José
Pacheco Pereira 18-02-2012
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A livraria
tradicional caminha para uma dimensão de "culto" e isso permite
algumas pequenas livrarias de "autor"
O fim anunciado da
Livraria Portugal, a decadência penosa da Sá da Costa, o fim da Buchholz, assim
como de várias livrarias na província, ou de pequenas livrarias temáticas em
Lisboa, mostra a dimensão de uma crise que afecta directamente o livro, mas,
mais ainda, aquilo que se pode chamar o "mundo dos livros". A mesma
decadência se nota em livrarias que ainda sobrevivem, cuja aproximação do fim
um olho treinado percebe, como sejam as mudanças que pouco a pouco se percebem
com a falta de renovação dos stocks, a invasão de títulos de "papel
pintado" de uma só editora, a crise nas distribuidoras e modo como a
consignação de livros é hoje feita, a caótica distribuição dos títulos, tudo
isto mostra uma mudança que não é só provocada pela crise, ou pela concorrência
das grandes superfícies como a Fnac, ou com as compras pela Internet.
A livraria
tradicional caminha para uma dimensão de "culto", e isso permite
algumas pequenas livrarias, livrarias de "autor", se se quiser,
livrarias especializadas, livrarias que combinam os livros novos com os
antigos, que são dirigidas por livreiros no sentido nobre do termo, pessoas que
conhecem muito bem os livros, os seus leitores-clientes, o modo como o mercado,
mesmo neste nicho evolui, e que usam o seu know-how para
sobreviver. Mas, enquanto antes este sector, que sempre existiu, era entendido
como especializado e funcionando em complemento com as grandes livrarias
generalistas clássicas, agora estamos perante um dualismo entre as livrarias de
supermercado, ou as Fnac - que faça-se justiça não são livrarias de
supermercado -, e os espaços de "culto" dos livros. A grande livraria
clássica está a desaparecer.
Veja-se o caso da
Livraria Portugal, localizada num espaço privilegiado, e cuja cobiça certamente
lhe acelerou o fim, para além da perigosa proximidade com a Fnac do Chiado. A
livraria existia há 70 anos, fundada em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial. A
data não é irrelevante, porque em 1941 era difícil ver-se o presente sem muito
receio. Portugal podia a qualquer altura ser sugado para o conflito, e, se
virmos o passado com os olhos de hoje, os livros deveriam parecer bem pouco
necessários e importantes. Os três amigos que a fundaram, bibliófilos que
mereciam este nome, tinham um programa simples: Levar a toda a parte e a cada
um o livro necessário." A livraria cumpria-o pelos livros que oferecia,
pela qualidade do seu serviço (os velhos empregados da livraria conheciam mesmo
os livros), como pelo seu Boletim Bibliográfico, que não só
divulgava as novidades como tinha artigos originais.
Conheço a livraria há
cerca de 40 anos. Como em todas as livrarias que crescem connosco, obrigam a um
trajecto próprio. Na Livraria Portugal, onde as mudanças sempre foram muito
lentas, esse trajecto representava a apreensão do "corpo" e da
identidade da livraria. As livrarias conhecem-se como as pessoas, e a única
mudança substancial no meu trajecto interior foi ter deixado de ir ao andar de
cima e ficar apenas pelo andar térreo. Mas o andar de cima era, já há muitos
anos, único, porque a livraria tinha o exclusivo das publicações de uma série
de instituições internacionais, a UNESCO, a OCDE, a ONU, e outras, que faziam
do andar de cima uma livraria técnica muito especial. Mas o "meu
andar" foi e é, até ao fim do mês de Fevereiro, o de baixo.
Entrava-se pela rua,
depois de ver as montras, em particular a da direita e as vitrinas junto da
porta, porque, como a livraria tinha muitos livros únicos, os que estavam
expostos ou se viam à porta ou não existiam lá dentro. A primeira mesa à
direita passava-a apenas com um olhar rápido: eram publicações de direito e
algumas especializadas de arte, sem serem álbuns de mesa de chá. À direita - o
meu trajecto fazia-se sempre pelo "corredor" da direita -, começava a
animar-se, e a tornar o meu bolso mais leve, a partir da segunda mesa, onde
havia uma série de publicações académicas que não se encontravam em nenhuma
outra livraria. Depois havia uma terceira mesa com publicações de pequenos
editores ou de autor, também sem paralelo noutras livrarias
"generalistas". Começavam aí as compras. Depois fazia o mesmo corredor
para trás, para a zona direita das mesas centrais. Aí, também, não sei por que
mistério, apesar de estarem livros das grandes editoras, havia sempre alguma
coisa de história ou política, que nunca tinha visto noutro sítio. É isso que
torna uma livraria única: descobrem-se livros que nunca se viram, e essa é
também a grande vantagem das livrarias. Pegar e folhear um livro, ler o índice,
ou, para um incorrigível bibliógrafo, dar uma vista de olhos às referências e
às citações. Com o actual panorama da distribuição, em que o "papel
pintado" ocupa o espaço todo, encontrar livros diferentes "faz"
uma livraria diferente.
Chegado ao fundo,
onde arrancavam as escadas para o andar de cima, havia uma pequena montra de
revistas, que com o tempo foi tendo cada vez menos coisas, mas na qual a Seara
Nova, a Política Operária e a revista de emigrados Latitudes permaneciam
valentemente até ao fim. Era na Livraria Portugal que as comprava, com excepção
da Política Operária que, depois de mudar de formato, passei a
comprar na Letra Livre.
Estou agora a
dirigir-me à porta, do outro lado do U. Aí havia uma outra banca única, com
revistas em formato livro, monografias, estudos históricos, com um número
significativo de livros estrangeiros, brasileiros, franceses e ingleses. Era
também aí o único sítio em que passava para trás das mesas acedendo às
estantes, porque os fundos especializados da livraria eram também únicos.
História, geografia, genealogia, monografias locais, portuguesas e
"ultramarinas", eram já uma sobrevivência do tempo em que a livraria
servia de novidades os departamentos das universidades americanas, que usavam
o Boletim Bibliográfico para as suas encomendas. Olhava para o
lado esquerdo das mesas do meio, mas aí já era raro encontrar alguma coisa e passava
por cima da última mesa que tinha livros médicos. Estava junto da caixa, e era
aqui que normalmente conversava com quem trabalhava na livraria, gente, como já
disse atrás, muita sabedora que conhecia o mundo dos livros como ninguém. Numa
entrevista dada ao jornal i, quando se soube do encerramento, um
deles disse: "Nunca tive outra vida senão esta."
Não foi por minha
falta que a livraria fechou, sempre lá comprei muitos livros e mesmo já com a
Fnac em vida, fiz sempre questão de passar pela Livraria Portugal antes de
subir a rua e de lá ir comprar mais uns livros. Mas o fim da livraria estava já
anunciado há muito tempo. Ainda o discuti com os seus empregados, chamando a
atenção para que em Lisboa não havia (e não há) uma única livraria inglesa
decente, e que isso oferecia um "nicho de mercado" que ninguém
ocupava. Mas sabia, como sabiam os meus interlocutores, que para arrancar um
projecto deste tipo era preciso investir muito dinheiro e ninguém o
tinha.
Vai pois acabar a
Livraria Portugal e juntar-se às minhas memórias da velha Leitura no Porto, da
Buchholz sob a férula alemã "não se pode mexerrr" e de mais alguns
fantasmas. Eram livrarias de pessoas, feitas de pessoas e para as pessoas, em
que os livros não eram instrumentais, mas eram um "mundo" em que
todos participavam. Esse mundo está a desaparecer para o comum dos portugueses
e a deslocar-se para os consumidores "de culto" ou para os
consumidores de "papel pintado" e capas todas iguais, ou para aqueles
que dizem que lêem no iPad e não lêem coisa nenhuma.
Parte desta mudança é
inevitável, e não é má em si porque para muita gente significa que vai
continuar a ler: não faço parte dos nostálgicos do cheiro dos livros, nem das
más livrarias, mesmo com cem anos. Mas das boas livrarias tenho pena que
despareçam e prescindo que me dêem lições de mercado e da "destruição
criativa" schumpeteriana. Não é isso que está em causa, mas aquilo que,
num balanço geral, feito por qualquer Deus que veja tudo, significa mais
pobreza, menos qualidade, mais deserto afectivo como os "likes"
do Facebook, mais tijolos da moda, e menos livros que sejam livros na mão de
quem os vende e na mão de quem os compra.
Historiador
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