? O Manuel Freire era a voz da razão, soava Paul Robson no Old Man River. A sala ainda estava iluminada e situei-me logo ali. Mostrei à vontade ao erguer uma perna e pousar a alpargata sobre a caixa do ponto, impedindo que ele iniciasse a leitura murmurada da comédia, a comédia que se encontrava em cartaz. E declarei aos que procuravam sentar-se nas poltronas correspondentes aos seus bilhetes, o meu nome e acrescentei que chegara, havia muito, de uma ilha perdida no Atlântico, e que eu nascera quando os canhões começavam a calar-se pela segunda vez em todo o mundo. Falei que estava agora a lançar raízes na ilha, a Ilha do Ogre, mas arrepiei caminho. Um gracioso, num dos camarotes, perguntou em falsete se eu queria dizer que nascera na Madeira em meados de 1945. Aplaudiram-no, mas a mim apetecia-me, como sempre, dizer as coisas de modo mais sinuoso, acrescentando ser filho de um homem do Douro, extraordinário efabulador, desinteressado das vinhas e dos olivais da família, dele e de uma inglesa, que levara como dote, uns brincos de sua mãe e memórias de uma riqueza palaciana, carregada de preconceitos, inclusive de classe.
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Rua da Carreira, 174, Funchal (onde nasceu o autor). Desenho a lápis do escultor Ricardo Velosa.
Assim, entre a realidade quotidiana e as memórias ficcionadas, ou apenas inacreditáveis, montes de livros, férias no Douro, onde os personagens eram escritos por mim sobre as histórias de meu pai, e a figura mítica de um avô, que andava pelos campos em misteriosos trabalhos que eu não entendia muito bem. Ah, e as pessoas, já sentadas nas suas poltronas, impacientavam-se porque, segundo diziam, eu estava a impedir o início da representação. Teria sido muito simples se se erguesse o pano, surgisse o primeiro cenário e os actores começassem a função, naqueles jogos de deixas garantidos pelo homenzinho da caixa sobre a qual eu tinha pousado a alpargata.
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Na verdade, eu nem precisava de cenários nem de mais actores ou de que quem quer me sussurrasse os passos da minha vida, que eu me dispusera a contar naqueles momentos. Havia um foco que percorria a sala e, de quando em quando, mas cada vez mais insistentemente, se fixava em mim. Eu calculava que uma certa percentagem do sucesso que ali pudesse ter assentaria no facto dos gordos serem considerados pessoas bem dispostas. A plateia, mulheres e homens de rostos atónitos, era constituída por gente que me parecia demasiado magra. Nas histórias de meu pai havia sempre um frade imponente e eu imaginava-o sentado a uma grande mesa, e eles, bocas abertas, olhos bugalhudos, vendo as suas poderosas mãos agitando talhadas de presunto, coxas de capões assados, côdeas de broa, pernis de porco negro, grandes malgas de vinho tinto, um bródio à antiga! E aquele frade era eu, possivelmente o meu fantasma. Essa era a maneira que tinha de lhes mostrar bem saber como entrar na dimensão por onde andaria, com as mesmas glórias, vícios, vaidades e saberes de sempre. E se um lugar há dentro da minha cabeça, que, cuido como poiso da memória de toda a família, esse é o Quarto dos Santos da casa dos meus avós. Havia aí um oratório, com a Senhora do Campo, milhares de velas de cera, cujo arder empestava até ao corredor, uns diplomas que davam alguns dos avós como terceiros de ordens e de confrarias, centenas de figuras de santos, anjos e arcanjos, suponho quase todos apócrifos, uma espécie de santíssimo exército a vigiar a fé da minha avó e de todas as velhas murmuradeiras nas rezas e jaculatórias ao quotidiano toque das Trindades.
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Eu tinha um fascínio por aquilo tudo e, de noite, vinha do meu quarto, espreitar aquela população prodigiosa, que parecia adquirir vida com o tremular das lamparinas eternamente acesas. Havia ainda o gavetão de uma cómoda onde eram guardadas umas esporas douradas, cuja origem ninguém condescendia em contar-me. Numa caixa de velas, era guardado um enorme revólver de espigão, hoje aqui a defender alguma papelada dos ventos do Porto que me devassam o lugar de trabalho.
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Vivi em Espinho, onde se passeavam vários fantasmas, o de Amadeo e o de Laranjeira, de um pintor espanhol que tinha uma orelha de cera e uma escritora de romances cor-de-rosa. Como professor, no Colégio de S. Luís, tive o novelista José Marmelo e Silva, uma lição de intelectual que encolhia os ombros à glória efémera. Em segredo, falava-se muito do assassínio de um médico comunista, Ferreira Soares. E ali havia uma feira enorme e cheia de sugestões, que era a minha perdição às segundas, quando escutava romances de cego, a conversa fiada dos vendedores de banha de cobra com a jibóia ao pescoço, transportada numa mala de cartão, cobra que comia coelhos vivos à nossa vista. Um corcunda vestindo de branco, com um tabuleiro ao pescoço, rondava o colégio, expressão sardónica, a guinchar: «Chupa-chupa, caramelo, estica!» Um perfeito do colégio pedia-nos calendários para os trocar por copos de vinho numa taberna ao fundo da rua. E as incursões ao estranho universo do mosteiro de Grijó, em cuja quinta, parte do cenário de um romance de Júlio Dinis, dizia-se, passei a odiar leite quente quando o parvo do moço da vacaria ordenhou umas sujas tetas lançando-me jactos de leite branco, espesso, gorduroso, directamente para a boca escancarada.
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De Espinho, de Almendra, mudei-me para o Porto, o que eu aprendia parecia-me que era o arrastar de uma espada do tamanho da que é atribuída a Afonso Henriques e está no Museu de Soares dos Reis. Ganhei mais o gosto da História e de alguns caminhos da Antropologia. Entrei para o Jornal de Noticias, em cujo suplemento literário já colaborava. Fiz a via-sacra dos hospitais, da morgue, dos acidentes, das lixeiras. A primeira grande entrevista foi com o Eugénio de Andrade. Eu já sabia que não levava a melhor com a puta da Censura, mas procurava iludi-la. Comecei a ir a Lisboa, onde conheci alguém que foi decisivo na minha vida de escritor, o Urbano Tavares Rodrigues. Colaborava no República. Em 1966, mando imprimir um livro de prosa poética, O Corredor, capa do Zé Rodrigues. A exemplo não sei de que poeta francês, ainda não sabia do gesto semelhante do Trindade Coelho, queimei a edição toda! Nem um exemplar tenho, só se salvaram quatro páginas de provas. Dois anos depois saiu Natureza Morta Iluminada, uma narrativa, 32 páginas, ilustrada pelo pintor Fernando de Oliveira, meu compadre. Irritei-me muito com um idiota a quem ofereci o livro e, dez dias depois, me disse que andava a lê-lo! Depois, de 1975 a 2003, estive no Diário de Notícias.
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Fraternalmente, conto com o António Rebordão Navarro, o Marco, o Méndez Ferrín, o Manuel Maria, a Fedra Santos, o Fernando Lanhas e alguns outros mais. Em relevo tenho dívidas antigas com a Ana Hatherly, mesmo com o Michel Butor, e modernas com o José da Cruz Santos, mais recentes ainda com o Edgar Silva. Poderia contar mais coisas, mesmo sobre amigos deportados em campos de concentração nazis, mas para quê? E aqueles que ficaram pelo caminho?
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Bem, na verdade, há um estranho silêncio no teatro, afinal um dos muitos teatros que arderam sem eu ter dado por ela. Andei pelo mundo, entre bruxas da Chã de Ferreira e meigas galegas, escutei histórias mágicas por toda a parte, até contei caveiras nos tzompantlis e bailei o danzón em Veracruz, escrevi muitos livros, e apetece-me continuar a escrevê-los. Vivi intensamente o 25 de Abril, conheci a Liberdade. E fui vidente em Seide, vi Camilo à janela de sua casa quando lá fui receber o Grande Prémio do Conto por aquele livro Cenas da Vida de um Minotauro. Acenou-me, daí eu ter começado a falar logo com ele, o que levou os presentes – o Zé Manel Mendes, o Navarro, a Cristina Robalo Cordeiro e Aníbal Pinto de Castro – julgaram ser boutade e não era senão uma aparição pagã privada. Por isso, na pedra de Seide apareceu o meu nome.
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Andei pelo associativismo cultural, mas desencantei-me. Porém, estou encantado noutro nível, pois aos 60 anos, ainda agora cumpridos, continuo apaixonado e não só pela vida. E cá ando, atraído pelos muitos rostos de um universo plural. A História parece que, cada vez me absorve mais, em termos de testemunho e de base para ficção, da Guerra Civil de Espanha aos campos de concentração. Depois, por um bando de pardais que se renova, escrevo para a miudagem. E quando julgava que não tinha mais nada a fazer nessa área, a minha afilhada Francisca, sem se aperceber, contratou-me para eu reaprender a encarar a vida, e a missão está atribuída e não posso esmorecer.
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Ah, mas afinal isto não é teatro coisa nenhuma, estou é encafuado no velho  Quarto dos Santos. As lamparinas é que provocam estas visões e a herança das fábulas potencia a memória. E quanto não disse, sem o esconder! De quando em longe, sento-me à mesa com um bom amigo de infância, o Jorge Carvalho, da Quinta do Mocho. Ou com o Zé Ilídio. Ou com os meus primos das duas partes paternas, por um lado a Uli e o Tony, e por outro a tribu dos Trabulos, com as Márcias, o Toneca, a Mariazinha, o Zé Luís, por aí fora. Mas, nestas ladeiras que calcorreio por receita médica, penso muito nos que vão ficando pelo caminho – o Adriano, a Fernanda e o Fernando, a Maria Virgínia, o António Sampaio, o Egito, o Veiga Leitão, o Eugénio, o Companheiro Vasco, o Manuel Maria, o Uxio, tantos outros. Mas também penso na bela maneira de encarar a vida de uns amigos especiais – o patriarca Francisco Mangas, que me ensinou a pescar, o Tony, um primo do fundo dos séculos, e o grande João Cid, pintor, poeta, neto do Manuel, íntimo do António Nobre.
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Ah, mas já não está aí ninguém? Pois, nunca aí esteve ninguém. Também me vou embora, só me resta ser o escritor e o bonhomme que me parece sempre fui.
José Viale Moutinho

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