sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Maria Judite de Carvalho - Tanta Gente, Mariana

 

“Maria Judite Carvalho (1921-1998)
foi a escritora da solidão e do silêncio das
‘palavras poupadas’. Fez, nas suas novelas
e contos, o retrato irónico e desencantado da
pequena burguesia lisboeta, das frustrações
e desistências das mulheres e dos velhos, de
toda uma sociedade lentamente envenenada
pela moral hipócrita do fascismo português.
Aliando o humor à arte da concisão e da
reticência, sempre convidou o leitor a entrar
nas suas histórias e completá-las, a vivê-las
de algum modo. Foi sem dúvida uma das
maiores ficcionistas do nosso século XX.”
Urbano Tavares Rodrigues


Tanta Gente, Mariana, Maria Judite de Carvalho

«Cheguei há pouco e lembro-me muito vagamente de ter vindo. Com nitidez só consigo recordar-me do homem que ia sendo atropelado e também das mãos do chauffeur que me trouxe, brancas, largas, de dedos curtos e quase sem unhas, a espapaçarem-se no volante como estrelas que o mar tivesse esquecido na areia. Duas mãos exangues. E no entanto o dono delas, dessas mãos, estava bem vivo. Insultou mesmo o velho quando ele lhe parou em frente das rodas. Como eu. Há quanto tempo… “Compre uns óculos! Seu estupor!”  –  O velho tinha um ar perdido, uns olhos desbotados sem olhar lá dentro. Era como se estivesse muito longe daquela rua por onde o seu corpo se passeava e onde agora estava parado a receber, sem os ouvir, os insultos do homem e o riso das pessoas que tinham parado só para isso, para se rirem. “Olha, perdeu o pio! Ó tiozinho, isso foi copito a mais ou quê?” Tão só, aquele pobre velho, tão só!…»


(…)

«Há tantas coisas em que nunca pensámos por falta de tempo! Na esperança, por exemplo. Quem vai perder cinco ou dez minutos a pensar na esperança, quando pode usá-los muito mais proveitosamente a ler um romance ou a falar ao telefone com uma amiga, a ir ao cinema ou a redigir ofícios no emprego? Pensar na esperança, que coisa imbecil! Até dá vontade de rir. Na esperança... Sempre há gente... E ela metida como areia nas pregas e nas bainhas da alma. Passam anos, passam vidas, aí vem o último dia e a última hora e o último minuto e ela então aparece a tornar inesperado aquilo por que esperávamos, a fazer o que já era amargo ainda mais amargo. A tornar mais difíceis as coisas.»

(...)


«Uma noite dos meus quinze anos dei comigo a chorar.Não sei já qual foi o caminho que me conduziu às lágrimas, tudo vai tão longe, perdido na fita branca do passado. Só me recordo de que o pai me ouviu e se levantou. Sentou-se ao de leve na borda da minha cama, pôs-se a acariciar-me os cabelos, quis saber o que eu tinha.

– Estou só, pai. Não é mais nada. Dei porque estava só e isso pareceu-me... Que parvoíce, não é? Estou agora só! E tu então?

Tentei rir a tapar-me, já arrependida da franqueza, mas ele não colaborou e isso salvou-o da raiva que eu havia de lhe ter na manhã seguinte. Não se riu e a sua voz, quando veio, era muito doce, quase triste.

– Também deste por isso – disse brandamente. – Também deste por isso. Há gente que vive setenta e oitenta anos, até mais, sem nunca se dar conta. Tu aos quinze... Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança.

– Mas tu, pai...

– Eu... As pessoas que enchem o teu mundo são diferentes das do meu... No fundo é muito provável que
algumas delas sejam as mesmas, mas aí está, se fosse possível encontrarem-se não se reconheciam nem mesmo fisicamente... Como havemos de nos ajudar? Ninguém pode, filha, ninguém pode...

Ninguém pôde.»

(...)


«Mesmo que não soubessem, mesmo que eu lhes não dissesse que ia morrer, lamentavam-me com certeza. As pessoas adoram lamentar-se, e aos outros com mais forte razão. «Estás doente, filha, digo-to eu. Com essa cara... Quantos quilos perdeste? Ora que maçada...» E haviam de ter pela certa aquele ar vingativo e isento de todo o espanto que os infelizes autênticos ou de cisma (isto é, quase todos os seres humanos), mesmo os melhores, as chamadas boas pessoas, são incapazes de dissimular. «Coisas que acontecem, tens de ter paciência. Eu, por exemplo...»

(...)


«O princípio de tudo não foi uma presença, nem um olhar, nem uma conversa, mas sim algumas palavras saídasde coisa nenhuma e talvez por isso mesmo inevitáveis,é curioso como tive logo a certeza disso. Palavras vulgares, inocentes como tantas outras que se dizem para se dissolverem no tempo e serem esquecidas. Aquelas ficaram-me, porém, gravadas na memória. Todos falavam. Apollinaire, que grande poeta, você leu Les Alcools? Julinha Reis, sabe quem é? Pois, Julinha Reis... Embrenharam-se de súbito numa conversa «para brasileiros» em que se procurava ave riguar se determinada pessoa era casada mesmo. A Estrela levava aos lábios o seu Porto blanc e o António olhava para ela esquecido da cerveja. A certa altura disse numa voz que eu não conhecia:

– Que bonito esse seu sinal. Parece uma flor ao vento. Senti um grande espanto. Era tão pouco dele aquela frase. Sempre chamara as coisas pelo seu próprio nome.

Teria sido o António quem falara, quem dissera aquilo?»

(...)


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