sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Sofia de Mello Breyner - Musa ensina-me o canto




Musa ensina-me o canto 
Venerável e antigo 
O canto para todos
 Por todos entendido 

Musa ensina-me o canto 
O justo irmão das coisas 
Incendiador da noite 
E na tarde secreto 

Musa ensina-me o canto~
Em que eu mesma regresso 
Sem demora e sem pressa 
Tornada planta ou pedra 

Ou tornada parede 
Da casa primitiva 
Ou tornada o murmúrio 
Do mar que a cercava 

(Eu me lembro do chão 
De madeira lavada 
E do seu perfume 
Que atravessava) 

Musa ensina-me o canto 
Onde o mar respira 
Coberto de brilhos 
Musa ensina-me o canto 
Da janela quadrada 
E do quarto branco 

Que eu possa dizer como 
A tarde ali tocava 
Na mesa e na porta 
No espelho e no corpo 
E como os rodeava 

Pois o tempo me corta 
O tempo me divide 
O tempo me atravessa 
E me separa viva 
Do chão e da parede 
Da casa primitiva 

Musa ensina-me o canto 
Venerável e antigo 
Para prender o brilho 
Dessa manhã polida 
Que poisava na duna 
Docemente os seus dedos 
E caiava as paredes 
Da casa limpa e branca 

Musa ensina-me o canto 
Que me corta a garganta 



in Livro VI - 1962

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