As tarefas
(Redacção de uma rapariga de nome Maria Adélia nascida no Carvalhal e educada num asilo religioso em Beja)
Há muitas espécies de tarefas e cada pessoa tem que cumprir a sua tarefa. As tarefas dividem-se em duas espécies: as tarefas do homem e as tarefas da mulher. As tarefas do homem são aquelas da coragem, da força e do mando. Quer dizer: serem presidentes, generais, serem padres, soldados, caçadores, serem toureiros, serem futebolistas e juízes, etc., etc. Ao homem deu Deus nosso Senhor a tarefa de velar e mandar, que até Jesus Cristo foi homem e Deus escolheu ter filho e não filha para morrer neste mundo em desconto dos nossos pecados que são muitos e na hora da morte disse «Pai perdoa-lhes que eles não sabem o que fazem». Deste modo são os homens que organizam as guerras para tirarem o mundo da perdição e do pecado (por exemplo: as cruzadas), combatendo para salvar a Pátria e defender assim as mulheres, as crianças e os velhos.
Depois há as tarefas das mulheres, que acima de todas está a de ter filhos, guardá-los e tratá-los nas doenças, dar-lhes a educação em casa e o carinho; é também tarefa da mulher ser professora e mais coisas, tal como costureira, cabeleireira, criada, enfermeira. Há também mulheres médicas, engenheiras, advogadas, etc., mas o meu pai diz que é melhor a gente não se fiar nelas que as mulheres foram feitas para a vida da casa, que é uma tarefa muito bonita e dá muito gosto ter tudo limpo e arrumado para quando chegar o nosso marido ele poder descansar do trabalho do dia que foi tanto, a fim de arranjar dinheiro para nos sustentar e aos filhos.
Como a vida está muito cara e ninguém pode com ela, diz a minha mãe que a mulher tem de trabalhar para ajudar o marido, mas eu cá não gostava nada de ter de ajudar o meu marido e só hei-de casar com um homem rico que me possa dar vestidos e automóvel, ir ao cinema, ter duas criadas e a minha mãe diz-me, filha fazes tu muito bem pensar assim, não cases com um pelintra como o teu pai, que o ordenado que ele ganha não dá para as faltas: desterrou-se a gente para estas terras porque ele é mesmo apalermado, mas é teu pai tens que lhe guardar respeito. Desterrou-se a gente e aqui só se comermos as pedras que o chão dá e eu estou neste asilo. Na terra da minha mãe sempre havia o meu avô que ajudava e lá a terra bota mais coisas das suas entranhas para matar a fome. Mas o meu pai resolveu-se a vir para estas bandas, de pedreiro, e como uma das tarefas da mulher é obedecer ao homem, assim fez minha mãe, que o que nos vale é ela ir a dias a casa da fidalga, parente de outra fidalga que teve uma filha aqui no convento, que uma das tarefas das mulheres, dantes, era ir para o convento e ainda hoje será, mas agora nem sempre vai obrigada. Diz o senhor prior que é uma vocação mas eu não sei o que isso quer dizer e ponho tarefa que é mais bonito. Ainda outro dia a fidalga me perguntou se eu não queria ir para freira (na família dela têm a mania de irem para freiras) e eu respondi muito obrigada e fiquei calada a olhar para o chão como a minha mãe me ensinou, ela disse que engraçadinha e fez-me uma festa na cabeça e eu vi os anéis que ela trazia nos dedos, a brilharem. Anéis com pedras lindas e pensei que fidalga deveria ser uma tarefa para as mulheres: então eu queria ser fidalga e beijei a mão da fidalga assim de repente, só para sentir na boca os anéis e ela julgou que fosse por mor dela e disse coitadinha e deu-me cinco escudos, mas quando eu queria ir à tenda comprar rebuçados a minha mãe tirou-me o dinheiro enquanto gritava não sejas gastadeira rapariga, que isso sempre dá para trazer um pouco de arroz e batatas, e eu lhos dei porque os filhos igualmente têm as suas tarefas e uma delas é obedecer aos pais, mas pensei que nunca mais lhe contava nada da minha vida nem lhe mostrava nada que me dessem: cada um governa-se e a gente nesta vida tem de ter a tarefa de ser esperta, e uma das tarefas da mulher é disfarçar, que bem vejo a minha mãe com o meu pai. Uma vez até me disse: filha, olha que a mulher tem de usar muita manha para conseguir o que quer, pois como somos mais fracas, o homem faz da gente gato-sapato e esse é o que é dado. Mas a gente tem de se defender. Outra das tarefas da mulher, então, será ter manha.
É preciso não se cair em tentação, diz o Senhor Prior, eu cá não percebo nada dessas coisas e só sei que quando for grande nunca hei-de ser uma desgraçada tal a minha mãe, sempre a limpar as porcarias que o meu pai e a fidalga fazem. Pelo menos a fidalga sempre nos vai dando uns fatozitos velhos e uns restos de comida em vez de os deitar no caixote. Que também há as tarefas dos pobres e as tarefas dos ricos. Uma das tarefas dos ricos será serem caridosos e a dos pobres pedir e aceitar o que lhes dão mostrando-se muito agradecidos.
O mundo sempre foi assim, prega o Senhor Prior, uns com tudo outros sem nada, é essa a vontade de Deus; concerteza porque ele nunca teve fome como nós, mas o Senhor Prior respondeu que para se ir para o céu depois de morto é preciso ser-se pobre e os ricos não vão para o céu, e contou uma história de um camelo que entrava pelo fundo de uma agulha e eu por achar graça, deitei a rir de tal maneira que ele me pôs logo de castigo. Que uma das tarefas das crianças é estarem de castigo, tal como uma das tarefas das pessoas grandes é castigarem as crianças por via de que elas aprendam a gostar de castigar pessoas; que castigar é uma tarefa bastante usada e precisa para a vida.
Ainda a semana passada o patrão do meu pai o castigou por ele estar a dizer aos que trabalhavam com ele, que deviam pedir mais dinheiro que aquele não era nenhum para demanda da comida e a casa que se tem de pagar. E o patrão do meu pai deixou o meu pai sem trabalho uma semana em que só eu comi, por assim dizer, por via de estar no asilo que só lá não durmo.
E a minha mãe fartou-se de moer o meu pai com palavras e choros, homem não te metas nestas coisas, olha o resultado que dá, a gente aqui a morrer de fome e os outros de barriga cheia, que o patrão não os castigou mas só a ti que eras o das ideias.
Que uma das tarefas dos patrões é a de castigar os empregados, e a tarefa dos empregados é a de trabalhar para os patrões a fim de estes ficarem mais ricos e mais patrões. Talvez eu um dia case com um patrão.
A verdade é que isso não quer dizer nada, pois quando o meu pai vem bêbedo e bate na minha mãe, grita: aqui eu é que sou o patrão. E ela cala-se e põe-se a chorar baixinho.
E pronto, vou acabar, pois não podia dizer todas as tarefas que há no mundo, se não estava a vida inteira a escrever. Só gostava de falar de mais uma tarefa que é a da mulher de má vida. E eu ainda não percebi o que seja isso da má vida, pois má vida tem a minha mãe e todas as mulheres como ela.
Prega o Senhor Prior ser tal coisa grande pecado e qualquer mulher que tenha essa tarefa vai para o inferno...
Diz o Senhor Prior que uma das tarefas da mulher é ser virtuosa, e eu embora também não perceba o que seja ser virtuosa, imagino que não deve dar nenhum arranjo.
Gosto muito das tarefas.
Maria Adélia
20/6/71
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa in NOVAS CARTAS PORTUGUESAS, Dom Quixote, 2010
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