quinta-feira, 4 de abril de 2013

João Apolinário - Mão de obra


MÃO DE OBRA



Os pobres trabalham cedo
cedo começam a vida
... tudo neles é sempre cedo
até a fome e a desgraça
uma estrela concebida
com duas chagas de medo
abertas esponjosas fundas
no corpo magro e doído
do homem desde criança
condenado a ser vendido
pesado numa balança
por qualquer preço colhido
na engrenagem ou teia
de uma aranha gigantesca
que em ventres de lua cheia
ainda no sangue os pesca
os domina suga enreda
em meandros de uma trama
que cobre a cidade toda
esta cidade que acorda
na marmita de um rapaz
com doze anos apenas
e poucas horas de sono
caminhando para a luta
dos olhos do capataz
que faz as vezes de dono.
Esta cidade que acorda
molhada triste dormente
e em vez de algum bombom
no ventre daquele menino
(com doze anos apenas
e poucas horas de sono)
lhe amassa o pão numa açorda
que a própria fome da mãe
(a insónia do pão duro)
dá ao filho porque o dono
lhe marca bem o futuro
Que míseros escudos ganha
esta vítima da aranha.


João Apolinário
 

Alexandre O'Neill - A cama quente

A CAMA QUENTE


Homenagem aos mineiros do Chile
que dormem, singelo,
pelo sistema da «cama quente»
...

Na mina trabalha-se por turnos.
Quando se volta, nem se tiram os coturnos.

Bebido o café negro e trincado o casqueiro,
joga-se o corpo ao sono, mas primeiro,

enxota-se o camarada da cama ainda quente,
que não há camas, no Chile, pra toda a gente.

Do calor que sobrou o nosso se acrescenta
pra dar calor ao próximo que entra.

Vós, que dormis em camas, como reis,
tantas horas por dia, não sabeis

como é bom dormir ao calor de um irmão
que saiu ao nitrato ou ao carvão

e despertar ao abanão (é o contrato!)
de um que chega do carvão ou do nitrato!

É a este sistema, minha gente,
que se chama no Chile «a cama quente»...


Alexandre O'Neill

Jean Genet - A Varanda

*Ípsilon*
 
A Varanda

Num bordel, no teatro como na vida

17.11.2011 - Tiago Bartolomeu Costa 
 

Luís Miguel Cintra encena esse monumento teatral que é A Varanda, de Jean Genet, peça ainda hoje indecifrável, de uma complexidade simbólica imbatível. A peça está em cena até 18 de Dezembro.

O Thèâtre du Gymnase, em Paris, onde Jean Genet viu estrear em 1960, pela mão de Peter Brook, uma versão de A Varanda que lhe desagradou profundamente, dedica-se hoje a espectáculos musicais e à apresentação sucedânea de peças com títulos como Os Homens Vêm de Marte e as Mulheres de Vénus, Como Casar com um Milionário e A Lésbica Invisível - One woman show. Longe, portanto, de peças de confronto e reflexão como as que Genet desejava, ao ataque de um público que se havia aburguesado e recusava ver, e estar, num teatro, como se estivesse em carne viva.

Escrevemos isto e olhamos para a fila que espera para entrar na sala de 800 lugares, sumptuosa nos seus dourados e vermelhos, em busca do riso fácil e premeditado. Talvez, numa irónica volta da História, a cama que Genet quis ver imaginada na plateia exista agora, materializada nas gargalhadas que reconhecem a normalização dos gostos, dos costumes e dos modos de se ser, afinal, espectador de teatro.

Então, dizia Genet, "era bem clara" a sua intenção ao escrever A Varanda: "A peça não é uma sátira a isto ou àquilo. Ela é - e será, portanto, representada como - a glorificação da Imagem e do Reflexo. O seu significado - satírico ou não - só assim poderá aparecer".

Trabalho inacabadoDir-se-ia, em jeito de descrição, que A Varanda se passa num bordel, aparentemente em Paris, onde nos seus diversos quadros e relações de poder se reflecte sobre a ideia de representação do poder e dos meios para o atingir, no caso, o prazer sexual. Os clientes solicitam a Irma, a dona do bordel (uma composição notável de Luísa Cruz), que os ajude a concretizar fantasias que possam, de certo modo, levá-los a acreditar que, de facto, são quem dizem querer ser. Mas para Luís Miguel Cintra, que com A Varanda volta a encontrar, pela terceira vez, Jean Genet (as outras duas peças foram Splendid"s, 1995 e Ela, 2011, e falta cumprir a promessa de encenar Os Negros, adiada para quando conseguir "que seja mesmo negra a nossa alma e para levarmos mais longe esse velho gosto de teatros dentro dos teatros", como escreveu no programa de Splendid"s), o seu prazer é mais humano do que aquilo a que, racionalmente, querem chegar".

Ao encenador interessa-lhe a "incompletude" inerente ao próprio jogo de representação: "Nunca se consegue chegar à forma definitiva e por isso será sempre um trabalho inacabado", diz-nos, indo ao encontro do que escreveu Genet: "A representação fictícia de uma acção, de uma experiência, dispensa-nos geralmente de as cumprir no plano real e em nós próprios".

Nesse sentido, A Varanda é, também, e sobretudo, um complexo jogo de actores, que a troupe do Teatro da Cornucópia, num gozo particular, se excede a executar. Uma das preocupações de Genet era, precisamente, dar a ver a dificuldade de materialização dos valores descritos na peça, nomeadamente na oposição entre forças de poder (prostituta/cliente, ordem/anarquia, paixão/ódio, família/isolamento, patrão/empregado, ladrão/polícia), através do jogo de actores, ao mesmo tempo actores de uma peça dentro de uma outra peça.

Numa carta datada de 1968 a Roger Blin, que seria o encenador de eleição de Genet, escrevia o dramaturgo: "Os actores têm sempre a tentação de "encontrar espontaneamente" os gestos que ajudam as palavras a saírem da boca. E isso dá então gestos e voz banais (no primeiro sentido de banal), uma espécie de redundância inútil".

Esta consciência levou Luís Miguel Cintra a um trabalho de profunda reflexão sobre o conflito entre o poder semiótico da palavra versus o poder simbólico da imagem. Já em Ela, onde o problema da representação da imagem do Papa - e um texto que emanou deste - era o centro do argumento, Cintra se havia visto confrontado "com discursos que pareciam incoerentes". A solução, diz, foi reconhecer "a incoerência da própria imagem com os gestos que estavam a ser feitos". A valorização dos dois aspectos vem desse dicotomia, dessa autonomia da imagem e da palavra, acredita. "Não há ninguém capaz de fazer esta personagem", diz o encenador, citando Roger (Vítor d"Andrade), o revolucionário que, de tanto acreditar no papel que está a representar, dá à peça a sua dimensão trágica.

O jogo de GenetA Varanda é uma das mais complexas peças de Genet e, ainda hoje, é difícil perceber de que falava o autor. Há uma dimensão contextual que se perdeu com o tempo, como as referências à Guerra Civil Espanhola, ou mesmo a dimensão religiosa, e que torna artificial - logo, teatral - a relação que se estabelece entre a palavra e a imagem. Deixou, com o tempo, de ser uma peça de teatro para ganhar, com a distância, uma caução de reflexão sobre a construção da própria imagem.

A importância da palavra, e das imagens criadas por e a partir delas, era para o próprio Genet fundamental. Com o desgosto causado pelas encenações que haviam sido feitas em Londres, em 1956, por Peter Zadek, ou em Berlim, Basileia e em Nova Iorque, deixou escrito como deveria ser representada a peça, caso não fosse feita por "um encenador inteligente" - o que manifestamente não é o caso de Luís Miguel Cintra, que constrói uma máquina teatral que de tão artificial se torna perigosamente irresistível (e o cenário de Cristina Reis, ecoando a ideia de caixas dentro de caixas imaginada por Genet, ecoa também o próprio teatro recente da Cornucópia, como A Cacatua Verde, de Schnitzler, apresentada no Teatro Nacional D. Maria II no início do ano, e um outro jogo dentro do teatro e da revolução).

Para Genet, as máscaras que as personagens deveriam usar, os coturnos sobre os quais se deviam empoleirar, as vestes que deveriam vestir para mais depressa, e mais perto, chegarem das figuras que deviam (desejar) representar, foram modos de pensar o próprio jogo teatral. E, por consequência, reflectirem sobre, e com, os espectadores.

O jogo de Genet, ao de certo modo impor um registo visual e cénico ao texto, dá à peça, acredita Cintra, "um carácter opaco" que não lhe interessou. Não o diz por oposição ao desejo do autor que se perguntava "como manter o equívoco até ao fim". Cintra está mais interessado naquilo que apelida de "pura metáfora" e, através dela, criar uma "cumplicidade" com o espectador que o leve a pensar onde está a verdade do jogo teatral e do próprio jogo social. E fala, por isso, da metáfora da vida e da morte, da representação e da imagem, da aproximação a um ideal e do confronto com esse mesmo ideal. Um jogo que certamente agradaria a Genet e que Cintra define como "uma multidão de metáforas, um sistema simbólico quase impenetrável, escrito na língua da ambiguidade e da ironia, monumental".

Até 18 de Dezembro (terça a sábado, às 20h30; domingos, às 16h)

José António Gomes ~ O Óscar, para quem sempre existiu o tu

  • José António Gomes


«Refere Máximo Gorki, não sem espanto, que em Lénine, no meio de tanta preocupação, havia ainda lugar para a bondade – permitam-me que diga o mesmo de Óscar Lopes. E também sem espanto.»
O Óscar, para quem sempre existiu o tu

A seu modo músico e poeta, senhor de um pensamento-feito-prosa, escrita ou oral, que era autêntica poesia, o Óscar pensava e escrevia coisas fulgurantes como esta: «Nós falamos quase sempre como quem usa frases, palavras. Às vezes, e de repente, sentimos que, pelo contrário, estão as frases, as palavras, a utilizarem-nos, como se fôssemos nós, e não elas, a servir de veículos para um certo sentido. As palavras, quando usadas, servem-nos de mãos, mãos de mil dedos invisíveis, que enredam as coisas e de algum modo as manejam. Quando são elas, vivas, a usarem-nos, não há fora delas quaisquer coisas situadas ou a situar: a fala e o mundo consubstanciam-se num mundo só, e parece que renascemos. Trabalha-nos um novo senso do real e do humano» (Óscar Lopes, Uma Espécie de Música).
O Óscar. Todos diziam, todos dizem «o Óscar», naquele centro de trabalho. Todos sabiam que tinham um génio ali à mão, quase do outro lado da rua. Um génio da Língua, da História e da Crítica Literárias, da Filosofia e da Cultura Clássica, da Matemática e até da Física. Um corajoso humanista à antiga, um clássico-moderno de insaciável curiosidade e sede de saber. Alguém com uma superior inteligência do mundo e da linguagem. E que no entanto tratava os camaradas por tu e por tu era tratado. Fossem operários, empregados, sindicalistas, fossem intelectuais, eleitos comunistas, gente com responsabilidades de direcção. Recordo o saudoso Sérgio Teixeira, antigo operário, evocando uma viagem para Lisboa, com o Óscar a falar-lhe de Camões.
Ele era, ele será sempre, para nós, «o Óscar», o intelectual por excelência, incomparável e incapaz de trair – ao contrário de outros – o compromisso que, desde a juventude, desde 1944, o vinculou à classe trabalhadora, aos oprimidos, ao projecto comunista. E pelos quais sofreu, antes de Abril, sem disso vir a fazer gala: a prisão fascista, a perseguição, a apreensão de obras suas pela PIDE, a proibição de ensinar na Universidade, de se deslocar ao estrangeiro para participar em seminários para os quais era convidado, de assinar artigos com o seu nome.
Era, além do mais, um génio da fraternidade, da solidariedade, da empatia com o seu semelhante, da capacidade de escutar o outro. Alguém que olhava a vida, o futuro, a sua própria presença no mundo como uma aventura sem limites. E que, por isso, disse algures: «Nós só conhecemos uma fracção mínima da realidade, estamos no início de uma grande aventura cósmica.»
 
Sempre presente
 
Para todos nós, o Óscar era, será sempre, um exemplo para os dias por vir – e não apenas pelo seu saber imenso. Era-o também para outros, muito distantes de nós. Uma mensagem electrónica, no dia da sua partida: «O ser humano e o intelectual mais brilhante, mais sábio e mais simples que tive o privilégio de ter como Professor na minha vida académica» – palavras de uma colega, de direita, sua antiga aluna de mestrado.
Na última etapa de uma vida de estudo e de luta, na sua casa da Boavista, bem perto do centro de trabalho, já afectado pela crueldade do tempo, da doença e do silêncio em que mergulhara, o Óscar era o camarada despojado e modesto, sempre disponível para a partilha do saber, para a solidariedade, para colaborar na angariação de fundos, para juntar convictamente o seu nome ao nosso, quando necessário: num abaixo-assinado, num manifesto, numa edição do Sector Intelectual. (E há generosidades militantes do Óscar que nem sequer aqui se podem contar.)
Animada de ternura e daquela amizade comunista que é tão sua, a nossa querida Lina visitou-o sempre, prestando o apoio necessário ao Óscar, à família. (Todos te conhecem, Lina, és um esteio, o sorriso e o amparo de que todos precisam nestes dias difíceis.) E, por isso, nesse fim de tarde em que velávamos o camarada, estavas tão triste e comovida, ali, no salão secular da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (de que o Óscar era um dos mais antigos sócios), a urna ladeada por duas coroas belíssimas. Vermelho de flores sobre verde. Vermelho. Sobre verde. E depois contavas como, enquanto os dias lhe permitiam ainda sair de casa e deslocar-se, o Óscar pedia por vezes à senhora que dele cuidava: «Olhe, vamos antes por ali.» E, apoiado no seu braço, «obrigava-a» a atravessar a rua para o passeio do centro de trabalho. E a fazia continuar até chegarem à entrada. E ela dizia: «Ai, que o senhor é um maroto. Queria mas era vir até aqui.» É que o Óscar gostava do centro de trabalho, gostou sempre, enquanto as forças lho consentiram, de rever e conviver com os camaradas.
Por tudo isto – e por todo o resto, que é muito – nos dói muito a partida do Óscar. Que sabíamos ali ao lado, sempre presente nos momentos difíceis, nos momentos necessários, com a sua cortante ciência do mundo, da literatura e da linguagem. O Óscar, para quem sempre existiu o tu. E que por isso escreveu, no único poema seu que até hoje veio a lume, numa antologia organizada pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto:
 
Segunda pessoa
 
Alguém diz tu. Alguém sem nome.
É a terra e o corpo e é o rasto de um sentido.
Alguém diz tu à imagem que se esgarça,
à certeza de uma longínqua razão.
Longe. O passado. Nomes, errados nomes de desejo.
Cego de insónia, nem lembrar te posso.
Nem mesmo em sonho saberia ver-te.
És só o pronome, tu, a ondular-me na boca,
norte magnético num desespero em surdina.
És a sílaba que dói a dor solar de um sentido.
A história avança na cabra-cega sem rostos,
e eu vivo em ti o tu mais só da minha vida.

Poesia de Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade

GREEN GOD Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

 *      

É quando a chuva cai, é quando
olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é mto pouco,
era preciso que também as mãos
vissem esse brilho, dele fizessem
não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.

*      

AS AMORAS
O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

*      

NA ORLA DO MAR 
Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
- e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo -
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor,
onde o corpo é alma.

*

O LUGAR DA CASA
Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia

*      

LETTERA AMOROSA
Respiro o teu corpo
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

*      

O SORRISO
     Creio que foi o sorriso,
    0 sorriso foi quem abriu a
     porta.
     Era um sorriso com
     muita luz
     lá dentro, apetecia
     entrar nele, tirar a roupa,
     ficar
     nu dentro daquele
     sorriso.
     Correr, navegar, morrer
     naquele sorriso.

*      

   QUE FIZESTE DAS PALAVRAS?
     Que fizeste das palavras?
     Que contas darás tu
     dessas vogais
     de um azul tão
     apaziguado?
     E das consoantes, que
     lhes dirás,
     ardendo entre o fulgor
     das laranjas e o sol dos
     cavalos?
     Que lhes dirás, quando
     te perguntarem pelas
     minúsculas
     sementes que te
     confiaram?

*

Deixa a mão
caminhar
perder o alento
até onde se não respira.
Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com nácar da língua.
Só um grito desde o chão
pode fulminá-la.
A morte
não é um segredo
não é em nós um jardim de areia.
De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.
Vou ensinar-te como se reconhece
repara
é ainda um rapaz
não acaba de crescer
nos ombros
a luz
desatada
a fulva
lucidez dos flancos.
A boca sobre a boca nevava.

*

SUL
Era por Agosto, há muitoanos.
O cheiro da sombra
das oliveiras subia ao ar. Vista de baixo
aquela folhagem parecia um mar,
um mar de vidro,
quando o sol obliquo lhe caia em cima.
Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.
Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra.
Eram muito novos, há muitos anos,
no pino do verão, debaixo de uma oliveira,
onde só as cigarras monótonamente
consentiam.

*

ONDE OS LÁBIOS
Os lábios.
Distante, arrefecida chama.
Não só os lábios, também as estrelas
são distantes.
E os bosques. E as nascentes.
Também as nascentes são distantes.
As nascentes onde os lábios,
onde as estrelas bebem..
Só o deserto é próximo, só
o deserto.

http://www.lumiarte.com/luardeoutono/eugenioandrade.html

terça-feira, 2 de abril de 2013

Brecht - Nada é impossível de mudar


Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.